Revista | Vol. 9, Dez 2018

Posterioridade/Anterioridade Psicanálise Nachträglichkeit

 

Nesta conferência verificar-se-á sempre um retorno a Freud, já agora por uma simples razão: Porque há sempre um retorno ao sujeito do inconsciente.

Neste contexto, e para introduzir o problema da reconstrução do tempo em análise, revisitaria a obra de Freud “Construções em Análise” (1937), obra curta mas de um interesse incontornável.

Aí, Freud, numa nota de rodapé sobejamente conhecida, compara a reconstrução da história do analisando com a reconstrução histórica que o arqueólogo faz. Mas a comparação não é inteiramente correta porque a arqueologia lida com sistemas mortos e nós, psicanalistas, lidamos com sistemas vivos.

A reconstrução da História obedece ao mecanismo biológico de um sistema vivo. Se um organismo vivo for seccionado num determinado ponto, ele regenera-se de uma forma própria aos tecidos vivos. Na nota de rodapé que aparece no texto “Construções em Análise” (1937), Freud utiliza o método arqueológico, remetendo na sua narrativa o retorno ao inanimado, dado que insiste que aquele modelo trabalha a partir de restos não vivos, coisas que terminaram e/ou desapareceram. O que se passa na mente humana é de um tipo completamente diverso: A saber, a regeneração do sistema vivo. A arqueologia supõe a reconstrução a partir de algo em parte parcialmente desaparecido.

O arqueólogo pode imaginar como era aquele prédio, aquele edifício. O psicanalista não é assim. Nós vemos o edifício concebido. O modelo é exactamente ao contrário e por isso a pergunta para a qual procuramos uma resposta é: Qual foi o mito que deu origem a esta regeneração? Quando se constrói uma casa, ela tem de ter os alicerces direitos para que fique direita. Na análise, os alicerces não estão direitos, a casa cresce de lado. A deformação dos alicerces é o que leva ao desenvolvimento/crescimento enviezado. É de assinalar contudo que Freud nunca disse que havia casas direitas.

O mito (“o nada que é tudo”, no dizer de Fernando Pessoa) nasce, a nosso ver, das sucessivas distorções da história pessoal, como consequência de que a história vivida do sujeito é uma tentativa falhada de cumprimento e concretude do mito. Quanto a nós, todo o feliz equívoco da Psicanálise resulta precisamente da ineficácia do equívoco entre o pré-consciente, onde se produz o efeito da linguagem, e o inconsciente inefável, que não se pode traduzir por palavras, quando muito resto metonímico na fala psicótica. Sem o histórico (material pré-consciente, conexão de símbolos), o mito não poderia alcançar a categoria do verbo, nem sequer balbuciado entre dentes e sonhos, estes últimos via real para arranhar o mito.

Ou seja, nós psicanalistas pensamos muitas vezes que estamos a lidar com o inconsciente, quando estamos a lidar com pré-consciente. Mas esse feliz equívoco permitiu-nos que dessemos palavras a modificações que se usavam mais de coisas pré-conscientes, que é o sítio que nós temos acesso. Nós nunca acedemos ao inconsciente inefável.

Não se trata de me contares o teu mito para te dizer da tua história, mas pelo contrário, de me dizeres da tua história para que eu te possa falar do teu mito.

A noção de construção ou reconstrução em Freud, e depois de Freud, não tem de ser, ou mesmo não deve ser, adesiva à noção de fidelidade factual, ou seja, não tem de ser o que no passado se ofereceu como facto. Disso bem se pode queixar Marie Bonaparte que, apesar de confirmar todas as reconstruções que Freud fez na sua análise, não deixou de ser anorgástica, apesar de mais tarde se transformar em psicanalista e membro da Sociedade Psicanalítica de Paris. O seu gozo anorgástico resistiu à palavra freudiana por uma única e simples razão. A construção mítica, que habita num interno presente, remete a história para uma vertente secundária, tornando-a frequentemente quase prescindível, já que a meta-referência do mito quebra a barreira dos factos para se afirmar e instaurar. É na articulação mito-narrativa que se operam as transformações. Marie Bonaparte não parece ter realizado de facto esta transformação, tendo-se mantido anorgástica e, ainda que com o seu pai Freud ao seu lado, e salvadora de parte da sua obra e da ajuda que lhe deu durante a ocupação nazi, manteve o seu sintoma e foi apologista da cirurgia como parte do método para curar a frigidez feminina. Não nos parece que tenha saído com o seu mito renovado.

