Revista | Vol. 8, N. 1, Dez 2017

Para além do pensamento cartesiano

Quereis primeiro tornar pensável tudo quanto existe: porque duvidais com justa desconfiança que tudo seja antecipadamente pensável.”
Nietzsche (1883), “Assim Falava Zaratustra”

No princípio

No princípio não será o Verbo. Esse, tendencialmente, aparece numa fase posterior. Posterior a quê? Ao início do tempo da existência de cada um de nós. Como nos diz Antonino Ferro (1995) “As fantasias mais primitivas não são de natureza verbal. No início serão corporais, depois visuais e, finalmente, exprimíveis em palavras” (p. 85).

E, de tempos a tempos, surge uma palavra, uma frase, uma ideia, um conceito que, por motivos algo estranhos, são adoptados pela grande maioria da espécie humana e tendem a influenciar as nossas vivências daí em diante.

Habitualmente designamos estas “máximas” ou “frases feitas” por aforismos. Um dos mais conhecidos e, provavelmente, um dos que maior influência tem tido na nossa aventura como espécie nos últimos quase 380 anos é o célebre “Cogito Ergo Sum”, talvez mais conhecido por “Penso, logo existo”.

Os aforismos possibilitam-nos, normalmente de forma clara, concisa e simples, compreender conceitos que, doutra forma, se tornariam demasiado complexos ou extensos para grande parte das nossas necessidades quotidianas. São comumente aceites pela maioria de nós e usamo-los para nos referirmos à ideia ou ao conceito que lhes esteve inicialmente associado ou, ao longo dos tempos, adaptamo-los a novas ideias e a outras formas de elaboração intelectual. Usamo-los ainda, muitas vezes, em sentido figurativo, simbólico ou irónico por considerarmos que resume bastante bem algo em que pensamos ou de que nos lembramos.

No entanto, como em quase tudo o que constitui a nossa existência, há um “reverso da medalha”. E esse reverso estará relacionado com as barreiras que impomos a nós próprios ao utilizarmos os tais aforismos. Tentando explicar melhor, cada vez que usamos a tal frase feita, restringimos o nosso pensamento e, eventualmente, a nossa capacidade de decisão e acção. Ou seja, damos por adquirido que o aforismo se constitui como uma espécie de verdade fundamental e tendemos a menosprezar ou a ignorar outras ideias, outros conceitos e outras formas de pensar que poderiam emergir caso estivéssemos predispostos a tal. Mas, por vezes, pode ser-nos mais conveniente ficar pelo que, actualmente, se costuma designar por “zona de conforto” e limitamo-nos a ir repetindo o que aprendemos ou nos foi ensinado numa espécie de, como talvez pudesse dizer Freud, compulsão linguística à repetição.

O aforismo “Penso, logo existo” encerra em si um conceito que se tornou fundamental na cultura ocidental e surge pela primeira vez em 1637 na forma “Je pense, donc je suis” na célebre obra de René Descartes O Discurso do Método. Na realidade, só em 1644 aparece na sua forma latina, anteriormente referida, noutra obra do mesmo autor designada por Princípios da Filosofia.

A influência deste conceito tem sido por demais evidente, e nalguns casos redutora, nas mais variadas áreas do saber e do conhecimento, tendo implicações na forma como temos desenvolvido várias teorias, técnicas e práticas. Implicações nas nossas formas de pensar e, portanto, como diria Descartes, de existir.

A psicanálise preocupa-se intrinsecamente com a existência humana nas suas variadas formas. Também esta área do conhecimento não tem sido totalmente imune ao lado redutor do aforismo Cartesiano.

Numa altura em que vivemos submergidos num mundo de informação abundante e de emoções várias, talvez esteja a haver pouco espaço e pouco tempo para o pensamento e, como tal, também para a existência. Mas, talvez a existência não se resuma simplesmente ao pensar. Talvez haja algo para além disso...

A abordagem que este trabalho pretende fazer não se constituirá, garantidamente, como um aforismo, nem tampouco será uma abordagem original. Na realidade, o que se tem escrito, directa ou indirectamente, à volta do “Cogito Ergo Sum” Cartesiano é imenso. Como exemplo disso, e citando António Damásio (1994/2000) na sua obra O Erro de Descartes:

“E para nós, no presente, quando vimos ao mundo e nos desenvolvemos, começamos ainda por existir e só mais tarde pensamos. Existimos e depois pensamos e só pensamos na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas e operações do ser” (p. 254).

