Hamlet – “Tudo o que fiz, que vossa natureza porventura ofendesse, e a honra e o carácter, proclamo-o: foi loucura (…) Hamlet não foi causador, pode afirmá-lo. Quem foi, então? Sua loucura. Logo Hamlet está do lado do ofendido; seu maior inimigo é a própria doença. Deixai, senhor, que, em face dos presentes, o franco renegar de maus intentos me absolva ante vossa alma generosa. É como se uma flecha eu disparasse por sobre a casa e o irmão, sem ver, ferisse”.
(Ato V, Cena II), Shaskespeare, 1601, p. 183
Em 1897, Freud defende, numa carta que envia a Fliess, a partir do seu próprio exemplo, a validade universal da lenda grega de Édipo-Rei, enquanto ponto central na compreensão do psiquismo humano, centro da sua psicanálise:
“(…) Verifiquei, também no meu caso, a paixão pela mãe e o ciúme do pai, e agora considero isso como um evento universal do início da infância (...) Cada pessoa (…) foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente um Édipo como esse, e cada qual recua, horrorizado, diante da realização de sonho aqui transposta para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual (Freud, 1897/1996, p. 316).
Mas se Sófocles não tivesse escrito Édipo, com certeza seria Shakespeare, ao relatar a história trágica de Hamlet, que contribuiria para o emblema do complexo que sustenta o homem (Freire, 2016), na estrutura da personalidade e na orientação do desejo (Laplanche & Pontalis, 1992). Ambas as persona-
gens se completam e ao mesmo tempo se distinguem. Em Hamlet existe a inibição do desejo por deslocamento; em Édipo, há realização da pulsão pelo retorno do recalcado.
O que leva Hamlet a Édipo, centrando neste último o complexo que Freud eternizou como a explicação da neurose infantil, é que Hamlet personifica o mito, estando neste expresso o recalcamento, enquanto Édipo representa o desconhecimento que o leva a repetir inconscientemente a recordação do desejo. “O Édipo é, antes de tudo, a consequência da propensão incestuosa que se reveste dos adornos duma história de amor infinitamente trágica e de que ninguém se restabelece jamais completamente” (Naouri,1994, p. 88, in Héritier, et. Al., 1994/2000), surgindo, na forma de Hamlet, o espelho dessa compulsão.
A encenação da neurose infantil começa em Hamlet enquanto sintoma, para que, em análise, se chegue à conciliação no Édipo, recordando o desejo, para assim o poder esquecer com sucesso. Ou seja, a possibilidade de esquecer o desejo, para o lembrar no plano inconsciente - num sonho sonhável - transforma a vivência elaborada numa fantasia ao nível da linguagem onírica, podendo ser lembrada por já ter sido esquecida.
Édipo só pode aparecer em cena, se Hamlet esquecer o desejo. Como diz Adams Phillips “o esquecimento é o pré-requisito para a simbolização” (1994/2010, p. 81). Ou seja, o esquecimento na clínica, só pode acontecer no lugar onde o sujeito não pensa, sonha.
Tal como dizia Georges Devereux (1977, as cited Xanthakou, 1994, p. 146, in Héritier, et. al, 1994/2000) “os mitos constituem (…) meios de defesa, (…) uma espécie de câmara fria em que as fantasias individuais suscitadas pelos conflitos interiores podem ser depositadas em entreposto”, permitindo por fora o que não é possível colocar dentro.
Por isso, ao sairmos de Hamlet e entrarmos no mito de Édipo, passamos do conflito à sua resolução. Se o mito de Édipo tem a plasticidade de um sonho, a peça de Shakespeare figura no teatro da neurose (Freire, 2016).
Hamlet - “ Só um mês, em sem ter gasto ainda os sapatos com que o corpo seguiu do meu bom pai, qual Níobe, só lágrimas. Sim, ela – Ó céu! Um animal que é destruído da faculdade da palavra, certo choraria mais tempo! – desposada! Pelo irmão de meu pai, mas que tem tanto dele tal como eu de Hércules. Num mês, antes que o sal das lágrimas tão falsas secassem de seus olhos tumefeitos estar casada! Oh! Pressa iníqua de subir para o tálamo incestuoso! Não pode acabar bem… Mas despedaça-me, coração; é mister ficar calado.” (Acto I, Cena II)
Shaskespeare, 1601, p. 21
O Fernando, de 8 anos de idade, vem à consulta de psicologia, encaminhado pela escola, que o considera “inseguro” das suas capacidades intelectuais, ainda que o seu nível cognitivo seja considerado acima da média. Sempre bom aluno e bem-comportado, manifesta, no entanto, “medos” injustificados, relativamente ao seu sucesso escolar. Alertados para esta desarmonia, os pais concordam e sublinham a “baixa auto-estima do Fernando”, conside-
rando o seu rendimento escolar “aquém das suas possibilidades”. É a mãe quem telefona a marcar a consulta, e logo ao telefone, diz que o pai não está disponível “porque trabalha muito e está muito tempo fora no estrangeiro”. O pai, segundo ela, não considera necessário este tipo de consultas, mas também não se opõe.
A necessidade da sua presença numa primeira consulta é vivida com algumas resistências por parte da mãe, podendo-se dizer que, no plano manifesto, a presença do pai naquele contexto terapêutico é visto como remoto. No plano latente, como totalmente dispensável e irrelevante.
Revela-se, pois, logo neste primeiro momento, o centro da ontogénese na relação mãe-bebé, onde a presença do pai é “irrelevante”, posta num segundo plano, não necessária à sua sobrevivência física ou psíquica, o que segundo Boris Cyrulnik (1994) marca a diferença do sentimento vivenciado entre ambos. Como dizia o pai do Fernando “a mãe é sempre a mais beneficiada ou sacrificada na relação com o bebé”, assumindo-se como o terceiro da relação, no benefício ou no sacrifício, segundo a forma como experiencia a sua exclusão. Neste sentido, e como introdução à encenação que se segue, a mãe vai funcionar como a “a encruzilhada de todas as maneiras de amar” (Cyrulnik, 1994/2000, p. 52, In Héritier, et al, 1994/2000), sendo o pai descoberto a partir dela, como e se ela o autorizar.
Esta exclusão do pai na tríade vai contrastar com uma figura paterna forte, poderosa e, em certa medida, “idílica”, quando a mãe se refere a ele, nas entrelinhas, como sendo “o pai e homem perfeito”, mas não o marido ideal.
No primeiro encontro, esta dinâmica de rivalidade entre casal e competição parental emerge de forma evidente. O pai, numa postura sedutora diz: “Os meus filhos estão sempre em primeiro lugar, esta é a minha prioridade”, ao mesmo tempo que mascara o seu narcisismo numa humildade teatral, e a arrogância intelectual numa submissão face ao “técnico” a quem pede “para lhes ensinar a ser pais”. A mãe parece sentir-se desconfortável com esta encenação e, na sua postura, faz transparecer desilusão e hostilidade. A ideia de o marido ser tão incompleto, mas tão perfeito como homem, diminui-a, e a inteligência dele agride-a, como se sentisse humilhada pela superioridade que lhe atribui.
O pai domina a conversa e retrata o filho como “uma criança que se destaca, que se assume como líder, mas que se distrai muito, está mais interessado no mundo dos adultos e quer acumular mais e mais conhecimento”. Assume que o Fernando é um bom aluno, mas diz que é preciso “aumentar o seu potencial”.
A mãe reforça a desilusão que ambos sentem por este menino “cheio de potencial, que passou do melhor da pré para o “distraído” da primária” e diz: “Nós causamos muita pressão no sucesso escolar e agora ele está muito inseguro. Houve um episódio na escola em que o Fernando foi castigado pela Professora de Inglês e, sentindo-se muito injustiçado, pediu para sair do colégio”. “ Ele tem um sentido de justiça muito grande”, diz o pai.
“Segundo Goethe, Hamlet representaria o homem cuja atividade está dominada por um desenvolvimento excessivo do pensamento, cuja força de ação está paralisada: ressente-se da palidez do pensamento” (Lacan, 1989, p. 14). O Fernando também.
O Fernando é o primeiro filho de uma fratria de dois. Os pais estiveram seis anos sem ter filhos, e a decisão de trazer um novo elemento para a dinâmica do casal não foi fácil. A mãe foi adiando a decisão, na esperança de resgatar o marido do trabalho, mas vendo o tempo passar, optou por não esperar mais, e ter para si, um bebé.
Aldo Naouri (1994) chama “propensão incestuosa natural da mãe”, “esta parte integrante e essencial do desejo feminino” (p. 77) presente no sentimento de posse, exclusividade, fusão e omnipotência, emergente daquela relação diádica (p. 71, In Héritier et. al, 1994/2000). Nela operam transmissões infraliminares, para lá da percepção ou reacção, que nada mais são do que o inconsciente da mãe “posto em acto” (p.75). Este é, portanto, o primeiro mandato do Fernando – ser o bebé desta mãe e satisfazê-la onde o pai não conseguiu.
O pai parecia querer uma continuação de si próprio, “preferindo um rapaz, porque se sentia mais competente a educar um varão”. O nome que lhe é atribuído – a sua primeira identidade – corresponde ao nome do seu pai e, assim, nesta continuação, a imposição de linhagem, desejando para ele o que ambicionava para si: ser viril, ilustre, corajoso, esforçado, sem medo, merecedor de respeito e admiração dos outros. É assim que o pai se descreve, e é assim que espera que o filho seja. Como a corroborar esta ideia, o pai diz em tom de pergunta, mas em forma de afirmação: “Infelizmente não posso ambicionar um filho perfeito…”. Felizmente que não, porque a perfeição é coisa de mito.