O analista através da sua presença na análise é sobretudo um catalisador de transformações. Está presente durante o processo, facilitando a transferência mas não está no produto final.

Consequentemente, a fidelidade histórica em Psicanálise, não pode deixar de ser por vezes infiel aos factos para pretender adquirir aquilo que faz o facto psicanalítico: A saber, o encontro de sentido.

Assim, deve dizer-se que a Psicanálise nos propõe, como afirmei na obra “Modelos de Interpretação em Psicanálise”, que a historiografia psicanalítica é sempre um carril temporal em duplo sentido. Esta noção parte do aprés-coup freudiano (da posterioridade), mas expande-a na dupla temporalidade proposta da anterioridade e da posterioridade.

É imprescindível discriminar o que chamamos factos anedóticos da matéria prima (conjunto inestruturado, caótico, dos acontecimentos que se sucedem) do que Bion chamou factos selecionados. Factos estruturados e selecionados a partir daqueles e das suas articulações, decretadas pela mente do historiador, neste caso do analisando. Estes partem precisamente do “caos” que bombardeia a mente, para lhes conferir regularidade, forma e palavra. São precipitados e agentes precipitantes do inestruturado.

A confusão de dois conceitos resulta da miscigenação entre as coisas que se sucederam e as coisas que se relatam. A falácia resulta de não se entender que o que se relata é já um facto seleccionado, pois que o material das infinitas coisas que se passam no desenvolvimento humano não é história. É tão só o registo caótico que torna possível o facto seleccionado pelo analisando ou o facto relevante para o analista, ou seja, aquele digno da investigação psicanalítica. A história toma como matéria prima as coisas que se sucederam, sabendo-se que estas são na sua descrição uma aleatória e duvidosa crónica do inestruturado, próprio ao acontecimento, para o remeter à sua descrição, ou seja, ao seu registo. Na análise, este registo resulta de um facto selecionado que aparece no discurso do analisando, acoplado ao facto relevante resultante da avaliação do psicanalista. Por outras palavras, o registo naturalista é impossível, já que a totalidade “resultante” invalida o natural.

O instrumento utilizado para o registo constitui, em certa medida, o seu pecado original, sendo este, no nosso caso, o instrumento psicanalítico. Face a este, o acontecimento é factício, isto é, insisto, anedótico sem acoplamento do seu sentido. Mas, neste caso, o sentido obtido não se confunde com a realidade, no sentido comum, já que se faz a partir de outra realidade, aparentemente críptica, visto que enlaçada em outros elementos, tais como os desejos, os afetos, a angústia, a culpa, o narcisismo e a pulsão. Por aí, o sujeito singular está no idiossincrático campo magnético ao qual os elementos factuais se submetem tal como a limalha de ferro no campo magnético.

Vejamos, paradigmaticamente, o texto de Freud (1918) sobre o famoso “Homem dos Lobos”. No caso do Homem dos Lobos, Freud desenvolve um extenso e profundo tratado sobre a teoria psicanalítica, abordando pontos relevantes para a compreensão de como os mecanismos da relação analítica atuam no processo de reconstrução do sujeito e de sua história psíquica. Evidencia-se a relevância dada por Freud ao fantasma constituído ao redor da cena primitiva (a cena sexual entre os pais), quer seja para a compreensão dos sintomas do analisando, quer seja para o desenvolvimento do processo analítico.

