Revista | Vol. 8, N. 1, Dez 2017

Caos, movimento e criação

“Podemos fazer o nosso modelo mais complexo e fiel à realidade, ou podemos torná-lo mais simples e fácil de manejar. Apenas o cientista mais ingénuo acredita que o modelo ideal é aquele que representa perfeitamente a realidade. Um tal modelo teria os mesmos inconvenientes de um mapa de uma cidade do tamanho da própria cidade (…). Se um tal mapa fosse possível, a sua especificidade iria anular o objectivo: generalizar e abstrair.”    
James GleicK, 1989

 

Os tradicionais cinco órgãos dos sentidos são insuficientes para descrever a capacidade humana de aperceber a realidade. A razão, a intuição e a construção do conhecimento científico evidenciam realidades para as quais só podemos aceder, por exemplo, através da matemática, como a dimensão do espaço-tempo. Ou então o sentir do outro através da capacidade empática e da contratransferência.

A espécie humana parece ser também a única capaz de criar múltiplas realidades, mundos simbólicos complexos (cultura, arte, religião, ciência, web) cuja existência (ainda que virtual) é, em alguns casos, legitimada apenas pela própria crença na sua existência, como Deus.

Outros animais têm também a capacidade simbólica de comunicar, como é o caso das abelhas, por exemplo. Mas a espécie humana desenvolveu e continua a desenvolver capacidades de comunicação de uma complexidade incomparável. A capacidade de transmitir quantidades cada vez maiores de informação a cada vez maiores distâncias. Ou até a capacidade “telepática” wireless de comandar movimentos de um objecto virtual num écran de computador.

Apesar da sofisticação e do grau de diferenciação da comunicação humana e da complexidade da sua organização social, os teóricos dos sistemas têm encontrado isomorfismos (semelhanças de forma) entre diferentes tipos de sistemas, sejam físicos, biológicos ou grupos sociais. Alguns princípios serão comuns aos vários níveis de organização (Bertalanffy, 1977).

A tentativa de apresentar uma concepção unitária do mundo baseia-se no isomorfismo das leis em diferentes campos, nas analogias e homologias entre estes.

O princípio organizador de base é que se encontra organização em todos os níveis (Gleick, 1989).

O segundo princípio da termodinâmica enuncia que, num sistema fechado, uma certa quantidade de desordem (entropia) deve aumentar ao máximo até que o processo pára num estado de equilíbrio, ou seja, tende para o estado mais provável, a máxima desordem e nivelamento das diferenças (Gleick, 1989).

Nos sistemas fechados a ordem é sempre destruída. O estado final é determinado pelas condições iniciais. Daí que muitas experiências em laboratório poderão ser replicadas vezes sem conta em iguais condições iniciais, com o mesmo resultado final. São sistemas com funcionamento linear.

Nos sistemas abertos o mesmo resultado pode ser obtido a partir de diferentes condições iniciais e por diferentes maneiras. Ou seja, há uma equifinalidade (Bertalanffy, 1977). É a meta que regula o processo, o que contraria as leis da física tradicional. Finalidade é o inverso de causalidade. É a dependência do processo em relação às questões futuras em vez das passadas (teleonomia).

No mundo vivo, há uma transição para uma ordem mais alta de heterogenidade e organização, o que faz com que o sistema seja preservado apesar da entropia. Este processo que se opõe à desorganização, através de injeção de nova energia, é um mecanismo cibernético a que Prigogine (Prémio Nobel da Química em 1977) chamou de sintropia, neguentropia ou entropia negativa – conceito desenvolvido antes por Schrödinger, entre outros (Gleick, 2011).

O estudo dos sistemas físicos complexos trouxe contributos importantes para a ideia de uma teoria do mundo unificada.

Por exemplo, quando se estuda o comportamento gravitacional de dois corpos, os cálculos são relativamente simples. Mas quando se estudam mais de dois, o problema complexifica-se, ficando sem resposta as questões da previsão do comportamento a longo prazo, dado que pequenas variações nas condições iniciais podem traduzir-se em grandes alterações no resultado final (Efeito Borboleta). “(…) qualquer sistema físico que se comporte de forma não-periódica é imprevisível” (Edward Lorenz, 1961, cit. por. Gleick, 1989, p.43).

Também a geometria euclidiana baseada em formas artificiais (círculo, triângulo, quadrado…) não representa a natureza. Na realidade, a natureza revela-se através de formas com contornos imprecisos de geometria auto-semelhante ou fractal, como lhe chamou Mandelbrot em 1975 (cit. por Gleick,1989), repetindo as imprecisões em escalas cada vez mais pequenas (como nos cristais de gelo).

Nestas condições, acumular informação microscópica detalhada não se revela útil para fazer previsões no comportamento macroscópico. Apesar disso, um sistema caótico pode apresentar um estilo particular de irregularidade. Ser previsível na sua imprevisibilidade (Gleick, 1989).