A mãe, também parece ver e esperar do Fernando o lado bom do pai, ou seja o homem perfeito e o marido completo, e sobre a escolha do nome diz não ter sido motivo de preocupação: “O pai chama-se Vitorino Fernando e, como o primeiro nome é horrível, escolhemos o segundo e foi consensual”.
Hamlet, ao nascer e ser nomeado com o nome do seu pai, retrata a mesma promessa e desejo de vir a ser como ele, à sua imagem e semelhança, o que leva Hamlet a reconhecer, nessa expetativa de difícil alcance, a impostura e distância de seu tio em relação ao rei-morto. O tio, agora padrasto, estaria tão aquém do rei-Hamlet, quanto Fernando se sentia aquém do seu pai perfeito. Este “estar aquém” era passado pela mãe na sua deceção, pelo pai no seu narcisismo, na escola pela repetição, e nele próprio na instância superegóica rígida e castradora que o paraleliza de medo face a qualquer desafio. Tal como Hamlet apenas era um protótipo do grandioso e excelente rei-Hamlet, o Fernando apenas poderia contentar-se em imitar este pai-perfeito, sem, no entanto, alguma vez o conseguir superar.
Como diz Freud (1914) “O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior” (pp. 25-26).
A Mãe diz que “adorou estar grávida”, mas depois do nascimento tudo foi complicado.
A solicitude materna, intra-uterina era plena, mas fora do útero ameaçava a integridade de ambos. O desejo de completude só poderia ser satisfeito antecipando-se às necessidades do bebé, suprindo todas as suas carências e tornando-o no que Aldo Naouri (1994) designa por “filho-rei”, a quem “toda a “falta” é anotada para ser imediatamente colmatada a fim de que daí não possa emergir qualquer forma de desejo”(p. 80, In Héritier et. al, 1994/2000).
Segundo ela, o Fernando “foi um bebé muito difícil”, fazendo acompanhar esta frase de uma expressão facial de “horror”. Não pegava no peito para mamar, tinha muitas cólicas e “só dormia ao meu colo”. “Quando começou com as papas e os sólidos foi outra guerra (…) se eu não estiver à frente dele ele não come”.
O pai comenta: “As preocupações que a mãe tinha com alimentação quando o Fernando era bebé são as mesmas das que tem hoje. Ainda hoje ela se senta para os ver comer e tenta marcar-lhes um ritmo. Presentemente o Fernando come bem e o seu ritmo é normal, a mãe é que tem esta mania…”.
A mãe diz em tom de crítica: “Em casa não criámos o horário da refeição em família e eu sinto muita falta disso. Sempre fui educada com o tempo das refeições como sendo um tempo de família, mas o Vitorino não liga. Mesmo quando ele está em casa à hora de jantar, ele senta-se em frente da televisão a ver o telejornal enquanto os miúdos comem na cozinha. Se eu não estiver lá com eles, eles comem sozinhos”. Olha para o marido e diz “Eu já te disse isso muitas vezes que era importante jantarmos todos juntos em família”.
O pai responde: “ Há muito choro e grito à mesa”.
“Estás a exagerar”, diz a mãe.
Se a contiguidade mãe-bebé se mantiver sem a interferência diferenciadora do pai, o “filho-rei” subsiste fundido à “mãe-rainha”, onde a individuação da criança fica colonizada à imagem da mãe ou a um outro papel forjado por ela” (Naouri, 1994, p. 82, In Héritier et. al, 1994/2000).
O pai desvia a conversa e reposiciona o tema no Fernando: “Ele é incrivelmente racional no que come, evita gorduras, às vezes diz na brincadeira que não quer determinada coisa porque engorda e não quer ficar gordo”.
A mãe interrompe: “Se calhar é hereditário, eu também ficava com uma bola de comida na boca horas, e era muito magrinha, amarela e pálida. Era enfezadinha. Uma tia minha, uma vez disse que se não soubesse quem eu era, pensava que eu passava fome”.
A presença constante da mãe, real ou projetiva, assume “nem mais nem menos do que a forma das paredes, extensíveis ao extremo, dum útero que dá segurança porque o sistema de consolação mútua permitirá vivê-lo como sempre preenchido e definitivamente destinado a habitá-lo” (Naouri, 1994, p. 82, In Héritier et. al, 1994/2000), condenando o filho, de forma real ou projetiva, a permanecer dentro dela, “no nicho uterino extensível até ao infinito” (Naouri, 1994, p. 83, In Héritier et. al, 1994/2000). Daqui resulta “a propensão natural materna para o incesto” (…) que se aparenta singularmente, mesmo na ausência de ato genital, ao ato, ao movimento de apagamento das distâncias necessárias que produz o incesto propriamente dito (Naouri,1994, p. 83, In Héritier et. al, 1994/2000).
Também para dormir o Fernando foi “horrível”: “Até aos dois, três anos só dormia ao meu colo… quando engravidei do irmão comecei a tentar fazer a separação, primeiro com ele a mexer no meu cabelo, depois com roupa minha, almofadas com o meu perfume, mas foi só quando o irmão nasceu que ele começou a dormir sozinho… foi muito difícil (e emociona-se) esta nossa separação foi muito brusca e sofremos os dois”.
A mãe explica que, na altura do nascimento do irmão mais novo, o Fernando, um dia antes, foi internado por suspeita de leucemia e ficou no Hospital em estudo durante uma semana. Acabou por não ser nada mas “na altura estávamos preocupados e foi stressante”. O pai ficou com ele no hospital, enquanto a mãe estava na maternidade com o bebé recém-nascido.
Quando o Fernando chegou a casa, após o nascimento do irmão, reagiu muito mal, “quando via o irmão a mamar começava a gritar “tira-o daí porque a mãe é minha”… a relação quebrou um bocadinho a partir daí, acabou por virar-se mais para o pai… foi muito doloroso”, diz a mãe (e chora).
O pai diz: “Comigo foi sempre flat, o sentimento dele por mim aos três anos ou agora é o mesmo. Agora com a mãe foi diferente, ele aprendeu desde de cedo a manipulá-la. Ainda hoje o que ele quer é tirar-nos do sério e quando consegue, percebe que ganhou. Mas eu tenho uma versão diferente da mãe, eu acho que o devemos deixar crescer enquanto a mãe quer ajudá-lo a crescer, ela é muito protetora. Depois ao mesmo tempo que os trata como uns bebés vê-os como adultos e ofende-se com eles como se já fossem gente crescida. Por exemplo ainda este fim-de-semana ficaste toda ofendida com o Fernando que depois ficou muito preocupado por te ter ofendido, lembras-te?”
A mãe explica: “O que aconteceu este fim-de-semana foi diferente. Nós estávamos todos a jogar, eu e os miúdos, e de repente o Fernando a propósito do jogo diz – “Que chatice, parece que sou invisível” – e eu ofendi-me e respondi-lhe – “Eu que faço tudo por vocês, vivo em torno de vocês, eu é que sou invisível nesta casa” - e depois fui para o quarto chorar porque fiquei mesmo ofendida, mas se calhar era eu que estava mais sensível, mais cansada, foi isso.” Nesta ofensa da mãe, fica claro a confusão de papéis, as projeções entre ela e os filhos, e a missão deles – do Fernando – em reconhecê-la neste papel da única mulher da sua vida.
No resto do seu desenvolvimento, o Fernando foi uma criança hiper-adaptada, muito autónoma e pouco reivindicativa. No entanto, aquela adaptação precoce resulta na irrupção de medos da infância na idade da latência, passando estes a serem vividos fora do seu tempo, e por isso mesmo de forma mais intensa e desadequada. O menino que nunca precisou de “fralda nem chucha para adormecer”, agora “chora todas as noites com medo do escuro, de barulh-
os e ruídos que diz ouvir”, e se “em vez de mim vai lá o pai, ele chora ainda mais, e fica muito irritado”. “Quando o pai está fora – diz a mãe - ele dorme na cama comigo - ri-se - Eu também gosto, dorme muito encostadinho a mim (…) é uma espécie de segredo meu e do Fernando, é uma coisinha nossa (…)”.
Este segredo funciona como um equivalente incestuoso. Como diz Aldo Naouri (1994), pediatra e psicanalista,
“as condições suscetíveis de garantir a uma criança, desde o nascimento e para a vida, a melhor saúde física e o melhor equilíbrio mental possíveis, são estreitamente e exclusivamente dependentes do respeito manifesto ou latente que cada um dos seus dois pais marca no âmbito da lei do interdito do incesto” (p .71, In Héritier et. al, 1994/2000).
Em termos de amizades, o Fernando tem tendência para rivalizar com os colegas, principalmente em termos de desempenho escolar - “É muito competitivo”.
A Mãe acaba por dizer: “O problema é que o pai quer muito um filho à imagem dele. Ele sempre foi criado por ele próprio e sempre foi um aluno brilhante. Profissionalmente por onde passa deixa marca. Eu acredito até que o Fernando só joga futebol e é do Sporting por causa do gosto do pai pelo futebol”.
Hamlet – “ Esses atores irão representar para o meu tio a morte do meu pai. Hei-de observar-lhe os olhos e sondar-lhe a alma até o fundo. Se se assustar, conheço o meu caminho. Talvez que o espírito que eu vi não passe do demónio que pode assumir formas atraentes” (Ato II, Cena II)
Shaskespeare, 1601, p. 78
O Fernando é um rapaz muito bonito, loiro de olhos castanhos amendoados, grandes e expressivos, mas que entra de cara séria e pouco descontraído.
