A abordagem dinâmica oferece-nos várias teorias e quadros explicativos de como a estrutura psicológica do indivíduo é formada e mantida (ou não) ao longo da vida. Mais do que descrições, conta-nos histórias de como tudo pode acontecer. A prática da psicoterapia psicanalítica e da psicanálise, e a observação directa de bebés e de díades mãe-bebé, confirmam as teorias postuladas por autores que ficaram na história.
O insucesso escolar é uma realidade importante nas escolas e, principalmente, na vida de muitas crianças e famílias. O esforço que o país tem feito para evoluir em termos de anos de escolaridade obrigatória, literacia, combate ao abandono escolar precoce, aumento das habilitações, não pode deixar de lado uma fatia da população. Assim, as decisões tomadas em relação à legislação e à forma de a aplicar são de enorme importância e deverão ser baseadas em informação científica credível e de qualidade. A psicologia clínica dinâmica tem um leque vasto de conhecimento acumulado que pode contribuir em muito para trabalhar melhor com as crianças que apresentam insucesso escolar sem uma explicação que passe por diagnóstico de deficiência ou déficit cognitivo.
João dos Santos (1957, 1983, cit por Branco, 2000; Lobo, 2007; Lobo, 2009) afirma que a sua experiência de observação e trabalho com crianças com dificuldades escolares não derivadas de deficiência e outras, o levou a concluir que o enquadramento teórico que mais ajuda na sua compreensão é o psicodinâmico.
Quem tem experiência clínica sabe que muitos dos pedidos de avaliação psicológica e/ou acompanhamento psicológico para crianças e adolescentes partem da constatação das dificuldades escolares. Strecht (2001) confirma esta ideia afirmando que “a capacidade de aprendizagem é uma das primeiras áreas a ficar afectada no seu funcionamento, sempre que há uma perturbação emocional” (p. 244).
Indo mais longe, existem perigos objectivos de rotular e aplicar medidas tradicionais de ensino especial a crianças que não têm deficiência mental, podendo contribuir para instalar as dificuldades de forma definitiva. Nas palavras de João dos Santos (1957, 1983), “o chamado ensino especial, não devidamente aplicado, pode conduzir a uma espécie de debilidade mental adquirida, ou demenciação, por mecanização das aprendizagens básicas da leitura, escrita e aritmética.” (cit por Branco, 2000, p. 116)
Nas palavras de Strecht (2001), “na maioria dos casos o que está em causa não são falhas do ponto de vista cognitivo, mas sim a ausência de um bem-estar emocional que crie disponibilidade interior para manter vivo um desejo de conhecer e prazer de aprender.” (p. 243).
Esta é também a minha experiência. No tempo em que trabalhei em escolas, o primeiro e principal pedido dos professores eram as avaliações psicológicas a crianças com dificuldades de aprendizagem e com problemas de comportamento. Essas avaliações raramente resultavam num diagnóstico de déficit cognitivo. Para além das questões de “ensinagem” (Morgado, 2015), as questões emocionais (muitas vezes acrescentadas ou potenciadas por situações sociais graves) eram as mais frequentes. Este cenário levanta grandes dificuldades na escolha e aplicação das medidas previstas na lei das Necessidades Educativas Especiais, que não contemplam este tipo de situações. E aqui reside a importância de um outro olhar sobre este problema.
Vários autores da área da psicanálise escreveram sobre o desenvolvimento do pensamento e da cultura. Olhando para um passado mais longínquo vemos que, desde a antiguidade, as crianças que eram educadas formalmente iniciavam essa educação aos sete anos de idade. Na Grécia Antiga, os meninos eram inseridos em instituições aos sete anos de idade, onde lhes era atribuída uma identidade e uma função. Os rapazes Espartanos eram retirados das famílias aos sete anos para ingressarem escolas-ginásios onde recebiam formação militar. A educação ateniense, mais voltada para a intelectualidade, era também iniciada aos sete anos. Na Roma Antiga a educação da criança cabia à mãe até aos sete anos e depois exclusivamente ao pai. Na Idade Média os rapazes e as raparigas nobres ficavam em casa até aos sete anos e depois passavam a viver com um nobre que lhes dava a educação. Neste período, em que a Igreja se tornou muito importante na educação, a formação dos monges iniciava-se aos seis ou sete anos (Costa e Santa Bárbara, s.d.).
