Revista | Vol. 7, N. 1, Junho 2016

O estranho caso do “menino de outro”: a transgeracionalidade e a perversão.

O menino de ouro…

“A angústia é a mãe da invenção no teatro psíquico”

Joyce McDougall, 1991

 

O Menino de Ouro, “máquina sutil que mimetiza a personalidade humana” (Bittencourt, 1981, p. 26), nasce da transmissão psíquica transgeracional, “sem possibilidade de metabolização e integração” (Gomes & Zanetti, 2009, p. 95) e reinventa-se na perversão, numa condição alienada e alienante.

Esta perversão, enquanto quadro clínico atípico, e com base no que não é – “não é psicótico, não é neurótico, não é normal” (Bittencourt, 1981, p. 24) –, é difícil de definir. Daí a inquietante estranheza destes casos na clínica psicanalítica.

Há três momentos da conceção perversa na obra de Freud: a neurose como negativo da perversão, o complexo de Édipo e as suas equações simbólicas, numa estranha “forma erótica do ódio” (Ferraz, 2010, p. 75) e, por último, a recusa da castração e a divisão do ego, aproximando a perversão da psicose, enquanto “loucura potencial” tendo na base “uma perigosa depressão, oculta no triunfo sobre a castração” (Ferraz, 2010, p. 14).

Este duplo – neurótico e psicótico, esta repetição do diferente, cujo retorno do recalcado é antes o fracasso do forcluído, e a estranha familiaridade dos sintomas, egossintónicos mas totalmente ilusórios, definem o caso do Menino de Ouro, onde a “perturbação da trama edípica (…)” favorece a confusão entre os papéis e contornos sexuais “desaparecendo as diferenças, limites e normas” por força de uma “função paterna (…) enfraquecida”, cujos “impulsos incestuosos não encontram delimitação clara” (Ferraz, 2010, p. 44).

“Semelhante à inquietante estranheza que emana dos complexos infantis recalcados” encontramos “esta qualidade do atemorizante que está vinculada às coisas conhecidas há muito tempo e que sempre foram familiares… alguma coisa que deveria ter permanecido escondida e que reapareceu” (Leclaine, 1977, p. 104), numa “ambígua sensação composta por sentimentos de familiaridade, estranheza e horror” (Brepohl, 2012, p. 16).

Esta “ambígua sensação” está também presente no par transferência-contratransferência, na clínica com estes pacientes, que, ao gerar ummal-estar, provoca também um fascínio que leva à aproximação.

E daí o paradoxo na clínica das perversões: “O movimento constante de repulsa e atração, a inquietação que aí se produz, parece indicar o estabelecimento de uma relação de estranheza, como se percebêssemos, manifestar-se ali uma subjetividade que apresenta certa semelhança com aquilo que é mais familiar ao psicanalista e ao saber psicanalítico – vale ressaltar, o campo das neuroses e da vida ordinária – mas que guarda, ao mesmo tempo, um caráter radicalmente estranho a eles.” (Brepohl, 2012, p. 10).

 

A perversão na clínica

 

“Porque o puseram sobre a suntuosa lareira? Caiu sobre a laje, defronte da chaminé. Felizmente, era somente o menino da Virgem, uma admirável estátua romana. Representava o menino de pé, ereto diante dela; ele se quebrou, deixando pender a cabeça por sobre o ombro esquerdo, tendo os pés cortados, o tronco espedaçado, coxas e pernas intactas até cima do sexo. Poder-se-á reconstituí-lo? Não foi nada: o tronco não se quebrou, está mesmo quase inteiro, todo inteiro, tenho a certeza. Mas ele não se move.”

Serge Leclaine, 1977

 

O estranho caso do Menino de Ouro conta a história de um menino, já adulto, de 23 anos, de nome Ângelo. Comportava-se como um bebé, queria ser um eterno adolescente, mas sentia-se como um velho. O tempo e as gerações confundiam-se e, embora nomeasse tudo por datas, como obrigando-se a ter uma cronologia, a sua vida estava estagnada na infância, as responsabilidades de adulto e a sexualidade causavam-lhe fobias, e sentia-se a envelhecer precocemente. Este “envelhecimento” causava-lhe a certeza de uma morte próxima.