Psicoterapeuta: Sabes porque que estás aqui?
Fernando: Não.
Psicoterapeuta: Os teus pais disseram-te que tinham vindo cá falar comigo e explicaram-te porquê?
Fernando: Os meus pais só disseram que eu vinha cá para falar contigo.
Psicoterapeuta: Então talvez por isso estás com uma cara tão preocupada… não saberes ao que vens nem porquê… os teus pais acham que tu estás preocupado, e tu o que achas?
Fernando: Sim.
Psicoterapeuta: Estás preocupado?
Fernando: Sim
Psicoterapeuta: Com quê?
Fernando: Com a escola
Psicoterapeuta: E porquê que estás preocupado com a escola? Os teus pais disseram-me que eras um bom aluno…
Fernando: Mas quero ser melhor aluno.
Psicoterapeuta: O melhor dos melhores?
Fernando: Sim.
Psicoterapeuta: É natural que isso te preocupe, ser o melhor dos melhores…
Fernando: Eu quero ter mais conhecimento.
Psicoterapeuta: Mais conhecimento?
Fernando: Sim.
Psicoterapeuta: Como o conhecimento dos adultos?
Fernando: Sim.
Psicoterapeuta: Tu tens oito anos…
Fernando: Sim.
Psicoterapeuta: Então querias ter o conhecimento de uma pessoa de que idade?
Fernando: De dez.
Psicoterapeuta: Tens pressa em crescer?
Fernando: Não.
Psicoterapeuta: Gostas de ter oito anos?
Fernando: Sim.
Psicoterapeuta: Mas ainda assim querias ter o conhecimento de um menino de dez.
Fernando: Sim.
A psicoterapeuta propõe fazerem um desenho.
O Fernando, sempre que a psicoterapeuta lhe dirige a palavra, franze as sobrancelhas, olha para ela fixamente nos olhos, com um olhar de surpresa mas sem uma expressão de satisfação. Só de admiração como se nunca aquele tipo de conversa pudesse ter existido com um outro adulto qualquer. Como se ela não fosse como nenhum outro adulto que ele jamais tivesse conhecido. É uma espécie de surpresa com desconfiança.
Pega na folha e escolhe os lápis de cores para desenhar. É muito minucioso no traço e investe no desenho. Demonstra uma grande rigidez e tensão. Pouco depois de ter começado a desenhar pede uma borracha porque se enganou a desenhar a cabeça. Mas como a psicoterapeuta lhe diz que não há e que não faz mal, ele tenta corrigir e, embora não faça nenhum comentário, percebe-se que não gosta do resultado final, perante a evidência daquele “defeito”.
Enquanto ele desenha, os dois vão conversando…
Psicoterapeuta: Preocupas-te com o facto de os pais se preocuparem com as tuas preocupações?
Fernando: Sim.
Psicoterapeuta: E então porquê? Os pais são assim mesmo, preocupam-se com as preocupações dos filhos para os ajudarem a ultrapassar…
Fernando: Sim.
Psicoterapeuta: Os pais é que ficam preocupados com os filhos e não o contrário, os filhos preocupados com os pais…
Fernando: Mas eu preocupo-me um bocadinho… Eu às vezes porto-me mal.
Psicoterapeuta: Como?
Fernando: Bato no meu irmão e os meus pais não querem que eu faça isso.
Psicoterapeuta: Pois, mas às vezes isso acontece entre irmãos.
Fernando: O meu irmão às vezes irrita-me e eu bato-lhe.
Psicoterapeuta: Irrita-te como?
Fernando: Irrita-me, chama-me nomes e diz asneiras.
Psicoterapeuta: Que nomes é que ele te chama?
Fernando: Nomes e asneiras.
Psicoterapeuta: E tu, também chamas-lhe nomes e asneiras?
Fernando: Asneiras nunca disse. Chamar-lhe nomes, às vezes.
Psicoterapeuta: Que nomes é que lhe chamas?
Fernando: Paneleiro.
Psicoterapeuta (ri-se): Mas isso é uma asneira…
Fernando (sorri)
O Fernando fica sempre a pensar muito entre cada desenho (ao contrário das histórias que conta, que o faz a grande velocidade).
Psicoterapeuta: Não precisas de te preocupar muito, já basta as preocupações todas que tens na cabeça.
O Fernando sorri ao de leve mas não reage (é o primeiro esboço de sorri que faz).
Os seus desenhos são pobres ao nível da expressão, mas muito investidos na execução (perfeccionista). Investe nas cores mas mantém a inexpressividade, onde as figuras humanas estão estáticas, sem movimento ou ligação entre elas. Também não há mais nenhum adorno ao desenho, como se as pessoas paira-
ssem sobre o nada/vazio. Não há cenário. Os temas são a competição entre pares, pondo a tónica na persistência para a vitória, onde o sucesso custa a alcançar. Às vezes é preciso enganar o outro para ganhar, outras são os mais fortes e corajosos que ganham.
O enredo da peça está lançado: a encruzilhada edipiana de Fernando dá conta de uma identificação mimética, que não favorece a alteridade, ficando por isso condenado, como dizia Lacan (1986) a respeito de Hamlet, a estar, desde o início e para sempre, “culpado de ser”(p. 21). Se a identificação é fundante para o sujeito, o seu não desligamento é uma prisão, privando-o da liberdade de Ser.
O Fernando escolhe os brinquedos com os quais quer brincar. Pega nuns soldadinhos e numas espadas e começa a construir uma cerca. Coloca um soldado verde dentro da cerca e um outro vermelho que entra por um acesso não vedado, invadindo o território do verde. A invasão destina-se ao roubo do ouro que estava disfarçado dentro de uma botija de gás. Ganha o verde e o vermelho morre.
Psicoterapeuta: Como é que o soldadinho vermelho conseguiu entrar neste território se ele estava vedado?
Fernando (aponta em silêncio para a abertura nas traseiras).
Psicoterapeuta: Se calhar é melhor reforçar a cerca e proteger essa entrada aí….
Fernando (acena que sim com a cabeça).
Começam os dois a construir mais uma cerca para as traseiras da propriedade. Os invasores continuam a chegar, um a um, sempre numa luta corpo-a-corpo e os proprietários vencem. A brincadeira é “muda”. O Fernando encena sozi-nho o enredo enquanto a psicoterapeuta tenta legendar a brincadeira.
Poderíamos pensar que o território vermelho, invadido pelo verde é o seu espaço por direito, a sua propriedade, que sente ter sido invadido, primeiro pelo pai, depois pelo irmão, na conquista da mãe-tesouro, que se esconde dentro de uma botija de gás, inflamável e pronta a explodir – o cenário explosivo da cena primitiva.
O Fernando entra na sala mais falador e desinibido. Enquanto desenha, vai comentando os ruídos do prédio, a música que se ouve do andar de cima, um gato que mia nas traseiras, uma ambulância que passa na rua e diz “Este prédio está no centro de tudo, é o centro das atenções” como se a atenção que lhe estava a ser dedicada fosse o centro de tudo também. Nesse dia resiste a ir embora: “Foi muito pouquinho tempo… Posso vir amanhã? E na sexta?, mas acaba por aceder, “Está bem, pode ser, não faz mal.”
Retomar o lugar de “exclusivo” e assim eliminar a concorrência do rival – dá-lhe a certeza de ter encontrado o espaço certo para revisitar as suas angústias infantis e reelaborá-las.
O Fernando quer ir brincar com as fantasias/máscaras de piratas.
Fernando : Isto são coisas do carnaval…
Psicoterapeuta: Gostas de te mascarar?
Fernando: Eu no próximo ano quero mascarar-me de uma coisa diferente. Neste mascarei-me de Super-Homem, mas para o ano quero mascarar-me de Peter Pan.”
Psicoterapeuta (sorri): “Muito melhor, o Peter Pan é o eterno menino que só quer brincar, o Super-Homem é o Herói mais poderoso de todos.”
Fernando (ri-se)
O Francisco coloca o chapéu de Robin dos Bosques.
Psicoterapeuta: Queres fazer de Robin dos Bosques?
Fernando: Não, o Robin dos Bosques rouba aos pobres para dar aos ricos, mas depois são os ricos que ficam pobres, está tudo ao contrário e eu não percebo nada disso… quero antes ser o polícia do Robin dos Bosques.
Os dois brincam. A psicoterapeuta de Robin de Bosques-ladrão e o Fernando de Polícia. Durante os disparos, a psicoterapeuta, no papel de Robin dos Bosques, que rouba os ricos para dar aos pobres, fica ferida. Imediatamente o polícia Fernando fica ferido também, como que para anular a sua culpa.
A psicoterapeuta assume outro papel – o de amigo do polícia - e vai curá-lo nas suas feridas. Os dois passam agora a estar no mesmo lado dos bons, a atacar os maus Robin dos Bosques.
Fernando: Estás preso Robin dos Bosques. Rende-te!!!
Psicoterapeuta (de volta ao papel de Robin dos Bosques-ladrão): Eu não estava a fazer nada de mal… eu estava só a roubar aos ricos para dar aos pobres, nada desta fortuna é para mim… Isto não é crime é justiça, é uma causa social não ladroagem!
Fernando: Roubar é crime, seja ou não por causas sociais!