Quem tem cães num quintal, sabe do incómodo que é a queda de pelos daqueles. Rapidamente os pelos se espalham por toda a extensão do espaço. Contudo, basta haver movimento forte do ar (vento), ou seja, introduzir alguma turbulência ao sistema-quintal, com a ajuda das fronteiras-limites do sistema e seu papel na dissipação (muros, paredes, degraus e outros objectos), aos poucos emergem estruturas organizadas – tufos de pelos que se amontoam. Esses tufos multiplicam-se, agregam-se num crescendo se o vento sobe de intensidade, até que podem chegar a dividir-se, como numa célula, quando atinge o seu tamanho crítico.

A forma como se organizam parece dever-se ao surgimento de núcleos de atração – provavelmente devido à formação de estruturas idênticas aos “atractores centrais” de que fala o meteorologista Edward Lorenz. Ou seja, independentemente do lugar inicial de cada elemento, sabe-se que o movimento turbulento irá atraí-los “coercivamente” em torno de pontos de atração, o que leva a que o seu comportamento só possa ser explicado através da finalidade ou orientação em direção a uma meta. Podemos pensar, por exemplo, no anticiclone dos Açores como um atractor que condiciona todo o movimento das partículas do ar em torno de si próprio.

Os atractores têm importante propriedade de estabilidade num sistema. Independentemente das agitações e colisões dos elementos, o seu movimento tende a regressar ao atractor. Esses atractores podem apresentar múltiplos e “estranhos” padrões (Gleick, 1989). Toda a natureza parece estar assim organizada, em estruturas fractais orientadas para uma finalidade. Serão essas as principais leis universais da própria vida.

Poderemos supor que nas plantas, o atractor ou a finalidade será a busca de luz (fototaxia). A árvore cresce em direção à luz até que um tronco dá origem a dois ramos e esses a outros dois, e assim por diante, obedecendo a uma lógica fractal de bifurcação. Contudo, o tronco e os ramos não se desenvolvem sem raiz. Também as raízes parecem obedecer a padrões baseados na bifurcação em direção a uma finalidade (busca de água - hidrotaxia). Para assegurar o crescimento do tronco, mantendo a integridade identitária da árvore, sem fracturas nem colapsos, esse crescimento deve ser proporcional à capacidade da raiz se fixar e oferecer como suporte e motor válido daquela. Obviamente que não pode ser desprezada a qualidade do meio.

A árvore parece assim desenvolver-se num equilíbrio entre forças com finalidades de sentido divergente mas complementar e interdependente.

Podemos também olhar para os animais, entre os quais nos incluímos, a partir do mesmo modelo obedecendo a estruturas idênticas nas várias dimensões de análise. Por exemplo, a estrutura corporal: um tronco com cinco subdivisões (cabeça e quatro membros) e subsequentemente os membros com outras cinco subdivisões – os cinco dedos.

Se observarmos do ponto de vista da “estrutura da árvore” da transmissão de vida nos animais sexuados, podemos também considerar que obedece a um padrão fractal com uma finalidade: o encontro com o complementar. O indivíduo nasce de dois indivíduos (pai e mãe) que nasceram de outros dois indivíduos (pai e mãe), e assim sucessivamente. O mesmo indivíduo poderá repetir o padrão dando origem a outros indivíduos, prolongando a vida “indefinidamente”.

A propagação da vida faz-se obedecendo a uma lógica preponderantemente convergente, de encontro com o outro complementar. “Tout se qui monte converge inévitablement” (Rosa, Comunicação pessoal, citando Teilhard de Chardin).

A estrutura fractal da hereditariedade não se limita a transmitir informação do passado, do pai e da mãe, ela também cria informação onde antes não existia. Essa memória criadora é informação que é passado, presente e futuro. O DNA são as “raízes” do novo indivíduo, é a força conservadora que o sustenta no passado, que o alicerça, em contraponto com a força que o atira para fora de si em direção ao mundo.

Depois do nascimento, a informação do novo ser, através do contacto com o outro, é também transmissão da informação do passado com seus padrões afectivos e relacionais, cultura e valores, através da família e/ou das comunidades a que pertence - mas sempre actualizado e renovado em direção ao futuro adivinhado (intuído). Ou seja, quer a organização-família quer a escola transmitem valores-memória-informação do passado, que imaginam ou pressupõem útil para o futuro. Alicerçam-se nas “raízes”, projectando o desenvolvimento futuro.