Da antiguidade até à actualidade, manteve-se esta idade como a referência para iniciar a escolaridade formal. Será coincidência que a psicanálise conside-
re também esta a idade do período de latência?
Começando em Freud, mas passando por vários autores e com vários conceitos que se complementam, existe esta ideia sólida de que algo acontece até aos sete anos e algo diferente após esta idade. Podemos inferir que será necessário aguardar este tempo para que a criança crie uma mente capaz de aprender conceitos estranhos aos da vida caseira e familiar, que construa um sistema mental capaz de se submeter às exigências da aprendizagem formal e a assimilar conceitos novos e cada vez mais complexos, fossem de carácter intelectual, moral ou físico. Sendo assim, também podemos inferir que se algo não corre como o esperado antes dos sete anos, a criança pode não ter sucesso nas aprendizagens formais.
Freud deu um lugar central ao papel da sexualidade no desenvolvimento e funcionamento mental do ser humano. Introduziu a ideia de sexualidade infantil, como motor da organização mental, descrevendo as fases oral, anal e fálica que precederiam o complexo de Édipo, cuja resolução daria início ao período de latência, coincidente com a idade do início da aprendizagem formal.
A relação entre latência e cultura é realçada por Carlos Amaral Dias (2000): “Freud demonstra que aquilo que é próprio da cultura humana – vencer a barreira do instinto e ampliar a relação com o mundo – só pode ter uma contrapartida: a organização simbólica do sujeito humano e a sua organização pensante.” (p. 102).
Portanto, para Freud, a criança passa, desde o seu nascimento, por várias fases de organização progressivamente mais complexa das pulsões, atingindo por fim a fase genital em que, através do processo a que deu o nome de Édipo, a criança “castrada” é capaz de reprimir e sublimar as suas pulsões primárias através do uso do símbolo. A sublimação é, então, o processo através do qual é construída a cultura.
“Para Freud, é através dos mecanismos que se desenvolvem na latência que o homem se torna civilizado. Então, a sublimação é uma sublime-acção: é o local onde o homem encontra a sua ordem cultural.” (Dias, 2000, pp.125-126).
Freud (1905) defende que todo o indivíduo passa por todas estas fases, que as fixações não são paragens totais no desenvolvimento, mas que perturbam a organização da fase seguinte, produzindo a patologia. Quanto mais precoce for a fixação, mais grave será a patologia. A gravidade da patologia determinará a forma como o indivíduo vai ser capaz de se organizar cognitiva e relacionalmente.
Bion (cit em Bléandonu, 1993; Fochesatto, 2013 e Zimerman, 1995) partiu das teorias de Melanie Klein (1993), Freud e Ferenczi (1991 a 1994) e criou um modelo explicativo da construção do aparelho psíquico. O modelo de Bion é particularmente interessante para nós, pois integra vários elementos de uma fase da psicanálise posterior a Freud, mais centrada nas relações de objecto que nas pulsões e na sexualidade: experiências sensoriais, emoções, identificação projectiva, posição depressiva, satisfação de necessidades e ausência dessa satisfação, frustração e criação de um aparelho psíquico capaz de transformar, integrar e formar um eu coeso que possa aceder à actividade simbólica.
Para Bion, os pensamentos existem antes de poderem ser pensados, e são eles que pressionam o sistema psíquico para a criação de um aparelho que os possa pensar. O bebé, atingido pelas sensações dos órgãos dos sentidos e pelas emoções que estas criam, é forçado a organizar estes estímulos de uma forma que eles possam ser integrados e vividos. Bion chamou função alfa a esta que permite que o bebé transforme sensações caóticas (elementos beta) em elementos alfa – que vão criar os sonhos, a memória e as funções intelectuais. Estes passam a ser passíveis de serem pensados. É a mãe que auxilia nesta tarefa, servindo de transformadora daquilo que o bebé “produz” e que projecta nela (identificação projectiva), através da sua função de rêverie, devolvendo ao bebé os seus conteúdos numa forma organizada e segura. Se os elementos beta circulam livremente, não há possibilidade de simbolização, e torna-se necessária a sua descarga imediata que pode tomar a forma de actividade motora, passagens ao acto ou somatizações - é o protótipo do estado psicótico, onde não há pensamento.