O intenso sofrimento neurótico de Serguéi Pankejeff ao longo de toda a sua vida enuclear-se-ia no fantasma da cena primitiva realimentada através de processos regressivos determinantes no sintoma e no desejo.

Freud não caminha, neste caso, pela via da história manifesta. É aos sonhos recorrentes de Serguéi que Freud vai buscar as pistas para a compreensão do fantasma, as fantasias incestuosas inconscientes, marcadas pela impossibilidade radical de serem realizadas.

Importa sublinhar que o que produziu a eclosão dos sintomas, ainda na infância do paciente, não foi um trauma oriundo da realidade externa sobre o sujeito, mas antes uma formação inconsciente, um sonho que aos 4 anos tenta expressar um desejo que remete à cena primitiva, a visão do coito dos pais. Um sonho que aterroriza o sujeito e o inibe diante da vida. Na verdade, o sonho de angústia é a representação do conflito edipiano, um desejo pulsional, erótico em relação à figura paterna, insuportável de aceder à consciência e que encontra na fobia uma saída possível para o conflito.

“Sonhei que era noite e que eu estava deitado na cama. (os pés da cama estão voltados para a janela: em frente da janela havia uma fila de velhas nogueiras. Sei que era inverno quando tive o sonho, e de noite). De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da janela. Havia seis ou sete deles. Os lobos eram muito brancos e pareciam-se mais com raposas ou cães pastores, pois tinham caudas grandes, como as raposas, e orelhas empinadas, como cães quando prestam atenção a algo. Com grande terror, evidentemente de ser comido pelos lobos, gritei e acordei. A minha ama correu até à minha cama, para ver o que me tinha acontecido. Foi preciso muito tempo até que me convencesse de que fora apenas um sonho; tivera uma imagem tão clara e vívida da janela a abrir-se e dos lobos sentados na árvore. Por fim acalmei-me, senti-me como se houvesse escapado de algum perigo e voltei a dormir.” (Freud, 1918)

Freud interpretou o sonho em conjunto com a contribuição do paciente da seguinte forma. Este terá testemunhado a “Cena primitiva” — os seus pais a ter sexo a tergo (ou “penetração por trás”) — numa idade muito precoce. No mesmo artigo, Freud pôs a possibilidade de Serguéi ter testemunhado em vez disso a cópula entre animais, que foi deslocada para os seus pais.

Aqui os sintomas que emergem de forma substitutiva, pela via de um sonho de angústia, são vistos como mecanismos de defesa face a uma realidade fantasmática, aterrorizante... a castração. A visão do órgão genital da mãe vem confirmar a possibilidade de castração. Esta compreensão, afirma Freud, não se dá no momento da cena primitiva, mas tem as suas impressões e impulsos retroativamente elaborados por palavras e pensamentos da infância e que culmina com a reelaboração através da análise aos vinte e poucos anos.

O que Freud reitera é que a cena primitiva não é algo que realmente tenha ocorrido na história do sujeito. O que há é a predominância da fantasia como mito sobre o facto histórico em si. Freud não descarta, inclusive, a possibilidade da existência de uma componente filogenética na construção dessas fantasias. No caso de Serguéi, levanta a hipótese de que este poderia ter observado o coito entre cães e projetado esta representação para os pais. É importante destacar também a forma de apreensão da realidade por parte da criança. O conto dos lobos, contado pelo seu avô, traz o diurno para o sonho que o atormentaria. É desta dimensão que trata a Psicanálise: O universo mítico fantasmático construído pela criança através das fantasias que forjam o adulto.

Se encontrarmos no texto a relevância fundamental que Freud dá à cena primitiva para a compreensão dos sintomas e o desenvolvimento da relação analítica, encontramos o conceito de elaboração a posteriori, a Nachträglichkeit, que o autor identifica como um dos mais importantes mecanismos da clínica psicanalítica. Passado e presente, causa e efeito, indução e consequência, tudo está virado de cabeça para baixo.

