Revista | Vol. 9, Dez 2018

O tempo que não passa?

Não vazes tantas vozes rente ao vento
E não escutes os pássaros nem mesmo o mar
Não oiças nem sequer o vento se soprar
Ouve o tempo passar escuta a sua voz
Pois o tempo tem voz o tempo fala

Ruy Belo in “Um dia uma vida”

 

Esta comunicação é dedicada ao Prof. Carlos Amaral Dias porque é o grande obreiro de eu ter podido compreender e viver esta consciência de que há o tempo que passa e o tempo que nunca passa. Consciência que me deu a ousadia para vos apresentar este texto.

E, neste tempo real de 10 anos que tem a AP, é deste tempo que não passa que vos quero falar. Tempo outro que bordeja sempre o outro tempo, o que passa.

Nesta minha intervenção, gostaria que me ouvissem numa postura de devaneio como o jovem, que aparece no quadro de Piero de la Francesca que Jean-Bertrand Pontalis (2004) convoca no seu livro, Le dormeur éveillé, que, de olhos abertos, mas com olhar sonhador e certamente, também, em devaneio, vigia o sono do Imperador Constantino.

Esta minha comunicação é, também, o testemunho da minha admiração pelo pensamento de Jean-Bertrand Pontalis (1997) que, com o seu livro, Ce temps qui ne passe pas, me guiou nestas reflexões.

Quero falar-vos deste tempo que não passa e que, acompanhando o tempo que vai passando, é o tempo onde pertence o inconsciente. Inconsciente que, como afirmou Freud, ignora o tempo.

É o tempo que se ocupa a fazer falar o infans e a fazer calar o factum.

É o tempo da travessia por entre a associação livre.

É o tempo da fantasia e do fantasma que, com toda a sua pujança imaginária, desafiam a ordem das coisas.

É o tempo do pensamento poético de David Mourão Ferreira no seu poema, E por vezes2,

“E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos...
E por vezes encontramos de nós, em poucos meses o que a noite nos fez em muitos anos...
E, por vezes, por vezes, há por vezes num segundo se evolam tantos anos”

É o tempo entre o acabado e o inacabado do desassossego de Fernando Pessoa.

Mas, também, é o tempo do pensamento melancólico da melancolia, onde o vazio de pensamentos conscientes, ou melhor, o nada, se transforma em buraco negro que só permite que a pessoa sinta o terror sem nome, que é inominável.

É o tempo da automutilação e dos cortes no corpo como alívio de uma dor mental insuportável, onde desamparo, desesperança, desamor, não permitem adjectivar o sentir, apenas ter dor inominável.

É o tempo que Pascal Quignard (1990), no seu livro, Albucius, designa por 5ª estação, qual uma pré estação do ano que erra furtivamente durante toda a vida, ensombrando por vezes, ameaçando outras vezes, assediando as outras quatro estações do calendário, visitando subtilmente as atividades do dia, frequentemente sendo visita dos sentimentos, presença constante do sono através dos sonhos, dos devaneios, dessas narrativas onde atraca, ancorando a recordação verbal que se tira desses sonhos, desses devaneios e dessas narrativas internas.

É o tempo desta 5ª estação que, como disse o romancista e dramaturgo francês, Jean Giradoux (1926), no seu livro Bella, quando desabrocha e floresce, dá ameixas às macieiras, framboesas ao carvalho.

É o tempo que, nas travessias que terapeuta e paciente fazem ao longo das sessões de psicoterapia, pertence a certos momentos que nunca pertencem ao factum mas são o tempo do Eu, onde também existe um inconsciente consciente, como Mark Solm (1914) defende. É, ainda, um tempo onde a pessoa não está na sua concretude mas onde, todavia e paradoxalmente, está de verdade, qual oximoro que segue o modelo de Matte-Blanco sobre a estrutura bi-lógica da mente.

