A palavra “unheimlich” é um adjetivo substantivado com o prefixo negativo un‑ correspondente ao prefixo português negativo in‑ ou dis‑. Exprime algo que não existe visível ou captável, ou que, pela racionalidade e moral vigente, não devia existir. O termo significa a negação de heimlich – em segredo, o que também não pertence a uma cosmovisão racional. Deste modo parece que estamos em águas turvas, algo de nebuloso e não admitido. Enquanto o termo “estranho” costuma ser ligado a um objeto, considero que o termo alemão é ligado aos sentimentos da pessoa, sem objeto externo visível.
Freud recorre a um outro significado: heimelig – aconchegado e seguro na casa. O substantivo alemão Heim – corresponde, a meu ver, em português, ao lar em toda as suas tonalidades emocionais.
Na esteira de Freud, procuro as tonalidades do unheimlich nas minhas próprias sensações e na minha experiência linguística. O termo é nebuloso e misterioso em si próprio. Tal como em português, o estranho indica algo de angustiante, mas é uma angústia sem objeto. Unheimlich é um ambiente sentido, receado por uma pessoa, onde uma outra não sente nada. Mas a angústia do unheimlich implica, não verbalizável, uma ameaça mortal não dita. Sendo o perigo nebuloso, sem rosto ou fala, não há defesa e fuga; a ameaça velada do Unheimlich está em paralisar.
Delicada é também a dedução do termo: o prefixo un‑ indica, na linguagem hodierna, o contrário de heimlich – em segredo, misterioso. Freud vê unheimlich em oposição a heimlich, heimisch, vertraut, i.e., aconchegado, acostumado, o que nos dá confiança. Freud refere também a antiga forma heimelig, caseiro, no lar. Aqui a ligação com amor e sexualidade torna‑se mais clara: “Dando‑me o teu coração, fá‑lo em segredo”, ouve‑se numa cantiga popular. A sexualidade vive‑se escondida, na intimidade.
Quem começa a amar, torna‑se vulnerável!
O termo em alemão torna‑se visceral, exprimindo a sensação e o sentimento geral do Romantismo Alemão no início do século XIX, numa proliferação literária de Friedrich Schlegel, a Ludwig Tieck, Bettina von Arnim, Novalis, Hölderlin, Heinrich von Kleist, Schelling, Jean Paul, E.T. A Hoffmann, os irmãos Grimm, até Schopenhauer e Nietzsche. Nesta época, o Unheimlich levantou a sua “não‑voz” muito alto, o seu murmúrio indefinível, poderíamos mesmo dizer que o Inconsciente começa a ser do domínio público, numa literatura de fantasia, fracasso e de sonho (Jean Paul). Novos sujeitos surgem, crianças, mulheres, doentes, lesionados de guerra. Aliás, as mulheres da pequena burguesia foram a maioria dos leitores e as célebres lendas recolhidos pelos irmãos Grimm foram contados às crianças à noite.
Esta reviravolta cultural mudou tudo. O mundo intacto tinha começado a ruir. O acontecimento inicial foi a revolução francesa, recebida com entusiasmo pela juventude académica alemã pela prometida liberdade, severamente controlada nos múltiplos pequenos principados. Porém, no terror dos Jacobinos 1793‑94, o Rei e sua família foram condenados entre as cruéis mortes diárias pela guilhotina. As notícias chocaram os intelectuais alemães, marcando rutura catastrófica com os ideais de liberdade, fraternidade e a declaração dos direitos do homem de 1789. A seguir, nas guerras Napoleónicas, a partir de 1800, todos os principados alemães e os dois grandes reinos, Prússia e Áustria foram aniquilados. Duas enormes batalhas, Austerlitz (1805) e Jena (1806), arrasaram a dinastia de Habsburgo e Prússia. Foi o fim de 800 anos do “Sagrado Reino Romano da Nação Alemã”, impensável e inimaginável pela população. Com os reinos alemães subjugados, começava a queda da cosmovisão vigente: as divindades em Hölderlin e Jean Paul caíram, o chão da evidência automática da escala de valores, de direitos e deverescívicos foi tirado. Honestidade, trabalho, confiança na palavra dada, respeito e obediência nas hierarquias, da família, até no Estado foram desvalorizados. A clareza sobre o que será o Bom e o Mal, indiscutível ainda em Kant, foi abalada pelas guerras sucessivas durante 15 anos, guerras que entraram nas próprias cidades e nas casas. E depois, com a retirada do exército dito invencível de Napoleão, que saía da Rússia em debandada, passando milhares de quilómetros de toda a Alemanha, o comportamento cívico da população tornou‑se muitas vezes algo de impossível. Como tão bem o documenta a literatura romântica.
Numa tabela dá‑se uma visão esquemática da diferença do espírito entre a época clássica de Kant, Goethe e Schiller e o espírito romântico.