Psicoterapeuta (RB): E se eu fosse falar com os ricos para serem eles a dar ao pobres parte do seu dinheiro?
Fernando: Isso já pode ser, partilhar não é crime.
Mudam outra vez de papéis. Agora a Psicoterapeuta faz de Robin dos Bosques e o Fernando de Senhor Rico.
Fernando: Tome, pode ficar com todo o meu dinheiro …
Psicoterapeuta: Mas assim fica pobre….
Fernando: Pois… o problema é o governo… mas não faz mal, leve o dinheiro que eu não me importo de ser preso…
Psicoterapeuta: Não posso aceitar, dê-me apenas uma parte…
Fernando: Vamos então dividir (e conta as moedas que divide em duas quantias iguais, 22 para cada um).
A história sofre novo revés…
Fernando (Senhor Rico): E se fossemos roubar os dois, quer pobres quer ricos, e ficássemos com o dinheiro para nós?
Psicoterapeuta (RB) (acena que sim, e segue-o nos seus roubos)
Pouco depois o Fernando muda de novo a história e os dois passam a ser polícias – o polícia Fernando e o polícia Alexandre - que perseguem os ladrões. Perante a necessidade de terminar a brincadeira, o Fernando olha para a psicoterapeuta surpreendido perante este regresso à realidade forçado.
Psicoterapeuta: Temos que terminar a nossa brincadeira.
Fernando: Já? Porquê? Continuamos para a semana?
Psicoterapeuta: Sabes, estes dias em que nos encontrámos aqui os dois foi para podermo-nos conhecer e tentar perceber a pergunta que os pais tinham feito de início, lembras-te? Que andavas preocupado com a escola e com os temas dos crescidos…?
Fernando: Eu já só estou um bocadinho preocupado…
Psicoterapeuta: Eu vou falar com os teus pais para que, depois das férias de Verão, possamos os dois retomar aqui estas brincadeiras, e juntos pensar nas tuas preocupações de gente crescida… e, quem sabe, experimentar o lado de criança do Peter Pan, as suas fantasias e asneiras, e deixar de lado as missões do Super-Herói que nunca falha, numa justiça e lei que sempre segue….
O desejo de reocupar o ser lugar, na luta pelo trono, traz consigo a culpa e a necessidade de a negar, e este é o trabalho de elaboração que ambos, Psicoterapeuta e Fernando, se preparam para enfrentar a partir daí….
Nas palavras de Freud: “Esses indivíduos teriam sido mais saudáveis se lhes fosse possível ser menos bons” (Freud, 1908/ 1976, p. 197).
Hamlet – “preciso ser cruel para ser bom; o ruim começa, o pior já se acha feito (Ato III, Cena IV)
Shaskespeare, 1601, p. 119
O tempo de férias parece ter posto em modo suspenso a encenação da sua neurose infantil e o reencontro retoma o ponto de partida do último encontro, na mesma continuidade associativa das “lembranças encobridoras” (Freud, S. 1899/1996) prontas a emergir.
A cena passa-se na ambivalência entre o bom e o mau, o Robin dos Bosques ladrão ou generoso e o polícia sério ou corrupto.
Na possibilidade de desempenhar os dois lados – bom e mau – e aceitá-los como partes integrantes da sua encenação, e por isso dele mesmo, ao constatar que tudo está em transformação e que o mal pode ser reparado – para além da reparação mágica pela culpa, mas elaborada pelo “esquecimento”, o Fernando vai começando a querer encenar o papel de mau sem trocas nem condescendências. À psicoterapeuta cabe-lhe o papel reparador, mas também reflexivo, e perante qualquer ato brutal por ele perpetuado…
Psicoterapeuta : Ai que horror, vamos matar criancinhas?
Fernando: … Temos pena!!!
O Fernando passa a encenar a sua trama, sem culpa e, ao mesmo tempo, grato por ser aceite o seu lado mau sem “censura”. Um inconsciente a céu aberto, sem a confusão da psicose, nem o recalque da neurose. Uma encenação em linguagem onírica, simbólica, deslocada e condensada, tal como uma metáfora ou metonímia, que imprime a letra do inconsciente, como nos fala Lacan (1998).
À psicoterapeuta já não é mais pedido que repare a sua agressividade, mas que se junte a ele, enquanto parceiro do crime, onde o Fernando se assume como “Chefe”, e os dois juntos embarcam em todos os riscos e desafios que a sua trama promove.
Cada sessão retoma o ponto exato largado na sessão anterior, conferindo a esta encenação a continuidade necessária em via da sua resolução.
O Fernando entra na sessão apressado, sem olá nem boa tarde, pronto a recomeçar o teatro da sua neurose – o lugar do Nome-do-Pai e o desafio à Lei.
Fernando e Psicoterapeuta são os dois ladrões convictos e insaciáveis. O Fernando quer roubar tudo e todos, e a salvação e impunidade é mágica, arranjando soluções para o interdito totalmente inverosímeis. A psicoterapeuta oferece-lhe vários cenários possíveis, e impõe o limite e o acesso à realidade, não aceitando as soluções mágicas que o Fernando cria.
Fernando: Vamos assaltar aquela casa…
Psicoterapeuta: Como?
Fernando: Então… entramos, roubamos o ouro e saímos…
Psicoterapeuta: Mas não é possível entrar numa casa com a família lá dentro e não sermos vistos, é melhor arranjar um plano…
Fernando: Nós entramos pela janela e ninguém nos vê…
Psicoterapeuta: É muito arriscado, e se fazemos barulho e alguém nos ouve?
Fernando: Anda… (e avança para dentro da casa imaginária)
Psicoterapeuta (segue-o)
Fernando: Olha o ouro, toma… e agora vamos embora.
Psicoterapeuta (esquece-se da arma dentro de casa, enquanto sai apressada pela janela)
O Fernando diverte-se com as possibilidades de falha que a psicoterapeuta cria e embora ria com o caricato, vive a encenação como sendo mesmo real – anda em bicos de pés na sala, fala em sussurro para ninguém os ouvir e finge os mais variados e complexos movimentos para fugir, assaltar ou esconder-se durante os crimes. Aqueles momentos são catárticos para ele, e sente-se a sua euforia pela superação.
A psicoterapeuta vai atrás dele, fazendo o que ele faz, apoiando-o no crime, mas colocando-lhe as perguntas que imagina serem as que paralisam face ao medo de ser apanhado e castigado. Como é a fingir, ele pode pensar sem paralisar e recria soluções. Algumas vezes o crime é adiado por não ser seguro, mas nunca por medo do castigo ou por culpa de ser o “mau”.
A psicoterapeuta assume na encenação uma espécie de escuta atenta, sem interpretar o que é dito nem interferir na manifestação do desejo do Fernando. No entanto, com o tempo, onde a impunidade é total e as soluções são mágicas, surge a necessidade de conter essa omnipotência e introduzir o real, por um lado, pela existência de leis na sociedade, onde o crime é punido, por outro, face ao seu papel perante a autoridade, onde é necessário assumir a inferioridade, impotência ou fragilidade quando ela se impõe.
A omnipotência do desejo expressa-se na ambivalência a ela associada, umas vezes um menino disfarçado de homem, outras um desejo camuflado de lei, e em todas as situações a negação do interdito, rejeitando a punição, pela necessidade de viver o êxtase da superação.
O Coro - “Não formules desejos…Não é lícito aos mortais evitar as desgraças que o destino lhes reserva!”
Sófocles (496 A.C- 406 A.C ) p. 80
Fernando e Psicoterapeuta são presos.
Fernando (ladrão): Oh Polícia… tu não mandas em mim (faz caretas provocadoras).
Psicoterapeuta (ladrão Alexandre): Então o que estás a fazer? Estás a medir forças com o chefe da esquadra? Assim fica difícil a nossa situação… Não vês que não estamos em condição de medir forças com ele? Ele é quem tem o poder, e nós estamos aqui presos sem poder fazer nada… pára lá ou vais-nos arranjar problemas para os dois.
Fernando (Ladrão): Temos pena… Eh, tu aí (a dirigir-se ao policia), tira-me daqui, se não eu vou aí e dou-te um murro que até vais ver… (começa a desafiar o polícia, esticando-se para ser mais alto do que ele e enchendo o peito de ar).
Psicoterapeuta (Polícia): O senhor está a falar comigo? Não vê como isso é insensato? Primeiro eu estou do lado de fora da cela e tenho a chave do cadeado, depois eu sou bem maior do que o senhor… Por isso, está a querer lutar comigo é?
Fernando (encolhe os ombros): Temos pena…
O ladrão Fernando e o Ladrão Alexandre são soltos da prisão – “porque sim”. O Fernando não encontrando solução para o confronto, foge ao conflito sem mais explicações.
Fernando: Vamos soltar todos os ladrões da prisão?
Psicoterapeuta (ladrão): Ah?
Fernando: Vamos convencer o chefe da polícia que fomos agredidos e obrigados a libertar os outros presos, e assim ele vai perceber que nós somos as vítimas e não os maus…
Psicoterapeuta (polícia): Essa história não me faz sentido… Acho que os senhores me estão a enganar…
É necessário recorrer a várias artimanhas (por vezes um pouco mágicas) para fugir ao castigo, e neste confronto o Fernando procura igualar-se ao chefe, mas ao mesmo tempo alinhando com os ladrões. Uma espécie de ladrão com poderes de polícia, ou um menino com a força e tamanho de um homem.