É o tempo onde Kant (1798), na sua Antropologia do ponto de vista pragmático, ao referir-se à grande carta do espírito e numa antecipação do inconciente freudiano, coloca o campo, que qualifica como extensíssimo, das “representações obscuras”. Obscuras porque, explicita Kant, só estão iluminados nalguns locais o que, acrescenta, é uma magnífica inspiração para levar o humano a indagar sobre si próprio, sobre o que, em si, lhe está obscuro.

É o tempo de certos traços mnésicos que não estão limitados às memórias nem são, apenas, traços de situações passadas mas informam pelas conexões que os ligam, qual teia ou rede, constituindo-se nos alicerces de uma memória que não teve lugar, não encontrou o seu lugar psíquico mas, como, evocando de novo o pensamento de Jean-Bertrand Pontalis, desenha os contornos de um vazio no íntimo de cada um de nós.

É o tempo necessário ao morrente que substitui o vivente e é o protagonista do texto “Farol” de Carlos Amaral Dias (2009) no seu livro Carne e Lugar. Morrente que, no seu trajecto temporal, entre o nascimento e a morte, sendo o que nasce, o que cria, o que goza, o que procura e o que morre, necessita desse tempo outro para que, estando condenado a viver entre os dois nadas que são o seu nascimento e a sua morte, possa, realizando o seu estado de vida, aspirar a alcançar um estado onde a tensão desaparece. Num tempo onde Freud, como relembra Carlos Amaral Dias, coloca como sinónimos o princípio da constância, (no sentido de estabilidade), o princípio de Nirvana e o instinto ou pulsão de morte. Pulsão de morte que, continuando a evocar Carlos Amaral Dias, é a tendência do aparelho mental para reduzir a zero qualquer excitação interna ou externa.

É o tempo, como também nos diz Carlos Amaral Dias, que permitiu que Pablo Neruda dissesse “Morrer/Viver/Morrer” ou, nos versos que Shakespeare, colocou na voz de Hamlet, quando este estava no auge do desamparo pela morte do pai e pela traição da mãe, “to sleep, to die. To sleep, per chance to dream”.

É o tempo que possibilita, como explicitou Carlos Amaral Dias (2018), na sua comunicação, Posterioridade/ Anterioridade Psicanálise/Nachträglichkeit, que o conceito que define como o objeto psicanalítico modificado, seja um gerador metafórico que permite que esse objecto possa ser ponto de partida e ponto de chegada porque, no tempo real do aqui e agora de um encontro psicanalítico, gera interpretações simbólicas, conceito criado por Carlos Amaral Dias para designar as interpretações que possibilitam que, nesse encontro psicanalítico onde Widlocher (1996) colocou o co-pensamento e a empatia, de repente, um acontecimento, uma história contada, um momento de vida, emerja a conjunção constante emocional do paciente (Carlos Amaral Dias, 2018).

Finalmente (mas nunca há finalmente neste tempo!) e continuando a sermos guiados por Carlos Amaral Dias neste seu texto, é o tempo do encontro psicanalítico dotado de uma permanente ressignificação porque o objeto psicanalítico modificado, com o seu efeito máximo de circulação do tempo, graças a essa permanente ressignificação, mobiliza conjunções constantes emocionais que estavam previamente organizadas e estruturadas e, mudando o tempo e o espaço sobre um carril temporal, permite que seja criado um tempo e um espaço que antes não existia.

Referências

Amaral Dias, C. (2009). Carne e Lugar. Almedina, Coimbra.

Amaral Dias, C. (2018). Posteridade/Anterioridade Psicanálise/Nachträglichkeit. Comunicação proferida no X Encontro AP, 20 de abril.

Widlocher, D. (1996). Les Nouvelles cartes de la psychanalyse. Editions Odile Jacob.

Pontalis, J. B. (2004). Le dormeur éveillé. Éditions du Mercure de France.

Pontalis, J. B. (1997). Ce temps qui ne passe pas. Gallimard, Paris.

 

Notas de rodapé

1 Comunicação apresentada no X Encontro, 20 de abril de 2018.

2 Mourão-Ferreira, D. (1973), Matura Idade, Arcádia