No entanto, pretende-se, seguindo o trilho de Descartes, tentar acrescentar um olhar outro sobre este aforismo fundamental do pensamento e da existência ocidentais, evidenciando que o Existir humano encerra em si mesmo algo mais que o “simples” Pensar...

No trilho de descartes

René Descartes nasce a 31 de Março de 1596 em La Haye en Touraine (actual Descartes), na região de Centre-Val de Loire em França. Com 10 anos de idade entra para o Colégio dos Jesuítas, em La Flèche, fundado por Henrique IV. A 6 de Junho de 1611, aquando as cerimónias de comemoração do aniversário de transladação do coração de Henrique IV para o Real Colégio de La Flèche, Descartes lê um poema de sua autoria em que são saudadas as descobertas de Galileu Galilei que, na senda de Copérnico, muito terá influenciado Descartes.

Estes três autores viram os seus escritos proibidos ou até mesmo incluídos no célebre Index Librorum Prohibitoru (Índice dos Livros Proibidos pela igreja católica e que só foi abolido em 1966). Copérnico pela sua Teoria Heliocêntrica, Galileu por defender o modelo heliocêntrico de Copérnico é condenado por heresia em 1663, e as “Opera Philosophica” de Descartes tiveram, por decreto de 20 de Novembro de 1663, também como destino o INDEX com a observação “até que sejam corrigidas”. Parece que o processo continua em curso…

E é precisamente neste ponto que a obra de Descartes ganha uma dimensão fundamental em todo o pensamento da cultura ocidental desde 4 de Maio de 1637, data da sua autorização para publicação em França. Pela primeira vez uma obra é publicada na língua original e não em latim, e tem o mérito de revolucionar o pensamento vigente à época, deslocando o foco de um Deus omnipresente e omnipotente para o Ser Humano Pensante e racional que, por isso mesmo, existe e é capaz de se interrogar e de duvidar. É também este ser pensante e racional que é imperfeito e que, por isso mesmo, leva Descartes, ainda, à prova da existência de Deus. Ou talvez as razões tenham sido outras e estejam relacionadas com o próprio processo de Galileu junto da Inquisição. Quer em relação à publicação original em francês, quer em relação ao processo de Galileu, Descartes faz referências, explícitas e implícitas na 6ª parte do Discurso do Método. Se, por um lado, Descartes (1637/2001) na sua 3ª parte do Discurso tenta ir ao encontro do status quo vigente quando nos diz

“(…) formei para mim uma moral provisória que consistia em apenas três ou quatro máximas que gostaria de vos expor. A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, conservando com constância a religião na qual Deus me deu a graça de ser instruído desde minha infância, e governando-me, em qualquer outra coisa, segundo as opiniões mais moderadas e mais afastadas do excesso, que fossem comumente aceitas e praticadas pelas pessoas mais sensatas entre aquelas com quem teria de conviver (...) Assim, meu propósito não é ensinar aqui o método que cada um deve seguir, para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo procurei conduzir a minha” (p. 7).

E Descartes tentou conduzir a sua razão empregando a dúvida metódica analisada segundo as regras racionalistas do seu método e chegando à realidade existente por via exclusiva dessa racionalidade. É exactamente dessa forma, e na 4ª parte do Discurso, que chega ao aforismo já referido e que tanto tem influenciado o nosso pensamento.

É muito curioso verificar algumas das ideias que surgem nesta 4ª parte do Discurso e que, talvez sem grande esforço, venham a ser percursoras de alguns dos conceitos psicanalíticos posteriores, nomeadamente no que concerne à importância dos sonhos e às noções presentes na 2ª tópica Freudiana, concretamente dos conceitos de Inconsciente e Superego.

Vejamos as próprias palavras de Descartes que, finalmente, o conduzem ao “Penso, logo existo!”.

“E, finalmente, considerando que todos os pensamentos que temos quando acordados também nos podem ocorrer quando dormimos, sem que nenhum seja então verdadeiro, resolvi fingir que todas as coisas que haviam entrado em meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas logo depois atentei que, enquanto queria pensar assim que tudo era falso, era necessariamente preciso que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade - Penso, logo existo - era tão firme e tão certa, que todas as mais extravagantes suposições dos cépticos não eram capazes de a abalar, julguei que podia admiti-la, sem escrúpulo como o primeiro princípio da filosofia que buscava.” (…) De sorte que este eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer que ele, e , mesmo se o corpo não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é” (ibid., pp. 38-39).