Tudo foi ressignificado retroativamente. Ressignificar quer, portanto, dizer induzir um sentido, metamorfosear a biografia, regenerar o membro, para criar o que se deveria designar propriamente por uma narrativa histérico-fantasmática. Ou seja, sem a ligação do fantasma que constitui o mito e a história, ele não pode ser abordado em todo o seu colorido.

Mas podemos diferenciar esta narrativa histérico-fantasmática da noção de interpretação? Todos sabemos que a natureza tem horror ao vazio, ou seja, que o enunciado falso, aquele que se interpola contra a indagação, no dizer de Bion, apenas tenta preencher aquilo que o analista esvazia pela interpretação, para em seguida sugerir uma notação outra, criando uma indagação do vivido latente do analisando. Portanto, não podemos diferenciar. Dito de uma forma mais simples: Dá-me os teus sintomas e eu dou-te o teu mito melhorado!

Estar acordado, para parafrasear Bion, pode pois ser estar vigil dormindo (o sonho como pensamento e aprendizagem, através do aparelho de pensar onírico) e estar a dormir acordado, como tentativa, ainda que tantas vezes precária, de inibir ou excluir a fantasia. Parafraseando Shakespeare “to sleep, to die, perchance to dream”.

Para o psicanalista, a equiparação da vida como factos vigis faz-se exatamente ao contrário da conferência do sentido que se opera, quer na vigília quer no sonho. A história consiste, para o psicanalista, na capacidade de estarmos acordados e conscientes de algo que respeita a nossa radical exclusividade, e isso pode acontecer quando estou a dormir e tenho um sonho, ou pode acontecer quando tenho um sonho e estou acordado. Ou o contrário: Eu posso estar acordado e estar completamente não vigil para o que é importante em mim, ou posso estar a dormir e estar acordado para o que é importante em mim. Nós tratamos os sonhos como uma realidade e muitas vezes a realidade para ser compreendida é transformada num sonho. A nossa noção de estar acordado ou estar a dormir não tem nada a ver com aquilo que entendemos do ponto de vista das ciências neurológicas, em que estar adormecido ou estar acordado é um mecanismo neurológico. Pelas interrogações que fazemos em análise acerca de nós próprios, perseguimos a nossa organização mítica, a nossa realidade última.

Não tanto, e não só, como formação do inconsciente em que o presente repete o passado, mas também na cripto-freudiana em que o passado se constrói à imagem e semelhança do presente. Para a história do analisando, o analista propõe que o passado copie e repita o presente tal como o presente copia e repete o passado (constrói-se, re-constrói-se, co-constrói-se).

A via que o psicanalista escolhe para organizar e reorganizar a história do analisando, faz-se primeiro pelo vínculo transferencial, ou até a relação primária que o paciente estabelece com o seu analista, que lhe permite usar a interpretação como instrumento principal da terapia psicanalítica. São estes factores que viabilizam os mecanismos curativos, tais como a construção, a elaboração, a recuperação mnésica. Nesta, a função de reverie do analista reconstrói afetos e sentidos radicalmente ausentes da mente do paciente, tal como acontece, por exemplo, nos analisandos gravemente regredidos.

Ou seja, o passado, o presente e o futuro sonhado, não é historicismo, mas historicidade, no sentido do passado poder existir no presente, para parafrasear Henri Lefèbvre. O passado descobre-se pela sua existência no presente. A historicidade coloca-se no neurótico, por exemplo, entre o triunfo do recalcamento e a falha do recalcamento. O que eu fui está presente no que sou, e o que sou está presente no que fui. A história é simultaneamente sintomática e paradigmática e, por isso, é construção.

