Revista | Vol. 7, N. 1, Junho 2016

Sobre ombros de gigantes: o percurso e principais lições de psicoterapeutas de renome internacional

Introdução

Este texto serve de apresentação para um projecto recente que tive o prazer de começar em Abril de 2016, continuando até aos dias de hoje. Contei com a ajuda de três parceiros valiosos, que não queria deixar de mencionar: a Associação Nacional Estudantes Psicologia (ANEP), a Clínica ISPA – através do apoio incondicional do Dr. Daniel Sousa – e a Society for the Exploration of Psychotherapy Integration (SEPI).

O projecto consiste num conjunto de entrevistas feitas a psicoterapeutas e investigadores de psicoterapia de renome internacional. Apelidadas as “Psychotherapy Expert Talks”, estas conversas estão disponíveis gratuitamente na internet, através de um canal de youtube com o mesmo nome. O objectivo principal destas conversas foi o de conseguir traçar, com o profissional, a evolução das suas próprias ideias sobre o que é a psicoterapia. Explorámos os principais desafios clínicos e científicos com que se debateram, focando‑nos finalmente num conjunto de ideias que estes profissionais gostariam de ver mais disseminadas ou debatidas no meio da psicoterapia.

As boas e as más notícias em psicoterapia

Para quê entrevistar estas “celebridades” da psicoterapia? Por muito que tivesse um prazer imediato pela oportunidade de poder dialogar com o que, até aí, tinham apenas sido os meus “mentores distantes”, outra grande motivação teve que ver com o que hoje sabemos através da investigação em psicoterapia. As últimas décadas foram marcadas por um número crescente de estudos rigorosos sobre os resultados e mecanismos de mudança em psicoterapia. Não querendo dar aqui nenhuma seca teórica, resumo apenas algumas ideias‑chave daquilo que, passadas estas décadas, pensamos saber sobre a psicoterapia:

  • Regra geral, a psicoterapia é eficaz, e é‑o para um número muito considerável de pessoas. Nas palavras do investigador Michael J. Lambert (2013): “A pessoa em tratamento psicológico tem, em média, melhorias mais significativas que 80% da amostra não tratada”.
  • A psicoterapia é eficaz para um conjunto já alargado de perturbações psicológicas – como a depressão ou as perturbações de ansiedade –, independentemente da abordagem ou “escola” terapêutica utiliza (Wampold & Imel, 2015).
  • As intervenções psicológicas parecem ser igualmente eficazes quando comparadas a intervenções medicamentosas, com ganhos terapêuticos geralmente mais duradouros e, claro, sem os efeitos secundários que advém da medicação (de Maat et al., 2006; Cuijpers et al., 2013).

Com base nestes resultados, poderíamos dizer que, como profissionais, estamos num bom caminho. No entanto, a investigação mostra‑nos também algumas questões preocupantes, que podemos chamar as “más notícias” da psicoterapia:

  • Taxa de “dropout” ainda muito elevada: a meta‑análise mais recente, com base em 669 estudos (N = 83834) encontrou um “dropout” médio de 19,7% (Swift & Greenberg, 2012). Isto é, com base nestes resultados, parece que cerca de 1 em cada 5 dos nossos clientes abandona prematuramente o tratamento.
  • Psicoterapeutas sobrestimam a sua eficácia clínica: a investigação sugere que 25% dos terapeutas acreditam estar no percentil 90 de eficácia, comparando com os seus colegas, sendo que nenhum terapeuta se avaliou como abaixo da média (Walfish et al., 2012)! Por outras palavras, é muito pouco provável que um terapeuta pense ser menos eficaz que a maioria dos seus colegas – embora, estatisticamente, sabemos que alguém tem de o ser.
  • Os psicoterapeutas tendem a ser ineficazes na avaliação do estado da relação terapêutica e no reconhecer de deterioração clínica (Hatfield et al., 2010; Hartmann, 2015).
  • A percentagem elevada de efeitos adversos em psicoterapia: uma parte considerável dos nossos clientes terminam uma intervenção psicológica em pior estado do que quando a começaram. Mesmo em estudos com terapeutas altamente formados e supervisionados, entre 5% a 10% dos clientes pioram em terapia (Wampold & Imel, 2015). Este valor agrava‑se para os 10%‑20% de resultados adversos no caso de intervenções psicológicas em crianças (Warren et al., 2010).