Em seguida, pela imperfeição presente no Homem e pela rejeição do “génio maligno” que nos fazia crer que seria real o imaginário (uma espécie de Id Freudiano?), Descartes deduz a existência de um ser “infinitamente perfeito” e de “um supremo legislador da lei moral” (um conceito próximo do Superego?) - Descartes chamou-lhe Deus, mas este não é agora o tema desta conversa.

Verifica-se, assim, o nascimento dum conceito que justifica a existência humana assente num pensamento racional e dedutivo, sem qualquer ligação ao corpo ou aos sentidos. A dicotomia “res cogitans” (coisa pensante) - “res extensas” (coisa extensa – corpo/matéria, corpo/máquina) passa a constituir-se como uma fonte de discussão que, arrisca-se dizer, chega aos nossos dias com alterações não muito significativas e, talvez, ainda aquém do desejável.

O Homem Cartesiano é exclusivamente um ser pensante e o seu autoconhecimento é, fundamentalmente, conhecimento do seu pensamento. O corpo é somente mecânico e sujeito ao movimento.

Descartes é ainda bastante evasivo no que respeita a referências às pulsões e aos sentimentos. Apesar de fazer uma breve referência a ambos nas 2ª e 5ª partes do Discurso, estes conceitos não constituem o fundamental da sua obra e, por isso mesmo, não tem sido poupado a críticas mais ou menos severas, quer em tempos mais remotos, quer em tempos mais recentes.

No que às pulsões diz respeito, contempla-nos com a ideia abaixo que se reveste de grande interesse psicanalítico e nos transporta, embora à distância, aos Complexos de Castração e de Édipo Freudianos, por um lado, e às fantasias primárias de Klein, por outro:

“(…) por todos nós termos sido crianças antes de sermos homens, e por termos precisado ser governados muito tempo por nossos apetites e por nossos perceptores, frequentemente contrários uns aos outros (…) é quase impossível que nossos juízos sejam tão puros e sólidos como teriam sido se tivéssemos tido inteiro uso de nossa razão desde a hora de nosso nascimento, e se tivéssemos sido conduzidos sempre por ela.” (ibid.,  p. 17).

A propósito de sentimentos, e de forma algo evasiva, diz-nos ou tenta dizer-nos:

“Depois disto, eu descrevera a alma racional, e mostrara que ela não pode de modo algum ser tirada do poder da matéria (…), mas que deve expressamente ser criada; e que não basta estar alojada no corpo humano (…), mas que precisa estar mais estreitamente ligada e unida a ele, para ter, além disso, sentimentos e apetites semelhantes aos nossos, e assim constituir um verdadeiro homem”  (ibid.,  p. 66).

Parece, apesar de toda a racionalidade presente, haver uma certa necessidade de Descartes em admitir qualquer coisa similar a uma junção da alma com o corpo…

Vamos então tentar, permanecendo o mais possível no trilho de Descartes, analisar um pouco melhor as implicações deste “res cogitans” algo divorciado do corpo e dos sentimentos humanos. Talvez uma boa forma de o fazer seja, à maneira de Descartes, tentar percorrer um caminho de crítica metódica e “(…) rejeitar como absolutamente falso tudo em que pudesse imaginar a menor dúvida (...)” (ibid., p. 37).

Muitos foram os que criticaram e se opuseram a esta dicotomia Cartesiana res cogitans - res extensas. Os primeiros que se opõem directamente a Descartes serão os empiristas ingleses John Lock e David Hume que, muito resumi-
damente, defendem que “Nada existe no intelecto que, primeiramente, não tenha estado nos sentidos” (Guimarães, 1984, p. 28).

A separação entre um mundo interno onde há lugar para o pensamento e um mundo externo completamente separado do primeiro e do qual não se pode ter qualquer conhecimento nem saber, sequer, se ele existe, tem provocado uma acentuada clivagem em todo o pensamento ocidental.

Como refere Neville Symington (1986/1999):

“Os existencialistas têm tentado reparar esta clivagem. Homem e mundo não são duas entidades separadas mas sim uma única realidade, a do homem-no-mundo (…). Os existencialistas também não aceitam a separação entre a esfera cognitiva e a das sensações. O homem faz parte do mundo e conhece-o através dos seus sentidos, dos seus sentimentos e dos seus juízos de valor.” (p. 29).