O mito, tal como o terramoto, não é desvendado nunca no seu epicentro. Ele é objeto da suspeita pelo material proveniente do analisando, seja ele confirmatório, retificador, mnésico, intelectual ou afetivo. O mito desvenda-se no que designaríamos por sintoma simil, semelhante, ou seja, no valor transaccional ou substitutivo do sintoma e da sua transformação. Não se trata portanto de “curar” o sintoma, mas, a partir deste, possibilitar o sentir adequado a cada tempo interno.

Exemplo: Uma doente minha muito narcísica, que também, como a Marie Bonaparte, era anorgástica, passava o tempo a gabar-se das raízes aristocráticas da família dela e também do seu desempenho académico: “Nos últimos anos só tive 19s e 20s, o que pensa sobre as minhas notas?”; Respondi-lhe: “20 a garganta e zero a vagina. Onde devia estar a entrega ao outro está a entrega à garganta.”; “Ah, seu filho da puta! Desculpe, desculpe!”, Respondeu-me.

A memória é falsa. Nesse sentido não se trata tão só de revestir a memória com recordações encobridoras, mas de desvendar as recordações para desnudar o mito, ainda que seja tão somente para o vestir de novo.

Um exemplo quase final. Dante afirma-nos que Paolo e Francesca, os dois, infelizes por amores adúlteros, leem um dia a novela da relação entre Lancelot e a rainha Guenevere. Esta leitura comove-os pelas semelhanças das suas histórias e, levados pela emoção, beijam-se. Mas beijam-se porquê? Porque a vivência dos seus amores ressignifica a relação de Lancelot e Guenevere? Ou porque creem copiar a essência dos seus amores a partir do par descrito no livro? Dito de outra forma: beijam-se porque leram, ou leram porque se queriam beijar? Como é que se dá a circulação do tempo? Como o carril em duplo sentido. Quem quer encontrar a sequência dos factos, não cura.

A história do sujeito, para o psicanalista, não é um presente que copia um passado, mas um passado que se estrutura à imagem e semelhança do presente.

Neste sentido, a história existe e não existe. O mito é a tentativa de ultrapassar os factos pela versão enigmática e transformativa inerente à essência do mito. O psicanalista utiliza uma historiografia de duplo sentido: Do passado ao presente, e do presente ao passado. A interpretação é, pois, também escrever, reescrever, inscrever ou transcrever o mito fundante que nos faz, nos fez e nos fará.

Iriamos agora proceder à ressignificação através da visita da história universal, nacional e pessoal.

Começaríamos pela obra de Freud de 1911 Totem e Tabu. Nesta, Freud retoma descrições feitas por Darwin, propondo uma horda humana primitiva, para ilustrar a passagem mítica daquela para o “estado social”, ou, mais propriamente aqui, cultural, leitura minha (já ela também da ordem da posterioridade). Teria havido, nesta horda, uma estrutura de poder hierarquizada, onde o poder seria efetivamente exercido por um macho pretensamente omnipotente, pai de todos, que tivesse o monopólio do gozo sexual pela pertença que lhe cabia de todas as fêmeas do grupo. O seu poder seria despótico, com a punição – fosse pela morte, fosse pela expulsão da tribo – daqueles que se insurgissem. A insatisfação com esse estado de coisa, onde apenas um reservava para si o privilégio do prazer, teria levado os demais machos, filhos daquele, a unirem-se para pôr fim à tirania do líder. Pela associação, teriam mais força do que aquele, e o resultado dessa associação foi o assassinato do pai.

Seria neste parricídio original que estaria a origem utópica da vida social igualitária. Por omissão, dar-se-ia pela persistência pela negativa do pai desaparecido, representado pela figura do totem, ou seja, pelo carisma emprestado e enlutado de uma figura desaparecida. Ninguém pode pretender ocupar esse espaço. Daí o seu aspecto, que se consubstancia nos interditos da proibição da morte e do incesto.

“Portanto, foi a produção de uma ordem igualitária, a partir de uma ordem hierárquica, que o discurso freudiano procurou articular no mito das origens. Neste contexto, o poder foi representado pela ausência, pela figura do pai morto, como um lugar a ser ocupado por uma presença sobre um fundo de ausência, já que o poder se inscreve na ordem simbólica e como o lugar de evocação permanente da morte para filhos-cidadãos”. (Dor).