A experiência da satisfação da necessidade faz juntar o que Bion chamou de pré-concepção (a ideia inata de seio) com o acontecimento da realidade, ou realização (a acção de se alimentar no seio real). Esta junção dá origem à formação de uma concepção. É na ausência da satisfação que se cria o pensamento, ou o conceito, fruto da frustração que é suportada pelas experiências anteriores de satisfação emocional e pela actividade de rêverie da mãe.
Com a passagem à posição depressiva, como descrita por Klein, o indivíduo vai ser capaz de integrar a experiência da falta e aceder à simbolização. São os elementos alfa que constituem o que Bion chamou de barreira de contacto, ou seja, de delimitação do eu, de pele psíquica, que permite a sensação de integração e unidade.
Portanto, a capacidade de criar o aparelho de pensar os pensamentos depende da capacidade de suportar a frustração, e esta depende da qualidade das experiências precoces e da função de rêverie da mãe.
Winnicott (1965) é também um autor de maior importância, ao se afastar da teoria dos impulsos e dar maior relevância, em conjunto com outros autores, às relações objectais primárias e à constituição do self. É também inovador no afastamento da ideia kleiniana de que o bebé se relaciona com a mãe, ainda que de forma fragmentada na posição esquizo-paranoide. Considera que a unidade inicial é a díade mãe-bebé, afirmando que o comportamento da mãe, no início da vida, faz parte do próprio bebé. É a mãe suficientemente boa e as experiências de adaptação e desadaptação que vão permitir que o bebé comece a externalizar a mãe, pondo-a fora do seu controlo omnipotente. A mãe, agora repudiada enquanto objecto subjectivo, resiste à destrutibilidade, e torna-se objecto externo. O bebé, que foi aprendendo a relacionar-se no plano transitivo, passa a ser capaz agora de estabelecer uma relação objectiva com a mãe porque ela é agora objecto externo, um não-eu que, por oposição, permite a construção do eu. E assim se constrói a capacidade de se ser, de se relacionar com outro e com o mundo externos.
Winnicott considera que são falhas no ambiente em idade muito precoce que provocam dificuldades no processo de integração de um eu seguro. Para lidar com uma estrutura frágil, o indivíduo precisa de recorrer a defesas que lhe permitam estabelecer relação com o outro. A teoria do amadurecimento pessoal postula que, perante um ambiente favorável, o indivíduo irá constituir-se como um eu seguro, capaz, criativo. Nas palavras de Morais (2008):
“Para Winnicott, a presença de um ambiente inicial adaptado favorece a continuidade de um senso de ser e existir, proporcionando segurança pessoal básica para um existir criativo e responsável que, se incorporado ao si-mesmo pessoal, permitirá um pleno uso da instintualidade no relacionamento com o outro, agora plenamente identificado como separado dele, pois a pessoa tem clara dimensão de quem é, confia e tem esperança de poder ser si mesmo, uma vez que se reconhece capaz de responsabilizar-se por seu sentir, pensar e agir.” (p. 100).
Winnicott segue as ideias de Klein e Anna Freud (1936/1992) quando diz que na latência existem defesas importantes que ainda não estão em acção antes da passagem pelo complexo de Édipo. Afirma que o desenvolvimento do instinto cessa e que a criança está mais dada à reflexão e à intelectualização.
Sobre o pensar, Winnicott descreve-o como um desenvolvimento que se inicia precocemente, sem determinar exactamente em que idade. Afirma que, desde que se consegue registar algo, esse conteúdo não se perde. Passa pelas funções de catalogação, categorização e comparação, que ainda não são o pensamento propriamente dito, mas servem de aparelho de pensamento.
A função de comparação desenvolve-se de forma a permitir predições, e está ao serviço da manutenção da omnipotência. Acrescentando a esta função as memórias, ela transforma-se em imaginação criadora, sonho e jogo. Winnicott explica assim a função de comparação, numa conferência em 1965:
“La función de cotejo se desarrolla con vida propia y permite hacer predicciones. Esto pasa a estar al servicio de la necesidad de preservar la omnipotencia. En forma paralela, la elaboración de la función, enriquecida por los recuerdos, se traslada a la imaginación creadora, el sueño y el juego (también al servicio de la omnipotencia). De esta manera el pensar se genera como un aspecto de la imaginación creadora. Está al servicio de que sobreviva la experiencia de omnipotencia. Es un elemento de la integración (…) el intelecto tiene un funcionamiento propio, que depende de la calidad del aparato electrónico y también del modo en que va cobrando forma el desarrollo emocional del individuo.” (pp.172-178).