Por outro lado, a conjugação do pensar e do sentir tem-se revelado fundamental ao saber e à prática psicanalíticas. Como nos lembra Coimbra de Matos (2002):

“A posição analítica é uma atitude flutuante e livre entre o pensamento secundário de tipo lógico-reflexivo (…) e um tipo de pensamento primário intuitivo-englobante. (…) Portanto, um funcionamento mental equidistante e superlativo do núcleo obsessivo ou «filosófico» (sem desprimor para os verdadeiros filósofos – amigos do autêntico saber) e do núcleo histérico ou filotímico (dos amigos do «sentir»); um funcionamento que integra a razão e o afecto” (p. 143, nota de rodapé nº2) (…) dois tipos fundamentais de resistência de transferência – a resistência à transferência e a resistência pela transferência; que recobrem duas formas de associação livre anteriormente individualizadas por Otto Fenichel: os doentes do muito pensar e os do muito sentir. Estes dois comportamentos analíticos definem as estruturas do Eu obsessiva e histero-fóbica” (p. 145).

Ainda na mesma linha de pensamento, há autores que defendem a importância de o analista manter constantemente dentro de si esta equidistância entre o pensar e o sentir, por forma a poder genuinamente empatizar com os pacientes e compreender verdadeiramente o mundo psíquico destes últimos numa dinâmica relacional constante. A propósito desta dinâmica constante, “Casement (1985), seguindo Fliess (1942), usa a expressão «identificação experimental» e sugere que o analista tem de manter uma clivagem benigna dentro de si próprio para permitir uma interacção constante entre sentir e pensar, entre ele próprio e o paciente, e entre a sua experiência e os acontecimentos de que o paciente fala.” (Bateman e Holmes, 1998, p. 104).

Parece que lentamente nos encaminhamos para algo que, não rejeitando o aforismo Cartesiano, o complementa. Parece que o Pensar, só por si, talvez seja um pouco redutor do Existir humano. E distingue-se aqui o existir humano doutras formas de existência porque, como nos diz Damásio (1994/2000) “(…) os organismos simples que possuem apenas corpo e comportamento, mas estão desprovidos de cérebro ou de mente, ainda existem e são, de facto, bastante mais numerosos que os seres humanos em várias ordens de grandeza” (p. 106).

Seres humanos que, como sugerido na parte introdutória deste trabalho, vivem submergidos num mundo de informação abundante e de emoções várias e talvez estejam a dispor de pouco espaço e pouco tempo para o pensamento e, como tal, também para a existência. Assim sendo, pode ter alguma relevância modificar um pouco esta frase e dizer antes que está a haver pouco espaço e pouco tempo para o pensamento e para o sentimento e, como tal, também para a existência. Mas, partindo do princípio que há emoções várias, como afirmar também que há pouco espaço e pouco tempo para o sentimento?

Como vários autores sugerem, pode fazer-se uma distinção entre emoção e sentimento.

Para Damásio (2000b):

“O impacto humano de todas essas causas de emoções, refinadas e não tão refinadas, e de todas as nuances de emoções sutis ou não sutis que elas induzem depende dos sentimentos engendrados por essas emoções. (…) o impacto integral e duradouro dos sentimentos requer a consciência, pois somente em conjunção com o advento de um sentido do self os sentimentos tornam-se conhecidos pelo indivíduo que os tem.” (p. 73).

E, na mesma obra, mas muito mais adiante, acrescenta:

“Essa perspectiva sobre a emoção, o sentimento e o conhecimento é heterodoxa. Primeiro, estou sugerindo que não existe um estado de sentimento central antes de ocorrer a respectiva emoção, que a expressão (emoção) precede o sentimento. Segundo, estou sugerindo que «ter um sentimento» não é o mesmo que «conhecer um sentimento», que a reflexão sobre o sentimento situa-se numa etapa adiante” (p. 548).

Ou seja, Damásio sugere-nos que as emoções precedem os sentimentos e que estes últimos, por forma a que causem um impacto integral e duradouro no indivíduo, requerem uma consciência que permita que, após serem sentidos possam ser conhecidos, havendo para isso necessidade de haver um sentido do self. Voltaremos a esta noção muito em breve, mas, de momento, ficamos com a ideia de que, nesta noção da Existência humana, são fundamentais o Pensamento e o Sentimento.