Ou seja, reutilizando o conceito freudiano do Nachträglichkeit, posterioridade, a democracia moderna recria o mito da morte do pai pelo imaginário e esta permite a compreensão do que é a democracia.

Revisitemos agora uma parte da nossa história nacional. Como vimos, o problema é que aquilo que em Freud se afirma como uma metáfora imensa sobre o mito de origem da vida social retorna ciclicamente, e de uma forma ideossincrática, às identidades nacionais. Para parafrasear Fernando Pessoa: “todas as nações são mistérios e cada nação para si mesma um outro mistério”. A esse mistério retornou, por exemplo, José Gil através de conceitos-base, oriundos alguns da Psicanálise, como por exemplo o conceito da não inscrição, bem como a importância fantasmática de Salazar e do salazarismo como etapas históricas demarcadas da nossa contemporaneidade.

O tempo da não inscrição é, para José Gil, um tempo da repetição e do adiamento permanentes (“O que era característico de Portugal do tempo da ditadura de Salazar, que deveria ter sido completamente transformado, voltou aos comportamentos e à vida portuguesa”).

Teremos nós assumido as vantagens do parricídio originário? Pergunta sempre urgente no nosso quotidiano. Ou não repetiremos as palavras de Hamlet (Shakespeare) quando este pela primeira vez se encontra face ao espectro do pai

(“Responde-me! Não me atormentes com a ignorância. Deixa-me saber por que os teus ossos (...) sepultos na morte rasgaram assim a mortalha em que estavam? Porque é que o teu sepulcro no qual te vimos quietamente sepultado abriu as suas pesadas mandíbulas marmóreas para te jogar novamente para fora (...) e nós, pobres joguetes da natureza, necessitamos de contemplar o nosso ser tão horrivelmente agitado com pensamentos para além do alcance das nossas almas?”).

Para além da reflecção de José Gil, acrescentaríamos outra que retoma um mito da história de Portugal: Viriato. Sobre este, figura controversa do ponto de vista histórico, pouco se sabe sobre a sua vida, onde nasceu, etc. Uma história curiosa também se propõe. Ele seria conhecido, entre os romanos, como o líder da Confederação das Tribos Lusitanas e Celtiberas. Esta fica entre um anedótico visível, por exemplo, nas bandas desenhadas sobre Viriato, para citar apenas o mais evidente. Por outro lado, a revisitação da ascenção e da queda do mito de Viriato coloca este em pleno epicentro da época salazarista.

Por exemplo, Alfredo Athayde, citado por Oliveira (2006), estabelece comparações precisas entre Viriato e Salazar, afirmando “(…) quando o futuro da Pátria se torna brumoso, logo aparece alguém de entre os Portugueses que, com mão firme e corajosa, os sabe conduzir novamente ao caminho da honra e glória (…)”. Lopes Dias (cit. por Oliveira, 2006), aquando da inauguração da estátua de Viriato em Viseu, em 1940, liga também a figura de Viriato a Salazar, sublinhando o facto de serem “ambos homens sós, sóbrios, desprendidos das riquezas materiais”. Está, portanto, também aqui presente um efeito sobre o tempo, tal como o descrevemos. Salazar ressignifica Viriato e Viriato ressignifica Salazar como um novo Viriato. Efeito colossal de que a nossa pátria teve dificuldade em se libertar.