A psicoterapeuta vai tentando dar o real, confrontando-o perante as soluções mágicas que apresenta, mas aceita as soluções dele, mesmo que inverosímeis.
“Hamlet – As sutilezas dormem no ouvido dos parvos” (Ato IV, Cena II)
Shaskespeare, 1601, p. 126
Hamlet – “Desafio os presságios. Há uma especial Providência na queda de um pardal. Se tem de ser já, não será depois; se não for depois, é que vai ser agora; se não for agora é que poderá ser mais tarde. O principal é estarmos preparados. Uma vez que ninguém sabe o que deixa, que importa que seja logo? Que seja!!” ( Ato V, Cena II)
Shaskespeare, 1601, p. 182
Fernando (ladrão) e psicoterapeuta (ladrão Alexandre) decidem fugir para outro país.
Fernando: Vamos para a Síria?
Psicoterapeuta: Aí estão todos a querer fugir…
Fernando: E a Grécia?
Psicoterapeuta: Aí as coisas também não estão bem, e para além dos sírios lá quererem entrar em grande massa, os gregos por eles fugiam também… Queremos um país longe ou perto?
Fernando: Longe.
Psicoterapeuta: Quente ou frio?
Fernando: Quente, e com deserto.
Psicoterapeuta: A Austrália é do outro lado do mundo, é quente e tem um deserto.
Fernando: Então vamos para lá.
Psicoterapeuta: Olha, na Austrália não deixam entrar qualquer emigrante, e é preciso trabalhar.
Fernando: Ah, então não. Vamos para a África.
Psicoterapeuta: Mas na África não há leis, os polícias roubam mais dos que os ladrões.
Fernando: Boa, vamos ser polícias para África!
Psicoterapeuta: Queres mesmo ser um polícia mais ladrão do que os ladrões?
Fernando: E o Brasil?
Psicoterapeuta: Aí são os ladrões que dominam, e são muitos…
Fernando: Vamos para o Brasil, lá podemos ter muitos amigos.
Psicoterapeuta: Só que lá os ladrões também roubam ladrões.
Fernando: Ah, então não…México?
Psicoterapeuta: Ok (é melhor não falar dos carteis de droga…) E como vamos? Em voo de primeira classe como uns reis, ou em turística como simples mortais?
Fernando: Como reis, claro (ri)
Já dentro do avião
Fernando (chama a hospedeira): Traga-me um café e uma coca-cola
Psicoterapeuta: Café e coca-cola? Ui… Isso não te vai fazer mal?
Fernando: Não! (volta a chamar a hospedeira) Quero também champanhe para brindarmos à nossa nova vida.
Psicoterapeuta: Vamos então brindar à vida de ladrões!
Fernando (chama outra vez a hospedeira): Agora quero que me traga milhões de euros… e rápido, a senhora tem que obedecer às minhas ordens, porque é uma empregada e eu sou o “executivo”.
Psicoterapeuta: Achas que ela te vai obedecer?
Fernando (ri-se)
Esta desigualdade na relação, esta assimetria parece lhe dar o prazer de uma transgressão bem sucedida. Quase se imagina o Fernando a pensar: “ninguém descobriu que eu sou só uma criança”
Chegados ao México….
Fernando: Vamos roubar!!!
Psicoterapeuta:Espera…ainda não conhecemos a cidade, é melhor fazer um plano primeiro para não corrermos riscos desnecessários…
Fernando: Está beemmmm (diz em tom impaciente).
O Fernando não consegue esconder a sua excitação por roubar num país estrangeiro, como se imaginasse que desse modo a impunidade é total!
Psicoterapeuta: Então qual vai ser o plano? Onde vai ser o assalto?
Fernando: Só não podemos assaltar o teatro, que é onde o meu pai trabalha
Psicoterapeuta: Ah? Então escolhemos tanto o país para onde íamos viajar e viemos logo parar ao lugar onde o teu pai está? Tens razão… Não podemos assaltar o teatro do teu pai, mas e agora? Porque é que o teu pai está cá?
Fernando: Ele abandonou-nos a mim e ao meu irmão. O meu irmão acha que ele vai voltar, mas eu não… Foi por causa dele que me tornei um bandido.
Psicoterapeuta: Mas ele fugiu porquê?
Fernando: Porque o teatro dele lá em Portugal faliu e ele veio abrir um aqui no México… A minha mãe fartou-se de chorar quando ele se foi embora, ainda não se recuperou… é por causa dele que eu sou um bandido.
Psicoterapeuta: Então ele largou tudo pelo trabalho?
Fernando: Sim, largou mulher e filhos.
Psicoterapeuta: Queres falar com ele?
Fernando: Não, vamos assaltar… Vamos assaltar o cinema
Psicoterapeuta: E se ele tem lá amigos?
Fernando: É melhor eu ir-lhe perguntar (e sai para lhe perguntar no outro lado da sala se ele tem amigos no cinema e o que vai fazer esta noite, para termos a certeza dos passos dele e o podermos evitar)
Fernando: O meu pai é também um bandido. Se o encontrares no Teatro sabes logo quem é, ele é igual a mim, só que mais alto, não muito mais alto, um metro, mas eu também já sou adulto…
Entra em cena o pai que se confunde com a lei. “Não há um Nome que seja seu Nome-Próprio se não o Nome com existência. Ou seja, o semelhante por excelência” (Lacan, 2001, p. 561).
O Fernando-Ladrão e o Ladrão Alexandre decidem ir viver como polícias corruptos para África.
Psicoterapeuta (Ladrão): Sabes, aqui o crime é permitido e assumido como normal, e eu acho isso perigoso, pois se é permitido matar em nome da lei é porque não há leis e todos estamos desprotegidos…
Fernando: Temos pena (encolhe os ombros), vamos ser bombistas como em Paris e matar sem dó nem piedade….
Psicoterapeuta (Ladrão): Eu não quero… estou cansado desta vida, quero voltar para Portugal, casar e ter filhos…
Fernando: Ah? (olha admirado e desiludido). Está bem! Mas vais casar com quem? Tu nesta brincadeira eras um homem ou uma mulher?
Psicoterapeuta: Era o bandido Alexandre, um homem como tu.
Fernando: Mas podias ir fazer uma daquelas operações e tornares-te mulher, e assim podíamos casar os dois…
Psicoterapeuta: Não! O melhor é cada um de nós ir procurar a sua namorada…
Fernando: Mas como é que isso se faz? Como é que eu sei que ela não tem namorado?
Psicoterapeuta: Basta perguntar…
Fernando (ri-se): Casa lá comigo… A hospedeira é feia, tu podias antes ser uma mulher…
Psicoterapeuta: Não dá… cada um tem que arranjar uma namorada da sua idade…
Fernando: Então, tu casas e eu vejo como é!
Psicoterapeuta (escreve uma carta de amor com a ajuda do Fernando) ”Querida Antónia: peço-te desculpa por perguntar isto, era só para saber se tens namorado e, se não tiveres, se aceitas namorar comigo” Alexandre
A Antónia responde (ele dita): “Querido Alexandre: Essa pergunta é verdade? Desculpa dizer-te isto mas eu já tenho namorado e se quiseres acabo com ele, que já acabou a nossa relação, e aceito casar contigo”.
Para o Fernando a questão estava resolvida, destruía o seu rival e conquistava a sua amada.
A Psicoterapeuta não aceita e escreve outra carta:
“Antónia; Não acho boa ideia acabares o teu namoro para nós namoramos, e além disso depois o teu namorado pode vir ter comigo e zangar-se a sério. Por isso vou procurar uma namorada da minha idade, livre para namorar comigo.”
O Fernando não concorda com a carta.
Fernando: Eles podem namorar às escondidas.
Psicoterapeuta: Não concordas com a minha carta? Então diz lá o que lhe dizias.
Fernando (escreve uma outra carta) “Antónia, se quiseres eu aceito e namoramos às escondidas do teu namorado, é só 10 ou 15 minutos.”
Psicoterapeuta: Vamos pensar melhor… No próximo dia decidimos qual das duas cartas enviamos.
Na sessão seguinte, embora ele queira “transgredir” e namorar às escondidas, o Ladrão Alexandre acaba por arranjar uma outra namorada e casar com ela.
Como Ernest Jones (1923) referia a misoginia e a rejeição ao amor são reflexos “da poderosa “repressão” a que seus sentimentos sexuais estão sendo submetidos” (p. 55). Ao mesmo tempo a hipótese de a Psicoterapeuta-mãe se casar com ele, e namorar às escondidas, no segredo e interdito, põe em cena o conflito central da trama edípica.
Hamlet – “Ser ou não ser … eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? (Ato III, Cena I)
Shaskespeare, 1601, p. 81
O tema do casamento e a resistência à transgressão por parte da psicoterapeuta leva o Fernando a, em vez de arranjar uma namorada da idade dele, rivalizar com a família do amigo, atacando-o como seu rival. O Fernando continuava a ser bandido, sem querer casar nem ter filhos, e desafia constantemente o Alexandre para regressar ao crime. O Alexandre estava empenhado em ser um pai de família, e incomodado por esta resistência, o Fernando resolve fazer o papel da sua filha Rita, que desafia o pai, dizendo asneiras, desobedecendo quando era hora de deitar e provocando-o na sua autoridade, fazendo caretas e fingindo mostrar-lhe o rabo, como se os dois fossem colegas de escola, sem nenhuma diferenciação.