Por outro lado, será ainda importante nesta consciencialização do caminho da emoção para o sentimento, ter em atenção que, conforme nos sugere Neville Symington (1986/1999),

“O emocional é a terra na qual cresce a planta que é o indivíduo. O emocional é essencialmente um fenómeno de grupo. O emocional é inflamado pela personalidade parcial. É um mundo de encontros parciais entre objectos. O símbolo ocorre apenas quando um ego começa a diferenciar-se a partir da amálgama emocional. (…). Se alguém ainda está submerso na amálgama amorfa da emoção, então, o que é visto não é um símbolo. Se eu estiver fundido com o meu objecto de amor primário, então não poderei distinguir entre um símbolo e o objecto por ele simbolizado.” (p. 154).

Podemos agora sintetizar um pouco, sugerindo portanto que a Existência humana implica não só um pensamento racionalista de tipo cartesiano, mas algo com carácter mais existencialista que terá origem também nas emoções humanas que se prestam a uma consciência que permite “conhecer“ os sentimentos e que, por uma espécie de processo de diferenciação e de individuação dos nossos objectos parciais, nos permite aceder a um simbólico que dinamicamente se vai transformando e nos permite transformar o mundo do qual fazemos parte integrante como um todo coeso e não separado entre razão e extensão como Descarte inicialmente propunha.

Para além do pensamento cartesiano

Descartes teve o grande mérito de, no Séc. XVII, descentrar a vivência humana de um Deus todo poderoso, omnisciente e omnipresente. Não se desfez, de todo, desse Deus, mas dispensou-o completamente na forma de pensar o Ser Humano. No entanto, a sua célebre afirmação

“sugere que pensar e ter consciência de pensar são os verdadeiros substractos do existir. E, como sabemos que Descartes via o acto de pensar como uma actividade separada do corpo, esta afirmação celebra a separação da mente «a coisa pensante» (res cogitans), do corpo não pensante, o qual tem extensão e partes mecânicas (res extensa)” (Damásio, 1994/2000, p. 254).

E, para Damásio, é esta enorme separação entre o corpo e a mente que se constitui como o “Erro de Descartes” e que é abordado largamente na sua obra com o mesmo nome.

Numa outra obra sua, reforçando esta ideia do “Erro” afirma ainda “O fato inescapável e notável no que concerne a esses três fenômenos — emoção, sentimento e consciência — é sua relação com o corpo” (Damásio, 2000b, p. 548).

A mesma ideia foi-nos também transmitida por Freud  (1923/1980) no trabalho que dá origem à 2ª Tópica, “O Ego e o Id”, onde Freud exclama “O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal” (p. 17).

Damásio( 1994/2000), a propósito do corpo e dos sentimentos, diz-nos que “Os sentimentos permitem-nos mentalizar e cuidar do corpo (...)” (p. 172).

Parece, pois, evidente que, para vários autores, o corpo não pode e não deve ser separado da Existência e que a mesma está relacionada não exclusivamente com o pensamento, mas também, garantidamente, com os sentimentos humanos.

Estas duas palavras – pensar e sentir - juntamente com a dinâmica e a complementaridade existente entre elas, têm sido, e continuam a ser, de extrema importância na Psicanálise. Interessa-nos sobretudo o que pode advir desta dinâmica, desta complementaridade e o que fica em falta quando a mesma não se verifica.

Coimbra de Matos (2002) alerta-nos para o problema das “(…) personalidades imaturas, borderline, narcísicas, anti-sociais. Ficam-se pela sensação. O conhecimento transcende-as” (p. 240).

No que respeita a sensações, Damásio (1994/2000) sugere-nos uma “Variedade de Sensações” e propõe-nos que exista

“(…) uma outra variedade de sentimentos que suspeito ter precedido as outras na evolução. Chamo-lhe sentimento de fundo (background) porque tem origem em estados corporais de «fundo» e não em estados emocionais (…) sem eles o âmago da nossa representação do self seria destruído. (…) A continuidade dos sentimentos de fundo encaixa-se no facto de o organismo vivo e a sua estrutura serem contínuos enquanto for mantida a vida.” (pp. 164- 165 e p. 168).

Damásio (2000b) acrescenta ainda algo que parece ser fundamental na compreensão dos sentimentos. Diz ele:

“Mas em organismos equipados com consciência, ou seja, capazes de saber que têm sentimentos, existe ainda outro nível de regulação. A consciência permite que os sentimentos sejam conhecidos e, assim, promove internamente o impacto da emoção, permite que ela, por intermédio do sentimento, permeie o processo de pensamento” (p. 113).