Desencorajado no desejo de tornar-se grande, paralisa num momento dotempo, onde a recusa da castração é, também, a recusa do tempo, nãopodendo existir diferenças sexuais nem geracionais, como prova de que a“castração não existe” (Ferraz, 2005a, p. 22).

O seu “envelhecimento precoce” e sentido de “morte iminente” são vividos como “brechas na rocha da personalidade perversa”, pelo contraste entre o sentimento de omnipotência e o sentido da realidade, vivenciando como ameaças o “envelhecimento do corpo, a doença física e o fantasma da mortalidade” (Menezes, 2014, p. 20).

Estas “brechas” no seu funcionamento psíquico são o que o denunciam na sua estranheza, já que, fora disso, o Ângelo não tinha nada com o que se preocupar. No entanto, tudo nele era bizarro e distónico: a maneira de se vestir, o tom da sua voz, a forma de andar.

O fracasso da “montagem perversa” surge exactamente pelo aparecimento à superfície dos conteúdos que procura ocultar. Por um lado, apresenta-se como um bebé sem responsabilidades, que “ao depender dos outros se protege tanto das ameaças do superego quanto das demandas do id” (Shine, 2000, pp. 32-33), por outro, assume as vestes de um “profeta”, discursando com superioridade àqueles que considera como seus súbditos – em forma de “palestras”, como lhes chama, enviando mensagens de justiça, ordem e bondade.

Por detrás deste discurso altivo e arrogante, o Ângelo apresenta como sintoma “incontinência urinária e fecal”. Este sintoma obrigava-o a “ir verter águas” sempre que assim lhe convinha, interrompendo qualquer conversa desagradável ou impondo a sua presença pela ausência num “já volto...”, controlando o ambiente e os outros a seu bel-prazer. Se o “sintoma” o ajudava a controlar os outros e fazer-se esperar, por outro lado remetia para a ausência de controlo dos esfíncteres, fixado a uma fase anal, pré-genital, onde a retenção/expulsão dos excrementos corporais davam conta do controlo/agressão na relação com o outro. Para Janine Chasseguet-Smirgel (1991, p. 184) “o mundo do perverso confunde-se, em um certo nível, com a regressão sádico-anal”.

Nesta associação ao sintoma, a retenção leva-o ao controlo, por forçade defesas obsessivas, a expulsão – acting out – ao esvaziamento psíquico.Este vazio emocional é vivido em clivagem com a razão, acarretandoconsigo “um crónico sentimento de vazio, tédio, asco e falsidade”(Zimerman, 2004, p. 271).

A dissociação criada entre afetividade e cognição é o que permite suportar a realidade, pelo domínio da fantasia (Menezes, 2014, p. 24). Por um lado, protege-se “contra um (…) sentimento de morte libidinal interior” ao mesmo tempo que este vazio o remete para a “perda de um sentimento coesivo de identidade egóica” (McDougall, 1997, p. 195).

O “faz-de-conta”, substituindo o pensamento por actings excessivos,funciona como “uma das principais formas de escoamento (…) porvias erógenas [...] a serviço de uma pré-genitalidade”, observando-se deforma clara a “articulação da estrutura edípica com a estrutura narcísica”(Zimerman, 2004, p. 271).

No contato com o Ângelo, esta articulação entre as questões edípicas e narcísicas revela-se, logo num primeiro momento, pelo seu discurso e aparência. No discurso emergia uma “intelectualidade robótica, moralidade fundamentalista e excitação megalomaníaca triunfante” (Marques, 2007, p. 153), onde as palavras davam conta de um “assassinato de ideias” que se degradava “facilmente em jargão; frases ocas e (…) esvaziadas pela repetição” (Quinet, 2009a, p. 64). “Dissecava” à volta da riqueza versus pobreza, centro de toda a sua zanga e fúria, associando a Suécia e o Japão ao “desperdício e maldade”, e a Serra Leoa ou a Índia “à pureza e bondade”, vítimas inocentes do desperdício dos países ricos. As palavras que utilizava eram regidas por um critério obsessivo e restrito, evitando conotações agressivas ou sexuais. Estas limitações semânticas eram impostas em todos os contextos e com qualquer interlocutor, muito embora fossem mais insistentes perante aqueles a quem chamava de “empregados” ou “leitores” – ou seja, a sua família.