Regressa à ideia de satisfação versus frustração para definir como nasce o pensamento. O bebé que teve a experiência de satisfação, enquanto espera que a satisfação venha (frustração), pensa na sua vinda, recorda experiências passadas, prevê o futuro e acalma a ameaça à sua omnipotência. De outra forma, o bebé pode também criar a sua satisfação de forma alucinatória, no período em que espera que a satisfação chegue. Esta nova capacidade do bebé vai permitir mais liberdade para a mãe “falhar”. Winnicott defende que ambas formas de inteligência são importantes e válidas, afirmando mesmo que deve existir pensamento para além da lógica. Termina a referida conferência afirmando: “es preciso que seamos capaces de pensar en forma alucinatoria.”
Na fase final da sua obra Winnicott (1996) fala sobre o jogo de regras e o brincar, ou jogo simbólico. Define o jogo simbólico como sendo parte do espaço transitivo: espaço que não fica exclusivamente dentro (subjectividade) nem exclusivamente fora (realidade), que existe entre mãe e bebé, à medida que o bebé se vai sentindo separado, mantendo este espaço potencial de união, alimentado pela segurança que a mãe forneceu. É Winnicott que nos traz a definição de objecto transitivo, e que o define como o primeiro objecto não-eu com que o bebé se relaciona, manipula, controla, em lugar da mãe. Se o objecto transitivo está em lugar da mãe, constitui-se como o primeiro símbolo utilizado / criado pelo bebé e, também, a primeira experiência de jogo simbólico. Winnicott (1975) afirma que é a capacidade de jogar que vai permitir ao indivíduo aceder a experiências culturais, à arte e à criatividade.
Um conceito importante para algumas teorias explicativas do insucesso escolar é o de vinculação. Foi Bowlby (1982) que o introduziu, na sequência de observações experimentais com animais e crianças. A sua inovação foi afirmar que a vinculação se constitui também como uma necessidade primária, essencial à saudável formação da personalidade. Para que o bebé se possa efectivamente separar da mãe, e partir à descoberta do mundo real à sua volta, precisa ter estabelecido uma vinculação segura que lhe permita a liberdade de ir e voltar.
A vinculação serve uma primeira função de protecção do bebé indefeso por si só, e de aprendizagem gradual sobre como se proteger e defender; e uma função secundária de permitir a socialização, deslocando a vinculação da mãe para outros, em círculos cada vez mais alargados. Para que estas duas funções se cumpram é necessário, por um lado, que a criança saiba que pode retornar à mãe e, por outro, que esta responda adequadamente às suas necessidades. Embora Bowlby defenda que a angústia de perda do objecto de vinculação faz parte do desenvolvimento normal do indivíduo, e que o medo é protector, afirma que a falha nestas duas condições pode fazer instalar aquilo a que chamou de vinculação angustiada. Ou seja, a patologia pode instalar-se não só quando há efectiva separação do objecto por um tempo maior do que o suportado pela criança, mas também quando o objecto não responde adequadamente, de forma sistemática, às necessidades, ou quando este rejeita sistematicamente ou ameaça frequentemente que vai partir.
Perante situações de separação, e conforme a idade e a duração dessas experiências, Bowlby descreve três fases de reacção da criança:
Esta sequência acaba por nos remeter para a noção de defesa. Bowlby afirma que o processamento e armazenagem de informação pode ser afectado por experiências de sofrimento que activam a exclusão defensiva ou barragem da informação, tornando patológicos o pensamento e/ou o comportamento.
Golse (2005) afirma que existem duas formas de conceptualizar a emergência do pensamento: “como um fenómeno relativamente isolado do resto da personalidade (…) ou então como um processo intrincado, imbricado e enredado no desenvolvimento da afectividade.” (p. 277). Esta diferença de concepção é uma das que divide as teorias psicanalíticas das restantes sobre o desenvolvimento da criança. Ao longo do seu livro, Golse faz pontes entre as diferentes perspectivas e teorias sobre os desenvolvimentos cognitivo e afectivo, encontrando vários pontos de encontro nomeadamente em marcos de idade.
Golse integra as teorias de desenvolvimento cognitivo e afectivo, dando conta da sua riqueza e complementaridade, contrapondo conceitos. Da sua leitura infere-se que o desenvolvimento infantil pode ser descrito, na sua vertente mais abrangente, de uma forma, na minha opinião, universal. E o que é universal em todas as teorias de todos os autores é que existem “tarefas” de desenvolvimento, que existem estádios / fases / posições, que têm uma certa sequência temporal, não necessariamente rígida, e que quando existem falhas num dos passos, os passos seguintes são dados mas ficam marcas. Estas marcas são tão mais graves quanto mais precoces foram as falhas. A forma como o indivíduo vive com essas falhas pode organizar-se em mais ou menos saúde, mais ou menos patologia. As novas oportunidades de relação, de experiência significativa, incluindo a terapia, podem servir para minorar os efeitos negativos dessas experiências.
Diz João dos Santos que “Sem a posse de símbolos não há comunicação e, portanto, não há nem conhecimento nem educação.” (1953, 1954, cit por Branco, 2000, p. 284). Este é um ponto comum na leitura das teorias psicanalíticas – o desenvolvimento do eu psíquico implica a criação e apropriação de símbolos, algo que representa algo, processo que se começa a dar a partir do nascimento, e que continua em desenvolvimento ao longo da vida adulta, se considerarmos uma definição alargada de símbolo. É a capacidade de simbolizar que permite à criança se afastar em segurança dos objectos primários, ter curiosidade sobre o mundo, explorá-lo, e começar a formar símbolos sobre essa realidade externa.
Um outro conceito que parece ser aceite por todos os autores é o de latência. A altura em que se considera que a criança está preparada para iniciar as aprendizagens formais é, não só aquela em que já é capaz de simbolizar, mas também em que o pensamento se pode libertar da sua carga pulsional ou erótica e pode dedicar-se à descoberta do mundo, do real. Quanto mais saudáveis tenham sido as experiências precoces, mais liberta, curiosa e criativa estará a criança que inicia a escolaridade. Estará também pronta para aceitar um sistema de regras mais rígido, e uma gratificação não imediata, ligada ao prazer de descobrir e de cumprir as expectativas dos adultos signifi-
cativos e, mais tarde, de criar as suas próprias expectativas e objectivos.
A ideia de que inteligência e afecto estão intimamente ligados está presente em toda a obra de João dos Santos, que faz assim a ponte entre a psicanálise e a educação escolar: “A criança só pode aprender, se primeiro sentir, e o sentir refere-se a tudo o que é actividade emocional, jogo, pintura ou canto. A emoção está na base de toda a aprendizagem; a criança aprende quando o seu interesse é suscitado afectivamente ou sentimentalmente (…)” (1957, 1983, cit. por Branco, 2000, p. 98).
Sobre a questão da curiosidade como motor de base para a aprendizagem da leitura, Sylverster e Kunst, num artigo apresentado em 1942, argumentam como esta depende directamente da função exploratória. As autoras defendem que a curiosidade necessária para a aprendizagem abstracta depende da qualidade das experiências precoces de relação. Se estas experiências precoces encontram dificuldades, a curiosidade pode-se tornar algo perigoso para a criança. Referem duas formas em que isto pode acontecer: a perturbação da função exploratória, como um mecanismo de auto-afirmação, pode ser sentida como agressiva em relação ao adulto que impõe as normas, mas que é, ao mesmo tempo, aquele de quem a criança depende, ficando assim proximamente ligada a sentimentos de ansiedade; ou a função exploratória é deixada correr sem limites, deixando a criança assoberbada com estimulação que não consegue gerir. Segundo as autoras, as dificuldades de aprendizagem poderão ser explicadas por três factores: falta de capacidades, medo da perda do afecto, medo da destruição do objecto. Nas palavras de João dos Santos: “Funcionar mentalmente é autonomizar-se” (1991, cit por Branco, 2000, p.173).