Damásio parece sugerir-nos algo como um Aparelho para Sentir Sentimentos que passará necessariamente pela consciência o que, inevitavelmente, nos lembra o conceito Bioniano de Aparelho Para Pensar os Pensamentos.

E, tal como Bion sugere, é fundamental esta noção da não separação entre pensamentos e sentimentos. Como nos lembra Neville Symington (1999) “A conclusão a que se chega, quando se pensa neste aspecto fulcral de Bion, é simplesmente esta: travo uma dura batalha contra o vir a conhecer aquilo que penso e sinto. Existem forças poderosas que me impedem de conhecer o que eu penso e o que eu sinto; existe um impulso forte que me impede de o fazer” (p. 233).

No entanto, “«o verdadeiro» insight ou o «ver por dentro» se encontra entre os pólos constituídos pelas emoções e o intelecto” (Bateman e Holmes, 1998, p. 166), é fundamental que o analista facilite este processo junto dos seus pacientes.

Como nos diz Antonino Ferro (1995): “É dever do analista mediar as várias vozes em conflito, permitindo que cada uma delas possa continuar a ser ouvida” (p.145).

Coimbra de Matos (2002) refere, a este propósito, que “O analista não é, não deve propor-se como um modelo de identificação. É, sim, um ser pensante que ajuda o paciente no seu processo de pensar-se, descobrindo a sua identidade profunda idiomórfica (...)” (p. 244), por forma a que os pacientes possam ir ao encontro da Sua Verdade que será, como sugere Bion, o “Alimento da Mente” e que, arriscamos dizer, permitirá uma Existência outra.

Ajudar o paciente nesta busca da Verdade será a verdadeira função do analista. Inicialmente passará por acolher o paciente, ajudá-lo a pensar-se, ajudá-lo a dar um sentido à sua, do paciente, existência, ajudá-lo a nascer de novo. Será o Verbo. “Esse, tendencialmente, aparece numa fase posterior.” Sugere-se que essa fase posterior seja agora. Quando passa a ser possível o acesso ao simbólico, ao Verbo, às palavras.

Como nos diz Coimbra de Matos (2002): “Falamos, simbolizamos, e, com tão magnífico instrumento de relação, abraçamo-nos, desvendamos o universo, construímos teorias. (…) Homo sapiens sapiens – que sabe e reflecte – não é apenas o construtor de civilizações, mas o criador de cultura” (p. 252).

Como nos diz ainda Ferro (1995): “(…) as palavras têm função de agregação e organização, até permitirem que delas derivem formas e estruturas: essas figurações narrativo-afectivas, que mudam com a variação da posição relacional, são o único modo que têm as mentes de descreverem para si mesmas o que acontece entre elas” (p. 146).

Temos vindo a percorrer um caminho desde o pensar racionalista cartesiano que, talvez, nos possa levar um pouco mais além no nosso conceito de Existir.

Citando uma última vez Coimbra de Matos (2002) quando, com a capacidade de resumo extraordinária que lhe é sobejamente reconhecida nos diz, para além do pensamento cartesiano:

“Penso em função do que sinto, desejo e espero ou receio e evito. Se não sentisse, não teria apetência para conhecer. Se não desejasse, qual o motivo para me pôr a pensar? Penso porque existo. E continuo pensando porque estou em relação com os outros; sobretudo porque amo – alguém, sempre alguém; só a mim cansava-me depressa – e deixaria de pensar.” (p. 199).

O caminho foi longo. (Não é sempre?!). Do “Penso, logo Existo” de Descartes, que tanto tem influenciado a nossa cultura ocidental, deambulámos por vários locais e autores na tentativa de explorarmos um pouco mais o Existir humano e talvez se tenha ido um pouco mais além. Talvez se tenha conseguido complementar o racionalismo e o dualismo cartesianos, não porque eles estejam errados, mas porque não nos são suficientes…

Para nos pensarmos, para nos sentirmos, para termos acesso ao simbólico e à fantasia e para nos ser possível agir e criar connosco próprios e com o Outro

Como nos diz Ferro (1995) a propósito do seu paciente André “Quando nasci havia alguém, havia uma mente que me acolhesse, que me pensasse, que desse um sentido a todo aquele non sense no qual me encontrava envolto” (p. 96).