Tendo em conta estas contribuições preocupantes da investigação, torna‑se claro que precisamos de continuar os nossos esforços de modo a melhor ajudar os nossos clientes.

Para todos nós, profissionais da saúde mental, há um conjunto de lugares‑comuns aos quais recorremos quando estamos “perdidos” e procuramos melhorar a nossa eficácia clínica. Um desses modos é, precisamente, ir a literatura científica – muito embora, ironicamente, a investigação nos diga que muitos psicoterapeutas tendem a não ler a investigação (Stewart & Chambless, 2007). Uma outra fonte de ajuda, possivelmente muito mais utilizada, é a procura de pares e mentores. Isto é, os psicoterapeutas tendem a procurar a ajuda de profissionais a quem atribuam um certo grau de autoridade ou confiança. Precisamente porque o processo terapêutico é isso mesmo – um processo, e por isso algo não estático, dificilmente manualizável e muito imprevisível –, os psicoterapeutas sempre sentiram uma grande necessidade de comunicação, debate e supervisão com outros colegas, beneficiando assim da sabedoria clínica alheia.

Foi devido a tudo isto que nasceu a ideia de entrevistar psicoterapeutas e investigadores de psicoterapia de renome internacional. Esperava‑se que estas conversas pudessem oferecer um conjunto de reflexões clínicas e pessoais, dando‑nos um vislumbre do modo como estes profissionais evoluíram ao longo do tempo, e como actualmente pensam e sentem a psicoterapia.

Psychotherapy Expert Talks

Foram entrevistados 37 psicoterapeutas e investigadores de psicoterapia, a grande maioria presidentes ou ex‑presidentes de sociedades de psicoterapia, como a divisão de psicoterapia da American Psychological Association ou a Society for Psychotherapy Research. Todos os entrevistados contribuíram de algum modo para a teoria, investigação e prática da psicoterapia – sendo estes contributos, em parte, o foco das nossas conversas.

Os profissionais entrevistados, até hoje, foram: Leslie Greenberg, Jeremy Safran, Nancy McWilliams, Marvin Goldfried, Paul Wachtel, Bruce Wampold, Michael J. Lambert, John C. Norcross, Jeffrey E. Young, Diana Fosha, David H. Barlow, Lorna Smith Benjamin, Robert Neimeyer, Louis Castonguay, Steven C. Hayes, Ernesto Spinelli, Scott D. Miller, Stanley Messer, Larry E. Beutler, George Stricker, Mick Cooper, Mick Power, Robert Leahy, Rhonda Goldman, Michael J. Constantino, James F. Boswell, Kristin Osborn, Bruce Ecker, Tony Rousmaniere, Patricia Coughlin, Windy Dryden, David Burns, Arthur Freeman, Jacqueline Persons, Tracey D. Eells, Barry E. Wolfe.

O percurso destes psicoterapeutas

Feitas as entrevistas, uma primeira ideia interessante que surge tem que ver com o percurso ou evolução intelectual dos profissionais em causa. A grande maioria destes parece subscrever uma evolução ideológica semelhante, marcada por três etapas ou fases distintas:

Certeza: os terapeutas começam por acreditar num conjunto de ideias sobre “o que é a psicoterapia” e “o que produz mudança em psicoterapia” – isto é, estão confiantes no que pensam ser os mecanismos de mudança em causa.

Caos: após este período inicial, os terapeutas tendem a passar por uma fase de desorganização ideológica. Devido a uma ou várias experiências clínicas ou de investigação significativas, os profissionais veem as suas crenças anteriores postas em causa, quebrando algumas certezas quanto ao processo psicoterapêutico.