Psicoterapeuta (Alexandre): Olha que eu me zango… vou chamar a tua mãe e nós os três vamos ter uma conversa (Chama a mulher Isabel para, enquanto casal, porem ordem às desobediências da filha)
A Rita só quer desafiar o pai, e o Fernando acaba por encenar de mãe, pondo-a à margem do conflito, ignorando os apelos do pai a uma autoridade conjunta.
Um dia o Fernando-ladrão resolve acabar com os “problemas” do seu amigo Alexandre e “rapta-o” de novo para o crime. Mesmo assim o Alexandre só pensava na mulher e na filha. O Fernando raivoso decide matar o Alexandre e ao mesmo tempo ficar com a sua família. Bate-lhe impiedosamente com um taco na cabeça ou com gás hipnotizante, ora para a anestesiá-lo e não o deixar pensar, ora para o levar a fazer coisas contra a sua vontade.
A necessidade de o anestesiar acontecia sempre que o Alexandre pensava em voz alta, narrando a situação em que estava envolvido – ameaçado pelo melhor amigo e afastado da sua família - Quando utilizava o gás hipnotizante, para dominar o pensamento e ação do amigo, obrigava-o a dizer que já não gostava da mulher nem da minha filha, e que queria voltar a ser ladrão.
Fernando (Ladrão): Agora eu vou-te matar …
Psicoterapeuta (Alexandre): Se me matares, a polícia vai-te prender…
Fernando (Ladrão): Temos pena (ignorando por completo qualquer tipo de punição ao crime).
Escreve num papel “Eu agora quero acabar contigo para sempre” e do outro lado da folha “OK”- num diálogo interior que não mostra à psicoterapeuta e que dá conta do seu desejo incestuoso. O Fernando mata o Alexandre e a filha Rita, mas quando vai disparar sobre a Isabel, a pistola falha e fica sem munições. Nisto aparece a polícia de alta segurança que o prende numa cela super segura, da qual ele nunca poderia fugir.
É o triunfo de Édipo. A seguir ou se “cega” como nos diz Sófocles, ou sublima como responde Freud.
Na esquadra de alta segurança…
Polícia (interrogatório): É verdade que matou o seu amigo Alexandre e a filha dele Rita?
Fernando: É verdade, matei o Alexandre porque ele gostava de carinho e da mulher Isabel, e eu não gosto disso. E a filha dele, matei-a para que ela tivesse menos tempo de vida…. Ainda falta o meu pai, que também é ladrão e que pode continuar a matar pessoas…
Entra o Juiz
Juiz: Depois de confessar o seu crime, a sua sentença é de 25 anos de prisão, pena máxima em Prisão de alta segurança. Quer ajuda psicológica?
Fernando (ladrão): Não. Vou sair daqui com 45 anos, que é a idade atual do meu pai… Ainda tenho muito tempo para viver, sou novo … (mostrando um ar vitorioso de quem o castigo não o incomodou).
No entanto, mesmo com a ideia de sair da prisão ainda novo, o Fernando parece um pouco perdido, sem família, com o melhor amigo assassinado por si, sem trabalho, e sem poder voltar ao crime.
Édipo - (…) Ó luz que eu te veja pela derradeira vez! Todos agora sabem: tudo me era interdito: ser filho de quem sou, casar-me com quem me casei…e….e…eu matei aquele a quem não poderia matar!” Sófocles (C. 496 AC-406 AC), p. 86
Fernando: Quando sair da prisão, volto a fugir de país…
Psicoterapeuta: Há leis em todos os países…
Fernando: Ok… Moral da história: o crime não compensa!
Estamos no impasse: ou esquece o desejo ou fica preso no mito. E como dizia Goethe “a sabedoria é renúncia porque realizar todos os nossos desejos é cortejar o caos” (Bloom, 2002/2014, p. 200).
Durante o tempo de prisão – os 25 anos que precisa de esperar –, o Fernando vai relatando outras histórias. É como se tudo se passasse dentro das quatro paredes da prisão, mas num imaginário sem limites, desprovido de qualquer arame farpado a separar a vida lá fora. Uma espécie de sonho ou confabu-
lação, onde a relatar as histórias dos outros, tenta perceber a sua. Para o Fernando ainda não é certo que a moral da sua história seja que o crime não compensa…
Todas as personagens das novas histórias são companheiros da prisão, todos se conhecem lá, mas desta vez as histórias, que começam na mesma procura da impunidade do mal e da superação do castigo, acabam por se transformar nas histórias dos filhos dos ladrões, que tentam ir além do que lhes ensinaram, dentro do crime, claro!
Começa aqui a hipótese de espera e um início de identificação.
A primeira história é a do Brian. O Brian (representado pelo Fernando), um polícia corrupto da Costa Rica, e o Jonathan (representado pela psicoterapeuta), um ladrão argentino, conhecem-se numa prisão em Portugal.
Brian (Fernando): Se quiseres, posso dar-te a liberdade, mas para isso, preciso que te juntes a mim no crime…
Jonathan (Psicoterapeuta): Mas eu não sou um assassino, eu fui preso por fraude fiscal…
Brian (Fernando): Então não és um ladrão à séria? Eu posso ensinar-te a matar pessoas.
Jonathan (Psicoterapeuta): Não consigo…não quero, tenho medo
Brian (Fernando): Eu vou-te ensinar, agora podes ir, estás livre.
Jonathan (Psicoterapeuta): Se quiseres, volta a prender-me, mas matar eu não consigo!
Brian (Fernando): Então vou ter que te prender de novo, até que te transformes numa pessoa agressiva.
O Jonathan tinha raiva, zanga, estava cansado e triste, não queria comer nem beber, mas recusava-se a matar.
Brian (Fernando): Não entendo porque resistes tanto… eu pertenci ao gangue “os irmãos da morte” e era uma questão de honra matar….
Brian conhece um outro bandido – o Rafael – a quem se alinha no crime
Brian (Fernando) – Queres ir comigo para o Brasil? Lá é fácil roubar e ter muito dinheiro…
Rafael (Psicoterapeuta): Ouvi dizer que as brasileiras são muito bonitas…
Brian (Fernando): Eu quero ir roubar, e quando não estiver a roubar quero dormir!
Brian entra para um gangue, mas todo o gangue é aniquilado por um grupo rival, sobrando apenas o sub-chefe, filho de Brian, conhecido no gangue por Valentão, e um soldado raso, conhecido pelo Cobarde. Os dois são feitos reféns pelo grupo rival, e passam a ter que obedecer às ordens do chefe desse grupo, de alcunha Durão. Fica a dúvida se o pai do Valentão, o Brian, morreu no confronto, pois por vezes o Valentão fala dele como estando morto, noutras ressuscita-o para retornar a ele, na posição de filho e não de seu sucessor. O Valentão desafiava constantemente o Durão, enquanto o Cobarde queria agradar e raramente entrava em conflito.
Valentão (Fernando): O Cobarde foi afastado da sua mulher, mas felizmente não tinha filhos. Já eu, não tenho ninguém, vivia com a minha mãe e o meu pai, que era polícia. O meu pai decidiu tornar-se ladrão. Era valente, destemido, corajoso e não tinha piedade por ninguém, e eu sou igual a ele.
Durão (Psicoterapeuta): Pois agora essa tua valentia serve-te de pouco. Tens que obedecer a mim, que sou o teu chefe.
Valentão (Fernando): Mas eu também queria ser chefe, posso ser o teu sub-chefe?
Durão (Psicoterapeuta): Um dia serás um chefe, mas por agora vais ter de esperar…
Valentão (Fernando): Então, deixa-me voltar para casa, para perto dos meus pais.
Durão (Psicoterapeuta): Está bem, mas as tuas armas ficam comigo
Valentão (Fernando): Mas eu sem elas não sou nada…
Não aceitando ficar desarmado, volta a desafiar o chefe (às vezes este chefe é o rival, outras é o seu pai Brian, que vai à prisão para o levar de volta a casa).
O Valentão mata o chefe e torna-se Presidente da Síria – o mais forte de todos, mas ao mesmo tempo, cheio de culpa, chora no enterro do chefe assassinado, e promete proteger e cuidar dos seus filhos como se fossem da sua própria família.
Fernando: Acabou-se esta história, vamos começar outra, e como sempre o início é: “conheceram-se na prisão…”
Rei- “ Vamo-nos; minha alma, em discórdia e terror, não se acha calma” (Ato IV, Cena I)
Shaskespeare, 1601, p. 124
A próxima história é a do filho do Robin dos Bosques – Júnior, que era o oposto do pai.
Fernando (Júnior): O meu pai roubava aos ricos para dar aos pobres, eu não, eu mato para enriquecer.
O Júnior quer ter um aliado – o ladrão Alexandre, que era muito esperto, mas que tinha medo de fantasmas e pesadelos à noite. Júnior sabia que os dois juntos eram muito fortes e destemidos, embora sozinhos, nenhum dos dois o fosse.
Fernando (Júnior): Sabes Alexandre, eu nunca pedi conselhos ao meu pai, nós os dois não nos dávamos bem. Quando eu era pequeno, eu bati no meu pai e tive que fugir para não ser castigado. Escondi-me toda a minha vida...
Psicoterapeuta (Alexandre): E achas que compensou? Estares invisível toda a tua vida para poderes confrontar o teu pai?
Fernando (Júnior): Lá em casa, ninguém gostava de mim, o meu irmão mais novo é que era a “estrela da companhia”. Ele tornou-se um jogador de futebol e ajudou a minha família a ser rica. O meu pai ficou-lhe muito agradecido e ofereceu-lhe a casa onde todos viviam, e assim o meu irmão tornou-se quase o homem da casa.