João dos Santos parece ter verificado na prática o que Sylverster e Kunst defenderam anos atrás: “(…) encontro, com muita frequência, dificuldades de relação com a mãe, em certas crianças a quem falta uma espécie de inteligência prática e uma dificuldade em passar à actividade simbólica, que a escola exige, que é a linguagem escrita (…)” (1990, cit por Branco, 2000, p. 104)
Fundador da Casa da Praia, instituição ainda hoje de referência, o seu objectivo era apoiar crianças com dificuldades de aprendizagem que não tivessem deficiência mental ou física ou perturbação da ordem das pré-psicoses ou psicoses. Assim, desde a sua fundação, a Casa da Praia tem reunido informação sobre este tipo de crianças e as suas famílias. Dez anos corridos desde a sua abertura em 1975, João dos Santos descreveu as características comuns que encontrou nas famílias da grande maioria destas crianças: mães habitualmente deprimidas e pais habitualmente ausentes, fosse esta ausência física ou algum tipo de invalidez. Também observou que muitas vezes estes pais (homens) eram violentos e dominadores e que as mães se submetiam a esse domínio.
Esta observação sistemática levou também a concluir que estas crianças eram frequentemente imaturas e que escondiam a sua verdadeira depressão atrás de vários tipos de sintomas. Aliás, o autor define a população de crianças da Casa da Praia, grosso modo, como 2/3 de instáveis e 1/3 de inibidos.
Sylverster e Kunst (1942) descrevem o sentimento destas crianças perante a leitura como o de um fóbico. Ou ficam agarradas a um ponto com medo de dar o próximo passo para o desconhecido (a leitura hesitante, gaguejante, que exige tanto esforço), ou enfrentam a tarefa de rompante, correndo como a criança que corre pelo corredor a fugir do escuro.
Portanto: falhas nas relações intra-familiares precoces, imaturidade, função exploratória diminuída, ansiedade, depressão, comportamento defensivo em relação à depressão e dificuldades de aprendizagem. São as crianças-problema nas escolas. Aquelas para as quais a legislação existente muitas vezes falha. Aquelas que exigem mais dos professores na área em que os professores são pouco treinados – a relação. Na experiência de trabalho em escolas, deparei-me com muitos bons exemplos de educadores e professores que, devido às suas excelentes capacidades relacionais, conseguiram trabalhar de forma eficaz com este tipo de crianças. Aliás, como Sylverster e Kunst (1942) refe-
rem, o apoio pedagógico não é suficiente para estas crianças, e os casos de sucesso deste tipo de apoio são melhor explicados pela qualidade do professor que, intuitivamente, dá resposta às necessidades emocionais da criança.
Boimare (2001) faz uma excelente descrição de como o trabalho pedagógico, não sendo terapia, pode ser terapêutico e permitir a aprendizagem a crianças aparentemente incapazes de aprender. O autor explica esta incapacidade de aprender como um movimento defensivo contra o pensamento que se torna ameaçador para algumas crianças que não tiveram a oportunidade de criar uma estrutura psíquica suficientemente sólida. Para elas, a situação de aprendizagem torna-se ameaçadora, invadida de todas as angústias primárias. Também esta visão está de acordo com os autores referidos anteriormente.
Toda a situação de aprendizagem passa por um momento inicial de vulnerabilidade: a ignorância, a dúvida, a solidão, a dependência do “mestre”. Para uma pessoa saudável, esta instabilidade evoca a curiosidade e o desejo de aprender, motiva a relação com o “mestre” e mobiliza o intelecto. Para quem foi deixado desde cedo na permanente insegurança, o vazio da iniciação torna-se insuportável: “[a criança] não pode começar a procurar, a reflectir, visto a passagem pelo interior levar a coisas estranhas e inquietantes.” (Boimare, 200, 122).
As formas de controlar as angústias invasoras são aquelas que se interpõem com sucesso à aprendizagem, evitando-a por um lado, e desvalorizando-a por outro. Pára-se o pensamento, age-se e tenta-se destruir o objecto ameaçador – seja ele o conteúdo a aprender, o professor, a situação de aprendizagem ou o espaço escola. Diz-se que a escola não presta, que o que lá se ensina não serve para nada, ataca-se o professor, subvertem-se as regras – as perdas são óbvias, os ganhos são a mobilização da omnipotência protectora que permite a manutenção do equilíbrio precário da estrutura psíquica. Para estas crianças, muitas vezes aprender é o equivalente a se submeter ao outro, a perder uma guerra de poder, a ser invadido.