Em todo o caso, a finalidade primordial será o aumento de probabilidade de manutenção e propagação de informação-vida. Apesar disso, do nosso ponto de vista, essa finalidade não pode ser pensada apenas como o cumprir de uma finalidade individual, será uma “missão” que transcende o indivíduo. É também filogenética. Resultará da intercepção de “forças coercivas” individuais e de grupo que se inter-relacionam, conjugam e inovam. Do mesmo modo, quando um jovem faz escolhas vocacionais, balanceará dados do passado, projectados num futuro adivinhado em articulação com os estímulos correspondentes às expectativas e necessidades dos diferentes grupos a que pertence, nomeadamente a família e a comunidade. Mas não é apenas uma adaptação ao ambiente. O indivíduo tem também, como refere Coimbra de Matos (2016), a capacidade aloplástica de adaptar o ambiente.

Se aplicarmos o mesmo modelo de observação da realidade aos grupos sociais, facilmente encontraremos analogias que não serão irrelevantes. Não será difícil pensar os diferentes grupos sociais como estruturas organizadas semelhantes aos tufos de pelos no quintal que referimos antes, com suas fronteiras próprias mas irregularmente delimitadas e relativamente “fluidas”, interrelacionando-se, agregando-se ou dividindo-se consoante a capacidade mobilizadora dos seus atractores (os líderes), as fronteiras do sistema onde se insere (e sua inserção noutro de nível superior e por aí adiante) e ainda da instabilidade existente no meio. Até certo ponto, a instabilidade/turbulência do meio contribuirá para o reforço da organização, por sintropia.

As organizações que se formam num meio caótico contribuem para a diminuição da incerteza e estabilização do sistema. Por um lado, “compelem à repetição”, como diria talvez Freud. Apesar disso, como é próprio dos atractores de Lorenz, compelem igualmente à inovação, ao caminho diferente, nunca repetido. É o desequilíbrio que é criador, ou em linguagem popular: “A necessidade é a mãe de toda a invenção”.

Ao contrário, a estabilidade a que assistimos nas últimas décadas na geopolítica acabou por trazer as sementes do enfraquecimento das estruturas organizacionais. A estabilidade enfraqueceu a democracia. Permitiu a aceitação pacífica de estruturas ineficientes e corrompidas.

Sem movimento social, em direção a novos ideais e visão positiva de futuro. Sem atractores (lideranças) capazes de mobilizar e criar movimento em torno dos valores fundadores da democracia e do humanismo, a nova turbulência abre espaço para o surgimento inevitável de outro tipo de atractores. De qualquer modo, estes alimentam-se da necessidade de reduzir a imprevisibilidade, a intolerável angústia da incerteza e da falta de sentido, prometendo o impossível regresso ao conhecido, voltar a ser o que foi – o “Make America Great Again” de D. Trump.

O principal contributo da psicanálise para o mundo foi o de trazer um modelo explicativo para o lado oculto do funcionamento humano. Apontar-lhe um sentido. Apresentar um mapa, ainda que simplificado, das “Índias e das Américas” do inconsciente. Como o fez antes a Religião (embora baseando-se apenas na crença) e a Ciência procura fazer de forma especializada e cada vez mais complexa, o que por vezes dificulta a visão de conjunto.

Ao apresentar os seus modelos, a psicanálise contribuiu no passado para mudar o próprio mundo, acabando por transformar o seu objecto de estudo.

Se há desafio que se coloca novamente à psicanálise é o de encontrar o sentido, olhando o passado no “retrovisor”, como nos diz C. Matos (2016), mas acordando o “atractor” da esperança num mundo melhor, numa sociedade mais justa, mais livre, mas também mais responsável. Afinal, a minha liberdade não acaba onde começa a do outro. Isso é uma liberdade infantil, uma luta de liberdades. A minha liberdade termina onde começa o direito do outro.

Referências

Bertalanffy, L. (1977) Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis: Ed. Vozes

Matos, C. (2016) Nova Relação. Lisboa: Climepsi.

Gleick, J. (1989) Caos – A Construção de Uma Nova Ciência. Lisboa: Ed. Gradiva.

Gleick, J. (2011) Informação – Uma história, uma teoria, um dilúvio. Maia: Círculo de Leitores.

Resumo

O autor apresenta uma articulação dos principais conceitos da Teoria Geral dos Sistemas, em particular dos sistemas complexos, sua imprevisibilidade e capacidade de gerar organização. Propõe uma abordagem da vida, do funcionamento dos grupos e do indivíduo sob a matriz desses modelos, entrecruzando-os com uma forma psicanalítica de lhes dar sentido, procurando contribuir para a expansão do campo da psicanálise.

Title

Chaos, Movement and Creation

Abstract

The author presents an articulation of the main concepts of the General System Theory, in particular of complex systems, their unpredictability and capacity to generate organization. He proposes an approach to life, the functioning of groups and the individual under the matrix of these models, intersecting them with a psychoanalytic way of giving them meaning, seeking to contribute to the expansion of the field of psychoanalysis.

Key Words

Chaos • Turbulence • Fractal • Sense • Freedom.