Voltemos agora à nossa prática insuportável da clínica. Começaria por um paciente psicótico, seguido em psicoterapia psicanalítica. Chegou-me depois de ter incendiado o solar pertencente ao pai, como forma de incendiar aquele. Numa sessão, conta-me uma fantasia que teria tido na infância. “Deveria ter sete ou oito anos e, numa tarde de domingo, desci a uma praia com os meus pais. Sentámo-nos num rochedo e de repente pensei o seguinte: O pai ia-me obrigar a contar todos os grãos de areia daquela praia. Enquanto não o fizesse não saía de lá.” O analista perguntou-lhe: “Acha que já saiu da praia? Não será que a sua vida consistiu na tarefa de se perder em contas inúteis e se calhar o seu medo é continuar a fazê-las?”. Neste caso, a interpretação como que criou um efeito de posterioridade, ressignificando a fantasia a partir do presente, mas também por aí ressignificando a realidade atual. Ou seja, produzindo um efeito de anterioridade. Retomando a clínica, observamos que ao nível da fantasia inconsciente também se verifica este binómio posterioridade/anterioridade. Às vezes de uma forma dramática. Uma paciente border seguida em análise, mas, apesar de tudo, capaz de uma inserção social, chega-me numa sessão embriagada. Comportamento que se iria repetir em sessões posteriores. Era difícil de compreender aquela modificação do seu comportamento. Até que ficou claro que a sessão em que apareceu pela primeira vez embriagada se sucedeu a uma em que lhe tinha pedido a modificação de um horário de uma sessão da semana. A paciente vinha às dezassete e quarenta e cinco e a minha proposta, por questões de horário, era que passasse a vir às sete menos um quarto.

Pela utilização da transformação projetiva, a paciente transformou a proposta do analista num seio que tira, em vez de alimentar. Ela vinha às dezassete e quarenta e cinco, ou seja acrescentava algo mais quarenta e cinco, com a modificação passaria para o nível menos, sete menos um quarto. A questão menos/mais transformou o ambiente da análise. Para poder continuar comigo, tinha que se embriagar, de forma a calar a sua parte doente, ou seja, a parte psicótica da personalidade. Uma projeção, uma fantasia inconsciente no analista através de um fenómeno próximo de uma metonímia catastrofisou, no pior sentido do termo, o ambiente da análise. Mas a compreensão do que se tinha passado, trouxe crescimento para a paciente e para o próprio processo terapêutico.

Há uns anos criei um conceito, o objeto psicanalítico modificado. Trata-se de um ponto de partida e de um ponto de chegada. Trata-se, no fundo, de um gerador metafórico. Trata-se também de um objeto criado no aqui e agora da análise. Ou seja, resultante da interação entre analista e analisando, permitindo também o crescimento da teoria adjacente. Aceita o geral, ou seja, os modelos e as teorias científicas imanentes às pré-conceções teóricas, mas só é possível de existir no aqui e agora da análise, e desta forma criando um objeto singular e plural. Correspondem no fundo ao que num outro livro chamei interpretações simbólicas. Estas acontecem quando, de repente, num encontro psicanalítico, um acontecimento, uma história contada, um momento de vida, permite a conjunção constante de um paciente. Pode ser usado em diversas situações que se transformam numa forma de conhecer usando o carril temporal. Cria, portanto, uma interpretação deste tipo: “O olhar da mãe” ou “lá está a boneca”. Tive uma paciente que tinha uma boneca que lhe fazia companhia e à qual tirava os braços e realizava fantasias sádicas. A relação sádica com o objeto que lhe fazia companhia estava condensada naquela boneca, portanto quando ela me contou a história em que isto aparecia (o sadismo e a relação de dependência), interpretava fazendo referência à boneca que tinha um significado particular para a paciente, a referência à boneca, “lá está a boneca”, era introduzida como pontuação do discurso. Evocativa de todas as conjunções constantes emocionais que estavam organizadas e estruturadas previamente. Através do objecto psicanalítico modificado que muda o tempo e o espaço sobre um carril temporal cria-se um tempo e um espaço que antes não existia. O efeito máximo da circulação do tempo é obtido desta forma.

Notas de rodapé

1 Artigo adaptado da conferência proferida no X Congresso AP “O Tempo” (20 e 21 de Abril de 2018), Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa.