Revista | Vol. 9, Dez 2018

Comentário à conferência do Professor Carlos Amaral Dias

 

Nesta conferência, com a mestria a que sempre nos habituou, o Professor Carlos Amaral Dias oferece-nos a possibilidade de sermos conduzidos pelos meandros da nossa própria intemporalidade, expandindo pela ressignificação em duplo sentido, a cada palavra escrita, os constructos psicanalíticos que poderiam pensar estar a aconchegar-se, cristalizando-se em linearidades que comprometeriam a inscrição volátil da interpretação que rasga o tempo a direito e, simultaneamente, lhe confere significado e, nessa medida, quem sabe… temporalidade.

Obrigando-nos a não perder de vista em momento algum a complexidade de todos os movimentos que opera em simultâneo, despojando-nos das pseudo vestes da narrativa em superfície, rompe como flecha toda a psicanálise, toda a história, num profundo e acutilante acto psicanalítico de ressignificação em duplo sentido… Depois de hoje, sabemos, nunca mais nada será como era antes, e o antes nunca mais será como já foi, ou como julgava ter sido.

Ao ler a sua conferência, não pude deixar de me lembrar de um paciente psicótico que me explicou aquilo a que ele chamava o dia da transformação.

Dizia: “O dia em que já não pude continuar a funcionar, como se o horizonte engolisse, numa só golfada, toda a temporalidade… Até aí era como se o horizonte fosse ao mesmo tempo o fim e o princípio. Tudo a esvair-se naquele sentido em comunhão com o sol. Veja que é um pouco infantil, talvez, o que lhe vou dizer, mas é uma adaptação de uma parábola que me contou o meu avô… Ora imagine, um peixe dos seus 50 e tal anos circula da esquerda para a direita, e dois peixes que circulam da direita para a esquerda em planos paralelos. Um com os seus 5 anos e outro com os seus trinta e tal, encontram-se todos ao mesmo tempo, ou melhor, na mesma linha do tempo, e de fora surge uma voz que pergunta: “Que tal está a água?”. Olham-se todos em simultâneo e exclamam perplexos: “A água?!”, como que tomando consciência pela primeira vez do contexto”. “Percebe?”, pergunta-me ele, e continua “Isto sim, diz, é que é a golfada da anulação do tempo que dá tempo ao tempo pela primeira vez…” (Alucinação de estar grávido – nascer). Resta-me a mim dizer que o desdobramento do peixe na sua temporalidade dá nota da atemporalidade, daquilo que era cognoscimentemente desconhecido, mas quiçá pré-conceptualmente inscrito… Donde surge… Qualquer coisa como um é exactamente isso… É no exactamente isso que se condensa (descondensa) todo o tempo que não se pode constituir na sua temporalidade, criando-se pela descondensação (metáfora – consciência da água) a intemporalidade do que é agora temporal, quem sabe, de certa maneira temporalmente inscrito. (O clique desse momento/instante permite olhar internamente, como que instantaneamente, todos os momentos que até aí não se tinham conseguido conceber e integrar, revelar, reinscrevendo uma nova narrativa).

Creio que nos carris do tempo podemos ser todo o tempo no mesmo tempo… É a descondensação possibilitada pela aceitação da incerteza, o lugar do pai morto, quem vai imprimindo a senda da temporalidade até ao novo temporal.

O lugar da ausência é sítio de presença a partir da qual se suporta a ausência de onde se partiu. O vazio, o lugar onde o tudo foi, pela negação da sua totalidade, causa a dor de se ser, a existência assente na certeza da incerteza e com ela a aproximação aquilo a que chamamos saúde mental… À liberdade inscrita na harmonia que se estabelece nos limites da realidade, pela ética da igualdade, e assim da/a bem da democracia…

Aproximações e afastamentos do epicentro do lugar onde se edificou o totem 

permitem ir ressignificando os lugares onde a ausência foi coisa em si mesma e muitas vezes adquiriu a forma de cripta, abrindo os braços ao pensamento único e totalitário, ao pensamento onde a certeza mascara a ferida para além da ferida e se julga poder ocupar o lugar daquilo que faltou, a parte psicótica da mente? Salazar…Viriato…(pergunto)…

Neste mesmo sentido, e num outro contexto, ouvi várias vezes o Professor Carlos Amaral Dias falar sobre a evidência de que, nem o paciente, nem o analista, podem estar no lugar daquilo que faltou. “Nunca se pode estar no lugar daquilo que faltou” nem daquilo que nos falta. Na história da vida do sujeito, a presença, tendo sido presente, nunca terá sido totalitária. Nunca se teve o todo por inteiro e, como tal, há sempre sítios sem lugar. Também são esses sítios, em quantidade certa, que permitem o desejo – o lugar do ausente para Lacan -, mas também o gosto, o prazer de procurar. Nem paciente, nem analista podem ser materialização do momento que antecedeu a ferida; A intemporalidade interna não é temporalidade externa… Existe o tempo da infância, e esse tempo, na realidade, já passou. Se nos constituíssemos como materialização real do tempo, não poderíamos fazer acontecer o objecto psicanalítico modificado, pois que esse, tal como afirma o professor Carlos Amaral Dias, ocorre no aqui e agora da análise e não numa espécie de capsulite temporal, que retifica por viagem ao passado os acontecimentos presentes e futuros. Cair na anulação do tempo, do desenvolvimento da história, das ramificações da origem, seria simultaneamente despenharmo-nos no desamparo, no sítio da submissão interna – aquele onde nos despojaríamos da condição humana, da liberdade, para ser servos da ordem do que se apresenta em superfície como, possivelmente, uma repetição agida de um mito original… Ou de um desejo pré-totémico inicial… Seríamos totem com vida e, como tal, personificação da morte.

Não seríamos, então, agentes de expansão, atentos aos precipitados e factos selecionados, capazes de encontrar os factos relevantes… Que permitem fazer gerar as conjugações constantes que vão descascando o mito, encascando-o da certeza da mortalidade pela imortalidade simbólica – a cada camada descascada a simultaneidade da existência na certeza psiconeuroimunológica de termos sido encontrados por nós mesmos através, e na companhia, de um outro – tu és tudo em ti mesmo, porque aceitaste não poder ser tudo para além do tempo que o tempo tem… És infinitamente finito na infinitude 

dos teus contornos pela singularidade da tua existência naquilo que te foi reconhecido, mas tão e só isso. Nada mais.

Não posso deixar de voltar ao meu sujeito do inconsciente, talvez ao dizer isto do meu pré-consciente, ou agora consciente, e referir o título do seu livro: Só Deus em mim se opõe a Deus (Amaral Dias).

A jeito de brincadeira, está certo que não é fácil ser-se Homem e humano ao mesmo tempo, já os antropólogos nos demonstram com a sua assunção das três feridas narcísicas da condição humana – antropólogo – primeira, não ser o centro do universo (Galileu e Copérnico), segunda, não ser o centro do mundo - Deus não criou a terra para nós (Darwin)- e, terceira, não sermos o centro de nós próprios (domínio da razão – inconsciente de Freud) e a quarta, tecnologia… Condenados à insignificância, mas claramente significantes num todo. Mas regressando ao encontro analítico, falamos, creio, de sistemas dinâmicos, complexos, não lineares e fenomenológicos presentes a cada momento de análise para romper com as linearidades internas – em todos os lugares onde o totem adquiriu valor real.

Ao longo da sua conferência somos convidados a não temer ser espaço intermédio, órbitas de expansão que se movimentam que nem satélite em torno das várias camadas que operam em simultâneo.

E, assim, tão candidamente, vai-nos lembrando e fazendo recordar que a história é aquela que podemos ouvir e sabemos contar e que adesivarmo-nos a ela seria ficarmos reféns da ideia de que o pai totalitário ressuscitará para ser coisa em si mesma.

A verdade, a memória factual lida como coisa em si mesma, é reintegração e cristalização da condensação do tempo. Não creio ser à toa que se diz por aí que a verdade pode ser estúpida se mal interpretada ou mal direcionada, ou apenas e tão somente auto-referenciada. É por isso que, na análise, lemos aquilo que não foi dito através daquilo que foi dito (verbal ou não verbal) - alfa dream work. Se a palavra torna presente o ausente, é no ausente presente que a palavra transporta ou no espaço que fica entre cada palavra que encontramos o caminho da interpretação e com ela da ressignificação; Daquilo que é dito, recorrendo ao processo de mentalização, de construção simbólica em metáfora real da construção e reconstrução identitária.

Mas de que maneira(s) vamos mediando e construindo entre presenças e ausências uma narrativa que permita manter o sistema vivo e vivente? Se a organização interna se mantém pela reestruturação de uma narrativa que compõe e mantém o mito assente naquilo que não se pode ver – a ausência e suas margens? Nas fantasias que a criança edificou para não se deixar cair no buraco de um totem que por vezes nem sequer se pode chegar a constituir? Criança sem fantasma (Lacan)

Lembro-me também de um paciente que teve um acidente de viação aos 2 anos, acidente este onde a mãe estava grávida e ficou gravemente ferida e imediatamente inconsciente – fantasia da mãe morta – buraco em si mesmo – no lugar do tudo pode, fica o tudo falta – Uns meses depois há alguém que diz ter tido um acidente e surge a evidência “então vai ter um bebé”. Mais tarde na vida a ideia de ter um bebé é aterrorizante e cheira a morte – esboça-se o equívoco do mito, ou seja, desmascara-se a ineficácia do equívoco, e a porta de entrada apresenta-se, reapresentando-se, pronta a ser expandida por ressignificação a caminho da liberdade interna aproximada.

No fundo, como tão bem enuncia o professor Carlos Amaral Dias, em cada “retorno a Freud” a psicanálise sai renovada (Abraham e Torok) e renova Freud. Pelo retorno ao sujeito do inconsciente, o professor Carlos Amaral Dias faz-nos renovar a própria psicanálise – da arqueologia ao sistema vivo – pergunta pela regeneração da parte escotomizada – sabendo que a ferida continua inscrita, se não for bem cicatrizada. Qual é, então, o mito que regenerou a parte seccionada para se manter sistema vivo? No fundo, o que fomos nós capazes de criar para garantir a continuidade interna, o sistema vivo que regenera em superfície a parte que ficou amputada por não poder ser elaborada, mentalizada, vivida - atemporalidade das inscrições psiconeuroimunológicas traumáticas.

É a interpretação que nos pode tirar deste sítio (que é um não sítio, pela espessura da sua hiper-realidade mítica) propondo-nos simultaneamente um novo sítio, onde nos podemos encontrar sendo, alternativa que dá rumo à essência, o tal gerador metafórico, força catapultante/potenciante do futuro. Numa espécie de acto mitopoiético com sentido que se inscreve numa função narrativa identitária.

Como nos afirma e demonstra o professor Carlos Amaral Dias, é assim a circulação máxima do tempo, que se dá pelo arejamento, pela circulação do 

ar até novo e próximo temporal, antecedido por uma outra condensação do tempo que esperamos mais arejada que a condensação original. Mas isto, e tão só, se soubermos discernir quando uma nuvem é só uma nuvem ou condensação à espera de se poder dissipar pela meteorologia adequada (referência ao livro “A Nuvem” da Rita Canas Mendes)

Se não soubermos onde está a boneca (“lá está a boneca”) continuaremos a fazer contas sem saber sair da praia, sem poder sequer imaginar como seria sair da praia, desobedecer ao pai totalitário, sem ouvir qual o estado mental presente na sessão que anseia pela sua dimensão simbólica, não nos resta outra alternativa se não a da rocha aparentemente firme, mas fria, imóvel e amorfa… Seremos, então, presas fáceis de novos, renovados e revigorados não ressignificados viriato-salazares, desprovidos da ganância do prazer e cheios dos vazios da certeza, grávidos ao contrário, prontos a reiterar a coisa em si mesma no lugar onde deveria estar a possibilidade de metaforizar. Seremos agentes patogénicos, inscritos na tentativa de salvar o mito a todo o custo, a história contra toda a prova de que “a história é uma mentira” com que nos embalamos, sempre que não nos souberam/puderam embalar, ou um emaranhado de uma narrativa que se enrola e nos enrola em torno de si mesma, cegos, uma vez mais, aos precipitados e facto selecionado – num caos sem ordem – numa distopia permanente. Penso que talvez o próprio embalo, movimento pendular aconchegado (holding e handling de Winnicott) é que permite suportar a dor que a gravidade imprime se em queda livre. Aquele embalo, que é trampolim e rede ao mesmo tempo, será o propulsionador do movimento que permite a ressignificação da livre circulação do tempo, em duplo sentido. O movimento inscrito, no e pelo embalo, é a raiz da metáfora e do carril do duplo sentido. O movimento pendular do embalo suportado por baixo, não é um movimento linear, mas sim inscrição do pensamento circular e complexo, no jogo que fica entre o desejo absoluto e a queda livre sem termo.

Mas quando o perigo espreita e o embalo foi mimético, arritmado ou inexistente, tendemos a ousar crer na ressurreição daquilo que na verdade nos aniquilaria. Sem prazer, sem liberdade, em pseudo-vida, em pseudo-morte. Tendemos a querer aconchegar-nos na certeza de alguém que reafirma que o embalo e o amor é para os fracos, e que dos fracos não reza a história. É preciso saber fazer expandir a parte saudável da mente, a parte da mente 

que sabe, muito antes de saber, pelas expectativas inatas, que é exactamente o embalo do prazer quem pode pela primeira vez fazer história, ficando na e para a história (ressignificação).

O presente vivido com e sobre o passado.

O abraço do totalitarismo é de mármore e congela… As expectativas inatas sabem que não encontraram o abraço certo (mas sim o possível), e mais cedo ou mais tarde vão reaparecer para dar novos rumos à história, “novos mundos ao mundo”.

Porque é no lugar que inquieta Hamlet que podemos encontrar a inquietude que dá vida à vida e nos leva a novos e revigorados lugares. Sem ela… seríamos apenas agentes miméticos de uma pálida realidade.

E agora, por tudo isto, e por tudo aquilo que não fui capaz de ver e que ainda não consegui encontrar, queria expressar ao professor Doutor Carlos Amaral Dias a minha mais profunda e maior gratidão pela grandiosidade e densidade da sua conferência, que é em si mesma um acto generoso de ressignificação (em duplo sentido e ou em triplo, já que extravasa os limites da relação).