Boimare (2001) afirma que os dois grandes temas de angústia são os da morte e da sexualidade que, ao não terem sido organizados no passado, irrompem agora de forma violenta. As reacções visíveis são, na sua opinião, em acordo com João dos Santos, formas de defesa contra a depressão.
Da sua observação, quanto mais os temas propostos para a aprendizagem são neutros, mais permitem a projecção e o ressurgimento das angústias primárias. O que propõe como forma de trabalho com estas crianças é algo que podemos considerar no âmbito da zona transferencial de Winnicott: um local onde os temas que inquietam a criança possam ser manejados pelo intelecto, sem invadir o pensamento, apoiados por objectos culturais, ou seja, que possam encontrar símbolos pensáveis. Nas palavras de Boimare (2001) “Se o suporte deve ser quente, ele não deve ser escaldante senão as consequências serão idênticas.” (p. 131). Para que se possa manejar os temas da morte e da sexualidade, eles devem ser apresentados como longe no tempo e no espaço (ao exemplo das histórias que se passam há muito tempo atrás num reino longínquo), e devem ser sempre mantidos nesse enquadramento.
Assim, o autor (Boimare, 2001) considera que o professor que trabalha com este tipo de crianças tem, em resumo, três missões: ajudá-las a encarar as angústias primárias que as invadem; a deixar de precisar de defesas omnipotentes; e a “restaurar os caminhos de passagem entre o interior e o exterior” (p. 128).
Educação e psicanálise são campos que andam de mãos dadas nas cabeças de grandes pensadores como João dos Santos e outros, desde há muito tempo. Mas verificamos que na prática ainda continuam campos estanques e de difícil mistura. Parece ainda faltar uma linguagem que possa unir estas duas áreas, que transforme conceitos complexos em acessíveis, manejáveis, pensáveis, articuláveis e por fim aplicáveis na reflexão sobre os mundos que acontecem dentro das salas de aula. São mundos complexos, ricos, plenos de interacções múltiplas, de processos intelectuais, dinâmicas de grupo e fenómenos inconscientes, baseados em estruturas éticas mais ou menos explícitas. São as crianças mais frágeis que mais precisam do pensamento e do envolvimento dos adultos. São os adultos mais frágeis (professores, pais, outros profissio-
nais) que mais precisam de estruturas organizacionais saudáveis e equipas em quem podem confiar e se apoiar. É a aldeia a educar a criança. É a psicanálise a olhar o mundo. É a escola a trabalhar para o humano, na sua plenitude.
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O insucesso escolar é um problema de grande dimensão, não só em prevalência, mas em gravidade de consequências para o indivíduo e a sociedade. A psicanálise constitui-se como um corpo de conhecimento que contribui de forma muito rica para um entendimento aprofundado dos processos subjacentes às situações de dificuldade de aprendizagem não explicadas por factores de deficiência mental dos alunos. Vários autores apontam a importância da quantidade de alunos que revelam dificuldades escolares e emocionais, estudaram esta relação e apresentaram teorias explicativas. Estas teorias têm sido aplicadas em situações práticas em contextos específicos, como é exemplo o Centro Doutor João dos Santos – A Casa da Praia. Entender os processos psicodinâmicos que ocorrem no indivíduo aluno, mas também nos outros indivíduos envolvidos e no sistema de relações e dinâmicas de grupo que ocorrem diariamente nas escolas, pode constituir um importante passo na adequação de medidas que pretendem colmatar situações de insucesso.
School failure and psychoanalysis - a theoretical review
School failure is a major problem, not only in prevalence, but in severity of consequences for the individual and society. Psychoanalysis constitutes a body of knowledge that contributes in a very rich way to an in-depth understanding of the processes underlying the situations of learning difficulties not explained by the students’ mental deficiency factors. Several authors point out the importance of the number of students who reveal academic and emotional difficulties, studied this relationship and presented explanatory theories. These theories have been applied in practical situations in specific contexts, such as the Centro Doutor João dos Santos - A Casa da Praia. Understanding the psychodynamic processes that occur in the individual student, but also in the other individuals involved and in the system of relations and group dynamics that occur daily in schools, can constitute an important step in the adequacy of measures that aim to fill situations of failure.
School failure; Psychoanalysis; Learning; Latency.