Será através desta relação simbiótica inicial e primitiva que tudo pode começar para, lentamente, nos aproximarmos duma crescente autonomia e individuação. Como nos chama a atenção Badaracco (1985) quando nos diz “De la simbiosis primitiva, a través de un proceso de desindiotización se llega a una creciente individuación y autonomía” (p. 505).

De regresso à primeira linha deste trabalho, foi dito que o Verbo aparece numa fase posterior. Que essa fase surja em permanente fonte dinâmica de liberdade, criatividade, renovação e amor. Para nos ser possível ir além da “cultura da queixa” e Existir um pouco mais e melhor!

REFERÊNCIAS

Badaracco, J.G. (1985). Identificación y sus vicisitudes en la psicosis. La importancia  del  concepto de “objeto enloquecedor”. Rev. de Piscoanálisis Arg. 42, 495- 514.

Bateman A., Holmes J. (1998), Introdução à Psicanálise – Teoria e Prática Contemporâneas (T. Abreu, Trad.; P. Casquinha, Rev. Técn.). Lisboa: Climepsi Editores. (Obra original publicada em 1997).

Damásio, A. (2000a). O Erro de Descartes – Emoção, Razão e Cérebro Humano (D. Vicente e G. Segurado, Trad.). Portugal: Publicações Europa-América. (Obra original publicada em 1994).

Damásio, A. (2000b). O Mistério da Consciência – Do Corpo e das Emoções ao Conhecimento de Si (L. Motta, Trad.; L. Castro, Rev. Técn.).  São Paulo, Brasil: Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1999).

Descartes, R. (2001). Discurso do Método (M. Galvão, Trad.; M. Stahel, Rev. Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Obra original publicada em 1637).

Ferro, A. (1995). A Técnica na Psicanálise Infantil. A criança e o analista: da relação ao  campo emocional (M. Justum, Trad.; R. Bisuollini, Rev. Técn.).  Rio de Janeiro, Brasil: Imago. (Obra original publicada em 1995).

Freud, S. (1980). O Ego e o Id e Outros Trabalhos (1923-1925). In Edição Completa Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud (Vol. XIX, pp. 3-41). Imago. (Obra original publicada em 1923).

Guimarães, T. (1984). Descartes, Discurso do Método. Porto Editora.

Matos, A.C.  (2002). Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica. Lisboa: Climepsi Editores.

Nietzsche, F. (2000). Assim Falava Zaratustra (A. Margarido, Trad.). Lisboa: Guimarães Editores. (Obra original publicada em 1883).

Symington, N. (1999), A Experiência Analítica (M. Pinto, Trad.). Lisboa: Climepsi Editores. (Obra original publicada em 1986).

Notas de rodapé

1. A filosofia medieval distinguia no homem três almas: a vegetativa (nutrição, crescimento e reprodução), a sensitiva (princípio de sensação – psiquismo animal) e a racional (princípio do pensamento). Para Descartes só é “alma” o princípio racional (Tavares Guimarães, 1984, p. 105, nota de rodapé nº 29)

Resumo

O aforismo de Descartes ”Penso, logo existo!” tem-se revelado de extrema importância em todo o pensamento ocidental e tem influenciado fortemente várias áreas do conhecimento. No entanto, talvez seja vantajoso irmos para além deste aforismo e procurarmos a Existência não só no Pensar, mas também no Sentir. Não só no pensamento, mas também no sentimento e na dinâmica corpo-mente. Para nos pensarmos, para nos sentirmos, para acedermos ao simbólico e para nos ser possível agir e criar connosco próprios e com o Outro em permanente fonte dinâmica de liberdade, criatividade, renovação e amor. Para nos ser possível ir além da “cultura da queixa” e Existir um pouco mais e um pouco melhor!

TITLE

Beyond Cartesian Thought

Abstract

Descartes aphorism “I think, therefore I am!”, has proved to be of extreme importance in all Western thought and has strongly influenced various areas of knowledge. However, it may be advantageous to go beyond this aphorism and seek Existence not only in Thinking but also in Feeling. Not only in thought, but also in feeling and body-mind dynamics. For us to think, to feel, to access the symbolic and to be able to act and create with ourselves and with the Other in a permanent dynamic source of freedom, creativity, renewal and love. To be able to go beyond the “culture of complaint” and to Exist a little more and a little better!

Key Words

Descartes, think, feel, body, mind, exist