Num trecho de um conto de Clarice Lispector “Os desastres de Sofia”, lê-se: “As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito” (1992, p. 6). É assim que se pode entender o seu discurso, como o cuidado/domínio que precisa de ter para só dizer o que quer que o outro ouça, medindo as palavras e a si mesmo, para não se deixar ultrapassar, tentar nem modificar pelo que diz. “Uma luta constante entre a potência colonizadora das palavras e a revolta de tudo aquilo que é recusado” (Leclaine, 1977, p. 68).

Na aparência física e corporal, tudo era desarmónico e desconexo. Vestia durante todo o ano várias camisolas, independentemente da temperatura do dia, o que o fazia parecer obeso. Porque a roupa quase nunca condizia com a temperatura ambiente, suava muito, e o seu cabelo ficava a agarrado à cabeça, molhado e desgrenhado, o que lhe dava uma imagem muito pouco agradável. Da mesma forma que o sintoma de incontinência fecal assume uma função de repulsa na relação com outro, revestida de traços agressivos e hostis, também o seu aspeto corroborava esse desconforto e repugnância.

Neste primeiro contato, a relação com o Ângelo é desconcertante: o discurso é ajustado, mas as interpretações são delirantes. A contenção é intencional, mas o exagero e a encenação estão sempre presentes. As ideias são lógicas e o pensamento informado, mas a mensagem é desumana e emocionalmente fria. A relação é sedutora, mas a hostilidade e o desdém são constantes. A agressividade é passiva e apenas latente, mas em todo o seu discurso emerge o desejo de passar ao ato.

O seu ódio não é neurótico e a sua contenção não é psicótica, mas ambos se manifestam com igual intensidade.

Este estado entre a neurose e a psicose, que não é nem um nem outro, mas se assemelha a ambos em simultâneo, revelava, na relação com ele, a inquietante estranheza “de um querer nada saber sobre a verdade” pela “denegação (Verneinung) e forclusão (Verwerfung)” (Quinet, 2009b, p. 31) do Outro da relação. Um encontro de um estranho sem “acesso a um senso de existência [...]” que não promove “um encontro de duas mentes, mas (…) um arranjo, uma articulação de fragmentos aglomerados para sustentar fachadas” (Marques, 2007, p. 160).

O seu percurso pela saúde mental inicia-se aos 10 anos de idade, com a entrada num colégio privado onde a sua mãe trabalhava como auxiliar. Não se conseguiu integrar e, segundo ele, foi “discriminado pelos outros e humilhado” por ser pobre num ambiente de meninos ricos. Esta exclusão do gozo dos Outros causava-lhe sentimentos de inveja profunda, acabando por minar o seu pensamento, sendo invadido por um desejo de vingança: “Não é que eu deseje pegar numa faca e matar os ricos todos”.

Entre os 10 e os 14 anos, a escola descreve-o como desadequado, exibicionista, teatral e afeminado. Tinha uma memória acima da média e sabia, na altura, todas as moradas e números de telefone dos colegas e professores, o que assustava a maioria das pessoas. Menos aos pais, que o consideravam um menino-prodígio.

Os pais falam com orgulho do início da sua adolescência, onde, movido por uma grande euforia, revelava uma “necessidade em conhecer tudo: foi a todas as freguesias de Lisboa, investigou todos os eléctricos de Portugal, fazia parte do clube dos amigos dos Caminhos-de-ferro, enviou cartas para todos os presidentes da Junta”. Os pais incentivavam-no, elogiando e reforçando este lado de “menino-prodígio” ou “sobredotado”, claramente diferente das outras crianças da sua idade.

Para a mãe, ele era um “menino de ouro”, o “seu menino”. Para o pai, irónica e sarcasticamente, ele era o “filho da Virgem Maria”, “o menino Jesus na manjedoura”, o seu “rival”.

Com a “puberdade é que ele não soube dar a volta”, diz o pai. Uma vez é assaltado na rua e começa a partir daí a reagir com “excessivo medo”, controlando a raiva “com receio de matar o outro”. E é aqui que, para os pais, começa a surgir algo estranho.

“O que deveria permanecer secreto e oculto veio à luz”, como nos diz Freud (1919), e as manifestações perversas começam a sair da sombra e assumir forma.