Nesta época romântica, numa constelação histórico‑social de insegurança, de guerra e morte massiva, de uma autoconfiança nacional ferida, o Unheimlich, o incompreensível, entra na casa que antes era segura, ordenada e onde cada um tinha o seu papel. Porta‑voz do estranho foram não raramente as mulheres, como no conto de E. T. A. Hoffmann. Aliás, as mulheres foram leitoras e até escritoras de relevo, mencionando Bettina von Arnim, Karolina Schlegel e Rahel von Varnhagen. Na literatura romântica, em vez da dominância da razão, as emoções, as angústias, os falhanços exprimirem‑se livremente. Na filosofia, a pureza racional de Kant é alargada pela inclusão do elemento subjetivo em Fichte, pelo raciocínio especulativo em Schelling e pelo andamento da razão (Geist) pela história em Hegel.
Quem lê Kleist, Novalis, Hoffmann e as lendas populares recolhidas pelos irmãos Grimm já pode ver o surgimento do Inconsciente em emoções, sonhos, alucinações, termo que tem aí a sua origem. Na condição de um povo politicamente ocupado e dependente, sem Reino e poder, a língua alemã libertou‑se da Corte e tornou‑se o elo de identidade como língua popular.
Sigmund Freud, procurando elementos psicanalíticos na literatura e arte, encontra na literatura romântica um tesouro. Na análise do termo Unheimlich foi ao encontro do conto de E.T.A. Hoffmann: O homem da areia – Der Sandmann –, nome de uma cantiga infantil que ainda hoje é popular. Por exemplo, na minha infância esta canção integrava um programa diário na TV quase obrigatório nas famílias para assinalar às crianças a hora de dormir. A palavra Sandmann é estranha: contem uma dupla vogal “a” curta e fechada, assim entrando suavemente no ouvido das crianças, mas oscilando com um espírito de obedecer.
No conto de Hoffmann, no entanto, esta personagem do ritual noturno torna‑se assustadora. Aí o Sandmann deita areia nos olhos das crianças “assim que sangram e saltam fora, ele mete‑os num saco e leva‑os à “meia lua” para que as crias dele os comam.” Assim conta a avó em segredo (heimlich): Dormir em vez de ver!
Hoffmann amplia a narrativa às gerações anteriores: a infância era uma idade de mandamentos e proibições. A avó, em segredo (heimlich), cria uma ameaça perversa, bastante típica na educação da época. Os olhos, sendo a luz do corpo, não podem ver demais; e quando a criança se torna curiosa, os olhos são ameaçados. Tornam‑se elemento chave da história. Em Freud foram o substituto do órgão sexual masculino.
A minha proposta de leitura vai numa direção diferente: O ver, os olhos, sendo sinal da vida, entram em perigo para quem transgride. Assim ver demais, com óculos ou telescópio (óculos – olhos, oken em dialeto alemão) enlouquece. Ou delírio ou insight, uma cognição nas profundezas da alma.
Ainda na infância, mas uns anos mais tarde, o pai de Natanael, o protagonista da história, morre numa explosão estrondosa, na presença do velho e feio farmacêutico Coppelius, a incarnação do abominável homem da areia. Natanael observa escondido (heimlich) no armário a cena. É descoberto e arrastado por Coppelius, para lhe tirar os olhos. Mas foi salvo pelo pai, que implora: “Aí o meu pai levanta os braços e grita: Mestre, Mestre, deixa ao meu Natanael os olhos!”... e morre de repente. Após esta cena, Natanael fica meses sem consciência.
É uma passagem estranhíssima: O pai fraco implora pelo filho à figura maligna e poderosa do Coppelius. Freud associa os olhos ao pénis, órgão forte e vital. Seja como for, há uma clivagem óbvia entre o pai bom, mas frágil e submisso e o poderoso mágico “mau”. Fica a herança de um pai morto pelo filho na idade infantil.
Na idade estudantil, Natanael é ambivalente e, no fundo incapaz da assegurar a amada Clara, uma mulher jovem, caracterizada, honrando o seu nome, como personagem iluminada. Numa troca de cartas, ela desfaz os relatos angustiados de Natanael, explicando a morte do pai racionalmente pela explosão química. Explica causas, mas não chega ao significado na vida do Natanael.
Cito da dita carta: “Agora ficarás aborrecido com a tua Clara. Dirás: ‘Neste frio coração não penetra um raio do misterioso que frequentemente me abraça com braços invisíveis, só olha pela colorida superfície do mundo e alegra‑se como a criança infantil sobre a fruta brilhante como ouro, enquanto no interior está escondido o veneno.”
Esta parte reflete bem o sentimento romântico da vida, estranho e misterioso (heimlich‑unheimlich) na qual o autor emerge.
O amor de Natanael a Clara fica constrangido pela angústia de morte.
“Ele via‑se com a Clara no dia do casamento, ligados por um amor fiel, mas de vez em quando sentiu como se um punho preto prendesse as suas vidas e tirasse com violência a alegria que lhe tinha surgido. Afinal, já no altar, aparece o horrível Coppelius e toca nos olhos lindos da Clara; estes saltam ao peito de Natanael como centelhas sangrentas a arder e queimar….Natanael olha nos olhos da Clara, mas é a morte que pelos olhos gentis da Clara aparece.”