Complexidade: finalmente, existe uma última fase a que chamei de complexidade, onde os profissionais tendem a flexibilizar e expandir a sua abordagem terapêutica, integrando teorias e práticas previamente vistas como inconciliáveis. Este período é também marcado por uma maior tolerância à incerteza, por parte dos terapeutas.

Um exemplo deste tipo de evolução é o de Marvin Goldfried. Este nova iorquino é um importante terapeuta e investigador cognitivo‑comportamental, que rapidamente se apercebeu que as suas intervenções necessitavam de um foco relacional e emocional mais explícito. Esta preocupação levou‑o a começar vários diálogos produtivos com colegas de outras abordagens terapêuticas, como a psicodinâmica e a humanista‑experiencial. No caso do Dr. Goldfried, a sua “fase de complexidade” levou à criação da Society for the Exploration of Psychotherapy Integration (SEPI), da qual é co‑fundador.

Que conselho gostaria de ter recebido no seu início de carreira em psicoterapia?

No final de cada entrevista, os profissionais foram desafiados a partilhar uma ideia que gostariam de ter tido mais presente desde o início das suas carreiras. Aqui ficam algumas respostas:

Paul Wachtel: “No geral, estar confortável com o desconforto. Penso que precisamos disso como psicoterapeutas, porque temos de dar espaço às experiências desconfortáveis dos nossos pacientes, mas também nós crescemos ao tolerar o nosso próprio desconforto.”

Leslie Greenberg: “Penso que seria a importância de praticar estar sintonizado com o meu próprio corpo. Isto significa estar sintonizado com as minhas próprias emoções – não propriamente com o significado das coisas, mas ser sensível ao que aparece ainda antes de ter palavras para o descrever.”

John Norcross: Tanto do que aprendi sobre psicoterapia era bifurcado ou para um método de intervenção ou para a relação terapêutica quando, no fundo, estes são inseparáveis. (…) Gostava que alguém me tivesse explicado que (…) não é só importante o que faço em terapia, mas também como o faço.”

Ernesto Spinelli: “Mais ainda do que “ouvir o coração”, saber ouvir o corpo. Ouvir o modo como o nosso corpo responde àquilo que nos é apresentado.”

Diana Fosha: “Acreditar na nossa espontaneidade. Entre tantas ideias e teorias diferentes, (…) é importante perceber que há algo de fundamental­mente organizador em seguir aquilo que é sentido como mais relevante.”

Steven C. Hayes: “Existem dois tipos de teorias: as teorias que foram provadas como erradas, e as teorias que ainda não foram provadas como erradas!”

Resumindo as respostas

Três categorias surgiram como temáticas recorrentes das entrevistas realizadas:

Flexibilidade e integração: na grande maioria dos casos, os profissionais associaram a maturidade psicoterapêutica e científica a uma maior abertura por ideias previamente descartadas como erradas ou pouco úteis.

Nas palavras do investigador Bruce Wampold: “Como terapeutas, supervisores e investigadores, nunca nos devemos convencer de que já sabemos o suficiente.”

Aceitação: este tema aparece recorrentemente não apenas na forma de aceitação pelo cliente, mas também pelo próprio terapeuta. Esta auto‑aceitação do profissional é vista como uma componente essencial e inevitável para o desenvolvimento de uma prática clínica e científica saudável e produtiva.

Nas palavras de Marvin Goldfried: “A psicoterapia é algo muito difícil de se fazer, (…) há muita tomada de decisão clínica que tem de ser feita no momento, ao longo da sessão. Temos de ter muita paciência connosco.”

Encontrar mentores: os entrevistados referem, de várias maneiras, a influência importante de profissionais mais experientes em quem confiavam. Estes “mentores” serviram muitas vezes de catalisadores, abrindo os entrevistados a novas ideias e desafiando‑os a evoluir como profissionais e como pessoas.

Nas palavras de Jeremy Safran: “Uma coisa que fiz que foi extremamente importante para mim foi: sempre que encontrava alguém que achava que tinha algo de importante para me ensinar, “colava‑me” a essa pessoa e aprendia o que podia.”