Psicoterapeuta (Alexandre): Não pode ser… Um filho o homem da casa? Não acredito nessa história, os homens da casa são os pais, eles é que mandam…
Fernando (Júnior): Se não acreditas, então porquê que também tu te transformaste num assassino?
Psicoterapeuta (Alexandre): Tenho que te confessar uma coisa, eu não sou o valente que tu pensas, sou apenas curioso, um dia vi uma mala, pensei que era dinheiro, mas acabou por ser uma bomba… eu quase morri, eu não sou um terrorista, foi por vergonha de ser apenas curioso como uma criança que menti e fingi ser um criminoso….
Fernando: Esta história também já acabou….
Édipo toma seu manto, retira dele os colchetes de ouro com que o prendia, e com a ponta recurva arranca das órbitas os olhos, gritando: “Não quero mais ser testemunha das minhas desgraças, nem de meus crimes! Na treva, agora, não mais verei aqueles a quem nunca deveria ter visto, nem reconhecer aqueles que não quero mais reconhecer!” Assim confundiram, marido e mulher, numa só desgraça, as suas desgraças! Outrora gozaram uma herança de felicidade; mas agora nada mais resta senão a maldição, a morte, a vergonha, não lhes faltando um só dos males que podem ferir os mortais”
Sófocles (C. 496 AC-406 AC), p. 91
Cena III
A próxima história é do Pirata-Fernando e a vingança em nome do seu pai.
Pirata Fernando: O meu pai lutou, quando eu era apenas uma criança, com o Pirata Todo-Poderoso, mas nunca o venceu. Apenas conseguiu cortar-lhe um braço, numa das suas lutas, mas o Pirata Todo-Poderoso conseguiu fugir com o tesouro da família e as nossas relíquias.
Aos 15 anos, o Pirata-Fernando decidiu ir lutar com o Pirata Todo-Poderoso para recuperar o que a família tinha perdido, e foi se aconselhar com o seu pai.
Pirata-Fernando: Pai, eu quero ir lutar com o pirata Todo-Poderoso para reconquistar as nossas relíquias de família.
Pai (Psicoterapeuta): Espera mais um pouco, tem calma, meu filho. É preciso primeiro construir canhões, conquistar armas, aprender a lutar e a ser corajoso como só os crescidos sabem ser… Aos 30 anos já terás força e tamanho para isso!
Quando fez 30 anos, o Pirata Fernando foi lutar contra o Pirata Todo-Poderoso, acabando por o vencer.
Pirata Todo-Poderoso (Psicoterapeuta): Estou a ver que o teu pai te educou bem, que te ensinou a ser tão forte e corajoso como ele. Agora que és adulto, podes conquistar mar e terra e todos os tesouros do mundo serão teus.
Como sugere Mezan (1995) “quer a tragédia quanto a Psicanálise operam um doloroso desvendamento do sujeito, construído, por sua vez, a partir de numerosos fragmentos e resistências emocionais (…) tal analogia adquire maiores proporções se levarmos em conta que o trabalho clínico e o dramatúrgico são pautados pela mimese enquanto imitação ou reatualização da vida que visa, em última instância, a purgar ou a purificar sentimentos reprimidos” (cit. Souza, 2006, p. 152).
O Édipo marca o “triunfo da geração sobre o indivíduo” (Freud, 1925/1976, p. 297).
Ao falarmos do Complexo de Édipo, estamos a falar de narcisismo e identificação. Narcisismo na escolha de objeto, identificação na gênese do ego.
O papel da identificação é sublinhado por Freud em “Psicologia de Grupo e Análise do Ego” (Freud, 1921/1996) como central nesta trama, passando aquele processo necessariamente por um movimento de ambivalência, oscilando entre admiração e substituição; assimilação versus aniquilação.
Para a constituição do Ego, concorrem outras estruturas, como o ideal do ego e o superego, o primeiro em busca da satisfação do desejo, o segundo na sua repressão, manifesto através da angústia de castração. Destas forças opositoras, resulta, em proporção direta, o poder de uma sobre a outra, sendo tanto maior a repressão superegóica quanto o desejo latente por satisfazer.
Nas palavras de Freud
“quanto mais poderoso o complexo de Édipo e mais rapidamente sucumbir à repressão (…) mais severa será posteriormente a dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência ou, talvez, de um sentimento inconsciente de culpa (...) O ideal do ego, portanto, é o herdeiro do complexo de Édipo e, assim, constitui também a expressão dos mais poderosos impulsos e das mais importantes vicissitudes libidinais do id” (Freud, 1923/1996,p. 21).
A resolução edipiana tenderia assim a passar pela constatação do insucesso, introjetando o interdito, e defendendo-se dos impulsos libidinais por via da dessexualização e sublimação. Segue-se o adormecimento libidinal, próprio da latência, cuja repressão, afasta o ego do complexo de Édipo, que “equiva-
le, se for idealmente levado a cabo, à sua destruição e abolição” (Freud, 1924/1996, p. 104).
Em caso de uma mera repressão, este persistirá “em estado inconsciente no id e manifestará mais tarde seu efeito patogênico” (Freud, 1924/1996, p. 105).
Se Hamlet, na sua patogenia, dá voz e corpo ao mito de Édipo, o Fernando, no contexto analítico, revela-nos a neurose infantil enquanto reflexo do fantástico e do transcendente que se inscreve numa realidade ficcional. Poder viver este desejo, sem a censura, ainda que no confronto fantasmático do interdito, é catártico e transformador.
Talvez tenha sido também para Shakespeare revelador, a personagem que criou e se imortalizou em Hamlet.
Na peça em que o Fernando é a personagem principal, este apresenta-se no Primeiro Ato com os contornos de inibição de Hamlet, prisioneiro da imagem especular do pai, face ao qual ele é apenas sombra e aquele assombração.
É possível adivinhar pelo prólogo, a encruzilhada do Fernando através do discurso dos pais: preso numa relação incestuosa com a mãe – envolto no segredo dos dois – e perseguido pela presença imponente do Pai-rei, relativamente ao qual está e sempre estará aquém. No entanto, ele ocupa o lugar do pai – em segredo, confirmando o interdito, e que se inscreve no real e não apenas na fantasia – quer na sua cama, “dormindo encostadinho” à mãe, quer no desejo inconsciente desta, que lhe pede que preencha o vazio deixado pelo marido.
Vive-se o mito, mas porque o mito não se restringe ao sonho, a lembrança do desejo culpabiliza e inibe o seu pensamento e a sua fala.
A encruzilhada é tanto maior quanto o destino da resolução do conflito esbarra no desejo na mãe, pela “carência” da função do Nome-do-pai, noção evocada por Lacan, não necessariamente por omissão do interdito, mas pela demissão do pai como objecto de desejo da mãe. Este lugar vago é o que permite ao Fernando ambicionar ocupá-lo (Zenoni, 2007).
É este lugar vago que coloca o Fernando no “sério risco de ficar preso no desejo de “ser” esse objeto do desejo, no lugar de uma preferência-identificação por “aquele que tem”, na condição de “Ideal do eu”” (Zenoni, 2007, p. 20), gerando a dissociação entre a lei e o desejo, dificultando o encontro com o Outro, pela inibição.
Na encenação analítica, procura-se dar a conhecer esta lei que dá forma a tudo o que se vive, a lei do desejo, que se funde na incompletude e na falta, cuja constituição do sujeito depende do seu reconhecimento enquanto desejo do Outro. O lugar deixado vago deste Outro - o Nome-do-pai universal - leva-o a identificar-se à lei e confundir-se com ela. Porque identificado a um ideal, o falso conduz aos “sinais da traição e da impostura” (Zenoni, 2007, p. 20).
É por esta razão que a encruzilhada do Fernando é duplamente constrangedora. Por um lado, ele é o Pai, ocupando simbolicamente o seu lugar, por outro, este pai é a Lei, restando-lhe apenas imitá-lo. Fica assim aprisionado, com igual intensidade, à tirania do desejo, “que gera o temor da defesa que se apodera do sujeito” e ao interdito que “tira do sujeito o enunciado do desejo para passá-lo para Outro, a esse inconsciente que não sabe nada daquilo que seu próprio enunciado suporta “(Lacan, 2005a, p. 35, cit. Zenoni, 2007, p. 19).
“Dizem que é nele (pai) que se encontra a chave do Édipo, ou seja, sua saída. (Lacan, 1998, p. 188, cit. Zenoni, 2007, p. 18) e para Lacan, “a verdadeira função do Pai […] é, fundamentalmente, unir (e não opor) um desejo à Lei” (Lacan, 1966a, p. 824, cit. Zenoni, 2007, p. 19), mas, no entanto, é à mãe que se deve a permissão ou barreira da entrada do pai na cena.
Em Totem e Tabu, Freud (1913) fala desta ambivalência emocional, expre-ssa no mito grego de Édipo-Rei, onde a criança, ama e admira o pai, que vê como ideal, mas também o identifica como “perturbador máximo da (…) vida instintiva; (…) modelo não apenas a ser imitado, mas também a ser eliminado para (…) tomar o seu lugar” (p. 146).
O que a seguir acontece, nas palavras de Freud, depende do desligamento da imagem poderosa do pai e da descoberta do admirável mundo exterior. No entanto, é exatamente porque o Fernando não se desliga da imagem poderosa do pai, que, sem outra hipótese que não ser igual a ele, vai para a escola e aprende, lutando por ser o melhor dos melhores. É nesse lugar, no lugar dos “melhores”, que congela por saber estar “aquém” do papel que lhe impuseram, e ter medo de ser descoberto na fraude.