“As negações podem ser eficientes, mas a engrenagem perversa pode começar a falhar e, então, o sofrimento psíquico começa a vir à tona, muitas vezes portando o colorido trágico das angústias psicóticas e a ameaça de um desmoronamento dos limites identitários. (Ferraz, 2010, p. 124).

Aos 20 anos tem um ataque de pânico, que ele chama de “crise cardiovascular”, na sequência de uma discussão com o pai, ficando, segundo ele, 4 dias em estado de ansiedade aguda. Só nesta altura aceita, pela primeira vez, uma intervenção psicoterapêutica. No entanto, vai “saltando” de apoio em apoio, não permanecendo em psicoterapia por mais de 6 meses.

Com as prescrições farmacológicas faz o mesmo: aceita tomar anti-depressivos,

mas anti-psicóticos rejeita, porque, como diz, “não é louco”, abandonando qualquer tipo de medicação ao final de pouco tempo.

Em 3 anos iniciou por 6 vezes um acompanhamento psicoterapêutico, interrompendo-os a todos para então voltar a reiniciar noutro sítio, repetindo a sua apresentação na espera constante de aprovação e elogio. Ao mesmo tempo que negava qualquer tipo ajuda psicoterapêutica, parecia depender dela, fazendo autênticas excursões aos centros de saúde mental e urgências hospitalares para ser o alvo do cuidado e interesse do outro.

Uma espécie de “retorno do forcluído” (Quinet, 2009b, p. 47), onde a denegação do lado de dentro retorna no lado de fora, ou seja, na realidade. O excluído – o outro – está incluído do lado de fora, repetindo na realidade esta busca constante para depois a voltar a excluir. “As incursões (…) nos laços sociais, às vezes são excursões (…) circuitos por entre os laços sem entrar neles (Quinet, 2009b, p. 53).

Aos 23 anos, tudo permanece igual e tudo se repete.

A viver sozinho desde os 22 anos, revela uma total falta de autonomia. Ainda no ensino secundário, vai à escola apenas “quando lhe dá jeito”, porque precisa de dormir “14 horas por dia” e as aulas são muitas vezes de manhã cedo. Não faz nenhuma refeição em casa porque tem medo de incêndios, não toma banho sozinho com medo de uma explosão. Não come com garfo e faca porque são instrumentos perigosos – a “faca pode matar” – e precisa de se limpar depois do banho com 11 toalhas, porque o secador também é um instrumento perigoso e eventualmente letal. Deita fora casacos e camisolas quando estão transpirados, porque não utiliza a máquina de lavar e, se a mãe não lhe levar comida, só come bolachas, pão e água, porque defende uma existência “frugal e parca”.

Também a sexualidade é negada, não se lembrando, segundo diz, do seu “sistema reprodutor/sexualidade/genitalidade”, impondo-se uma abstinência por sentir-se “melhor assim que mal acompanhado”. Dorme vestido porque tem “receio do que as mãos dele podem fazer”. Nega qualquer tipo de prazer, na comida e no sexo, assente no que chama “regime punitivo”, enaltecendo o ascetismo como sinónimo de castidade e pureza, associando a modéstia e austeridade a uma “quantidade proibitiva” em oposição à “abundância, diversidade e variedade”, que atribui aos ricos, e por isso, “à maldade, ao desperdício e à arrogância”.

Num movimento de cisão, o lado bom alimenta o narcisismo elevando-o à condição megalómana, o lado mau, expulso e projetado no outro, ameaça-o de morte – física e/ou psicologicamente – conduzindo-o à condição paranóica (Quinet, 2009b). Esta “hipertrofia e hiperestesia” (Quinet, 2009b, p. 108) egóica resulta numa impossibilidade de se pôr em causa, enaltecendo-se narcisicamente e enfraquecendo o outro para se poder sentir forte.