Conclusão

A última ideia exemplificada por Jeremy Safran – a de encontrar e aprender de mentores – é, no fundo, a razão que me levou a querer fazer estas entrevistas. Todos estes profissionais são terapeutas e investigadores que já me tinham “ajudado à distância”, através dos seus livros e artigos. Foi um prazer tremendo para mim poder começar, e até hoje continuar, um diálogo com eles. Quero também salientar a humildade e simpatia que todos estes profissionais demonstraram, respondendo prontamente e com entusiasmo ao meu convite. Ser um profissional “de topo” não precisa de significar ser “inacessível”.

Dito isto, deixo o convite aos curiosos para procurarem no youtube as nossas “Psychotherapy Expert Talks” (http://bit.ly/1SHa74I).

Referências bibliográficas

Cuijpers, P., Hollon, S. D., van Straten, A., Bockting, C., Berking, M., & Andersson, G. (2013). Does cognitive behaviour therapy have an enduring effect that is superior to keeping patients on continuation pharmacotherapy? A meta‑analysis. BMJ open, 3(4).

de Maat, S., Dekker, J., Schoevers, R., & De Jonghe, F. (2006). Relative efficacy of psychotherapy and pharmacotherapy in the treatment of depression: A meta‑analysis. Psychotherapy Research, 16(5), 566‑578.

Hartmann, A., Joos, A., Orlinsky, D. E., & Zeeck, A. (2015). Accuracy of therapist perceptions of patients’ alliance: Exploring the divergence. Psychotherapy Research, 25(4), 408‑419.

Hatfield, D., McCullough, L., Frantz, S. H., & Krieger, K. (2010). Do we know when our clients get worse? An investigation of therapists’ ability to detect negative client change. Clinical Psychology & Psychotherapy, 17(1), 25‑32.

Lambert, M. J. (2013). The efficacy and effectiveness of psychotherapy. In M. J. Lambert (Ed.), Bergin and Garfield’s handbook of psychotherapy and behavior change (6ª ed., pp. 169-218). John Wiley & Sons.

Stewart, R. E., & Chambless, D. L. (2007). Does psychotherapy research inform treatment decisions in private practice? Journal of clinical psychology, 63(3), 267‑282.

Swift, J. K., & Greenberg, R. P. (2012). Premature discontinuation in adult psychotherapy: A meta‑analysis. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 80(4), 547.

Walfish, S., McAlister, B., O’Donnell, P., & Lambert, M. J. (2012). An Investigation of Self‑Assessment Bias in Mental Health Providers. Psychological Reports, 110(2), 639‑644.

Wampold, B. E., & Imel, Z. E. (2015). The great psychotherapy debate: The evidence for what makes psychotherapy work. Routledge.

Warren, J. S., Nelson, P. L., Mondragon, S. A., Baldwin, S. A., & Burlingame, G. M. (2010). Youth psychotherapy change trajectories and outcomes in usual care: Community mental health versus managed care settings. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 78(2), 144.

Title 

Standing on the shoulders of giants: Professional development and main lessons from world‑renowned psychotherapists.

Abstract

For the purposes of this project, twenty‑two internationally renowned psychotherapy practitioners and researchers were interviewed. These interviews focused on the epistemological development of these professionals; their main contributions to the field of psychotherapy; and main lessons and insights they would like to see further disseminated in the field of psychotherapy. Through the narrative analysis of these interviews, it is possible to conclude that the majority of these professionals went through similar stages of epistemological development: first, a state of “certainty”, followed by “chaos” and, finally, arriving at a state of “complexity” or “integration”. The interviewees also proposed a number of common dimensions which they find fundamental for the efficacious practice of psychotherapy: a need for flexibility, both in the clinical and research setting; the importance of searching for and learning from good mentors; and an unconditional acceptance for the client and therapist himself.

Keywords

psychotherapy research • epistemological development • narrative analysis