O amor destruído pelo estranho da morte!
Na incapacidade de amar Clara, a rapariga racional e idealizada, iluminada em espírito e sentimento, Natanael desliza para a misteriosa Olímpia. O texto torna‑se fantástico e irónico. Hoffmann alarga‑se na misteriosa aproximação através da janela velada e a seguir dos longos serões íntimos, mas é só Natanael que fala e lê as suas poesias místicas que Clara não suportava bem. Olímpia não responde a não ser com um sussurrar, mas Natanael fica feliz, ai, o que são palavras! Cai a centelha de amor, sem vertente corporal. Dançam, mas a pele de Olímpia é fria, sendo “ela” uma máquina. O tal “amor” fantasiado, mas verdadeiro de Natanael, é destruído pela destruição do boneco, quando os dois construtores da complexa máquina brigam com muito ruído por ela. Quem são eles? Dois estranhos‑estrangeiros – os Italianos Spalanzini que durante anos criaram Olímpia e Coppola/Coppelius que colocou os olhos.
A estranheza (heimlich‑unheimlich) da situação é descrita com uma forte ironia, os leitores, no entanto, reconhecendo‑se a si próprios nos sentimentos até inconscientes da narrativa, ficaram fascinados.
Este amor, tal como o amor ao pai, acaba outra vez num momento catastrófico: a destruição da Olímpia mecânica, quando, em vez dos olhos, aparecem dois buracos indicando a morte… A casa ardeu, e na boa sociedade as namoradas foram solicitadas a cantar e falar melodiosamente, mostrando “que o seu falar em verdade pressupõe um pensar e sentir.”
O nosso herói Natanael entrou em fúria delirante, e subjugado pela força acaba no manicómio.
A última fase termina com a morte violenta de Natanael. No momento em que Clara e Natanael estão para casar, Clara leva Natanael a subir à torre da cidade (qual é a torre que a namorada desejava?). Quando em cima da torre, Clara lhe pergunta: Ai, quem será este estranho entre a multidão?, Natanael vê o temido Coppelius e entra num surto de ódio delirante e quer atirar Clara da torre. Esta, no entanto, é salva pela intervenção do irmão numa luta violenta. Afinal, Natanael, numa ira delirante lança‑se a si próprio da torre, enquanto o Coppola/Coppelius desapareceu sem rasto…
Alguns anos mais tarde encontramos Clara com um homem simpático e dois filhos numa tranquila felicidade caseira, o que o Natanael, internamente rasgado, nunca lhe poderia dar. Assim termina o conto do estranho entre amor e morte que foi um best‑seller até hoje. Mostrou‑nos personagens que nos mostram a nós mesmos, com os nossos lados escondidos e as nossas angústias reprimidas.
Menciono que o pai de E.T.A. Hoffmann morreu quando ele tinha 5 anos. Hoffmann estudou direito e subiu ao serviço da Prússia, mas à noite passeava numa vida dupla nas tascas e ruas de Berlim, assustando assustado? com concidadãos aburguesados. Foi a genialidade de Freud que, na procura das vicissitudes do inconsciente, lança, como um farol, luz nesta época conturbada.
Termino com uma célebre poesia romântica:
Quando nem números nem figuras
São a chave das criaturas,
Quando os que cantam e beijam,
Mais do que os eminentes cultos sabem,
Quando o mundo transita à vida livre
Regressando ao mundo outra vez,
Quando luz e sombra outra vez
Se acasalam para uma clareza genuína,
Quando em lendas e histórias
Se conhece a verdadeira história,
Então de um verbo arcano
Foge todo o falso Ser.
Novalis
Qual podia ser o verbo arcano? Que tira do unheimlich a sua angústia e permite o heimlich sem medo ou peso na consciência, ou seja o estranho, assustador e destrutivo cede ao amor íntimo e protegido. Não se trata aqui da nossa profissão de psicoterapeutas?
Freud, S. (1919). Das Unheimliche. trad. Portuguesa pelo autor, 2015, divulgado pela AP.
Hoffmann, E. T. A. (1982). Der Sandmann. Nachtstücke, Frankfurt, ed. Insel (acessível, p. ex. em Francês).
Novalis (1978). vol. I , p. 406. Ed. por R. Samuel, Wien, München, ed. Carl Hanser.
Safranski, R. (2010). Romantismo – uma questão alemã. Lisboa: Estação liberdade. Original em alemão de 2007
The uncanny between love and death. A psychoanalytical analysis
The term uncanny is analyzed in its meaning in German and inserted in the spirit of Romanticism. In a second part, the tale of E. T. A. Hoffmann, the “The Sand‑Man” is seen and analyzed on the analytical track.
Uncanny • Psychoanalysis • Romanticism • Hoffmann.