O nascimento do irmão marca outro ponto importante no complexo edipiano, aprisionando-o nas teias da ambivalência.
Tal como Hamlet, o Fernando vê o lugar do pai – seu por direito - ocupado, não pelo tio como acontece a Hamlet, mas pelo irmão mais novo, confirmando a traição da mãe, ao mesmo tempo que confirma a vulnerabilidade do pai, até aí considerado todo-poderoso.
A ambivalência instala-se, já que é ele, e só ele, que é escolhido para parti-lhar a cama da mãe, e o lugar deixado vazio pelo seu pai – sempre que este se ausenta, potenciando a dimensão sedutora da mãe, que reaviva a culpa original incestuosa.
A culpa será tanto maior quanto mais vulneráveis forem vistos os seus rivais e quanto mais o lugar vazio lhe for oferecido, colocando-o “na perigosa posição de objeto do desejo materno, agora sem o anteparo representado por um homem mais velho. Daí o temor da conjunção fatal entre os dois desejos (o seu e o dela)” (Souza, 2006, p. 149).
Assim de novo, o lugar que o pai deixa vazio para ele ocupar, confirma-lhe que o pai é substituível, só que a entrada do irmão oferece-lhe a ambiguidade da mãe, “conspurcando” o desejo. E curiosamente, na encenação do Fernando, o pai-morto, representando o lugar vazio, não carrega a inibição manifesta no ato de matar, simbólica ou fantasmaticamente, que este novo rival – o irmão - lhe provoca e a quem atribui o papel da “estrela da companhia” e sucedâneo do Lugar do Nome-do Pai. E é nesse sentido que o Fernando se aproxima de Hamlet e o Tio-Padrasto se cola à imagem do irmão.
A hesitação de Hamlet, que dá a Freud “o mote para o estabelecimento de uma ponte original entre o conceito de complexo de Édipo e a tragédia pessoal vivida pelo personagem de Shakespeare” (Souza, 2006, p. 147), contrasta com a possibilidade de pôr em cena o impulso homicida de Fernando, por força da contenção e elaboração que o cenário analítico oferece, na tal realidade ficcional, que embora catártica, é inconsequente ao nível da censura e punição.
A “loucura” de ambos, Hamlet e Fernando, expressa na hesitação do primeiro e na compulsão ao ato do segundo, têm por base a mesma natureza inconsciente e libidinal, reatualizada com a morte do pai – no caso de Hamlet – e o lugar vazio no desejo da mãe – no caso de Fernando -, viabilizando, nos dois casos, o “desejo incestuoso que (…) constitui-se em uma das peças estruturantes da teoria edipiana” (Souza, 2006, p. 147).
No entanto, a traição da mãe com o novo rival – o tio-padrasto de Hamlet e o irmão do Fernando - cruza-se nas duas personagens, transformando o amor e ternura em raiva e rancor, reeditando o ciúme infantil, perante o reconhecimento de ter sido “mais uma vez preterido, frustrado narcisicamente em suas intenções amorosas” (Souza, 2006, p. 149).
O fim desta ambiguidade inconsciente, passa pela “hesitação ceder lugar à vingança” (Souza, 2006, p. 151)
É assim que a trama de Fernando se desenrola – a constante vingança e desejo parricida, que o obriga a lidar com a culpa e a castração.
A proposta da análise é a saída do sintoma e do acting-out promovido pela remissão das defesas psíquicas, mediante a experiência da relação do sujeito com o próprio desejo e com as barreiras que separam um do outro. A barreira entre o desejo e o sujeito é a lei, que marca a impossibilidade de consumação última, pela interdição que favorece a própria estrutura pulsional.
A encenação do mito, a personificação de Édipo em Hamlet, oferece essa estrutura significante, articulando ambas as forças conflituantes, lei e desejo, e cuja análise deverá desvendar, compreender e ajudar a integrar.
Ao longo dos vários Atos da peça de Fernando, vemos o desenrolar do gozo sádico, para lá da transgressão, como a afirmação e o desmentido da própria lei, renegando a castração simbólica no permanente encolher de ombros associado à frase “temos pena”, que o coloca na tentativa da satisfação do desejo, pelo retorno invertido da pulsão.
Nesta trama, o Fernando apresenta-se preso no lugar de objecto de desejo da mãe, e o terceiro elemento – campo do Outro - interfere nesse lugar de omnipotência que ocupa. “O Nome-do-pai, que é o Não do pai”, surge “sob a forma de Lei, introduzindo a falta e inaugurando ao mesmo tempo, o amor e o desejo” (Jorge & Ferreira, 2005. p. 52).
Mas se, por um lado, o pai interdita a mãe, enquanto agente da castração, por outro, a mãe não se submete à Lei do pai e transmite ao filho ser ele o objeto do seu desejo e mais ninguém. É por isso que, na encenação do Fernando, o pai deixa de ser ameaçador. Cabe então à análise repor o pai real, confirmando, ratificando e reforçando a sua função simbólica, para que este possa ser investido como imaginário, idealizado, tornando-se o “ pára-raio dos ciúmes, do amor e do ódio” (Jorge & Ferreira, 2005. p. 54).
Esta seria para Freud a saída ou solução do drama edipiano, pela identificação, ou seja “o menino (com) direito de ser homem” (Jorge & Ferreira, 2005. p. 55). Nas palavras de Marco António Coutinho Jorge “é preciso renunciar ao que nunca se foi e ao que nunca se teve, mas que um dia se acreditou ser (frustração) e ter (castração)” (Jorge & Ferreira, 2005. p. 55) para que se possa vir a ser um Homem, e não o eterno menino.
“Para que haja o vigor do desejo, é necessário que haja a inclusão da morte – a castração – na vida. É a verdade que nos ensina Hamlet no limiar de sua existência” (Jorge, 2010, p. 185).
A trama termina com esta identificação e o desejo de crescer. A frustração deu lugar à privação, onde a morte de Hamlet - na renúncia ao lugar de objeto de desejo da mãe – deu lugar à dissolução do mito e ao declínio de Édipo.
“Os gregos são, como dizem os sacerdotes egípcios, as eternas crianças, sendo também na arte trágica as crianças, que não sabem que brinquedo sublime se originou em suas mãos — e nelas será destruído” (Nietzsche, 2006, p. 88).
Na perspetiva de Nietzsche (2006), o mito é o que transmite à cultura a sua “força natural, sã e criadora” (p. 115), e por isso a sua encenação oferece à Psicanálise e à tragédia grega a busca da verdade da origem primordial do Homem.
Shakespeare, em sua criação literária, oferece-nos esta verdade na forma de um “reconhecimento” da voz interior de Hamlet (Bloom, 2002/2014, p. 55), que Lacan (1989) descreve como sendo o “centro da meditação sobre as origens” (p. 104), no lugar onde se inscreve a lei, na relação de Édipo e o Outro.
Como refere Meiches (2000) “a partir de uma circunscrição desse originário, o novo pode advir sem resvalar para a repetição que obedece a um automatismo impercetível” (p. 80). Este é o papel da análise, que, ao escutar os Édipos e os Hamlets da clínica psicanalítica, os encena, enquadrando as vozes sábias da Grécia antiga no jogo em forma de sonho da criança em análise.
Como diria Freud ([1915-1917], p. 392) “a análise confirma o que a lenda descreve” e na clínica encontramos o Édipo que o neurótico foi ou o Hamlet que, como reação ao complexo, o Homem-menino se tornou.
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O que leva Hamlet a Édipo, centrando neste último o complexo que Freud eternizou como a explicação da neurose infantil, é que Hamlet personifica o mito, estando neste expresso o recalcamento, enquanto Édipo representa o desconhecimento que o leva a repetir inconscientemente a recordação do desejo. No presente artigo, a ilustração clínica procura dar corpo a estas personagens da literatura e da tragédia, onde o Fernando, protagonista do Teatro da Neurose, nos oferece o sintoma de Hamlet – a inibição – para, através da sua encenação, poder dissolver o Édipo. O papel da análise, ao escutar os Édipos e os Hamlets da clínica psicanalítica, é encená-los no jogo, em forma de sonho, da criança em análise. A análise, como diz Freud (1915-1917), confirma o que a lenda descreve, e na clínica encontramos o Édipo que o neurótico foi ou o Hamlet, que, como reação ao complexo, o Homem-menino se tornou.
From Hamlet to Oedipus: The Story of Childhood Neurosis
What leads Hamlet to Oedipus, centering in the latter the complex that Freud eternalized as the explanation of the infantile neurosis, is that Hamlet personifies the myth, being in him, express the repression, whereas Oedipus represents the ignorance that leads him to repeat unconsciously the memory of the desire.
In this article, the clinical illustration seeks to give body to these characters of literature and tragedy, where Fernando, protagonist of the Theater of Neurosis, offers us the Hamlet symptom - inhibition - to, through its staging, to dissolve Oedipus. The role of analysis, in listening to the Oedipus and Hamlet´s of the psychoanalytic clinic, is to enact them in the dream-like game of the child under analysis. The analysis, as Freud (1915-1917, p. 392) says, “confirms what the legend describes” and in the clinic we find the Oedipus that the neurotic was, or the Hamlet, that, as a reaction to the complex, the Man-boy became.
Hamlet, Oedipus, Childhood Neurosis