Por um lado, no Imaginário, na relação do eu com o seu semelhante – “existe uma fixação à imagem do outro” – o rico – “com congelamento do sentido e a enfatuação do Eu “(Quinet, 2009b, p. 59) – Os pobres são bons e os ricos são maus. Ele, por ser pobre, é superior àqueles que inveja. Por outro lado, no Real, “(…) opera uma concentração no gozo no Outro” (Quinet, 2009b, p. 60), onde o rico, por gozar de abundância, o humilha pela escassez. No Simbólico, na relação do sujeito com a linguagem – “(…) o sujeito (…) retido por (…) um significante ideal “(Quinet, 2009b, p. 60) – funciona em equação simbólica, rotulando a riqueza de “maldade e preguiça” e colocando fora, no outro, a sua raiva e impotência (inércia) face ao ideal de riqueza que ambiciona alcançar. Este simbólico fica no eixo do imaginário, num retorno invertido do estádio de espelho, teorizado por Lacan, “sem capacidade de ratificação simbólica (…)”, onde “o outro seria excluído, não reconhecido e a sua existência só seria indicada por alusão” (Brepohl, 2012, p. 72.). Ou seja, a noção de Lacan (1957-58/ 1998) da forclusão do Nome-do-Pai – representante simbólico da ordem fálica – enquanto inscrição do Outro no lugar da Lei que rege a linguagem (Brepohl, 2012).

Tudo é interpretado a partir dele. Ele é o eixo de todos os significantes, quer a favor de si – megalomania – quer contra – perseguição. Ele não se pode diferenciar do seu significante e, por isso, as interpretações que faz dão conta de uma “loucura raciocinante” (Quinet, 2009b, p. 106).

O início da psicoterapia é marcado pelo seu desejo de se apresentar, não através da sua história, muito menos pelo seu sofrimento, mas pelo escrutínio do seu diagnóstico clínico. Não fala de si, mas de um “suposto saber” sobre si, colocando-se no lugar do terapeuta e com isso anulando-o e sobrepondo-se a ele, através de uma superioridade que quer fazer notar. Chama de “palestras” ao seu discurso e os encontros analíticos reduzem-se para ele à transmissão do seu saber, colocando o terapeuta como aprendiz.

Na sua apresentação, semelhante ao significado de “escrutínio” –cortar em pedaços –, ele desmonta-se por partes, nos diversos sistemas biológicos – dividindo-se da cabeça aos pés. O título que dá à “palestra” é: “Sem pés, não pode haver cabeça” remetendo para o estar-doente, no corpo e na alma. O seu discurso, ainda que sequencial e lógico, é, tal como o título sugere, “sem pés nem cabeça”. No lado físico enumera o corpo dividido por partes: Os pés estão exaustos, as pernas pesadas, o sistema urinário incontinente, o sistema respiratório alérgico, o cardiovascular em morte iminente e a cabeça envelhecida (miopia, problemas dentários e cabelo grisalho). O sistema reprodutor não existe pela abstinência imposta. No lado emocional divide as neuroses das psicoses. Na neurose inclui-se pelos “ataques de pânico, depressão e miastenia”. Na psicose exclui-se pela “maldade, vingança e sadismo (fazer festas às custas da tragédia dos outros)”.

A doença física, numa interpretação forçada e delirante, surge como escape ao medo da “loucura”, que associa à maldade e à psicopatia. E continua em associação: “Na Índia todos são amigos, na Suécia só fazem Guerras. Hitler era um psicopata, Estaline era um Herói”.

Algumas sessões mais tarde, ao retomar a associação entre doença mental e maldade, diz: “A minha tristeza é maior que a própria tristeza… não sou o diabo, mas sou louco… a psicopatia é o oposto de mim próprio porque a psicopatia é o diabo (…) ser introvertido é uma defesa para não ser contaminado/poluído pela sociedade e assim não imitar os outros como Anders Breivik, o Serial Killer norueguês (…). Sou um especialista em sociologia pela vivência de exclusão social que vivi (referindo-se ao colégio dos meninos ricos onde diz ter sido humilhado), mas não um especialista nas relações humanas (…). A maldade é ensinada… eu até disse isso a uma outra psicóloga e ela respondeu-me que eu pensava igual a um grande filósofo que agora não me recordo o nome… Freud? Não, esse era psicanalista”. Depois diz em relação aos outros “nem todas as pessoas são humanas, há algumas que não possuem por acaso como característica o serem insensíveis e indiferentes”.

Neste palco que é a psicoterapia – ser visto e ouvido, no desejo de ser aplaudido – começa a surgir a necessidade de fazer do terapeuta mais um seu “leitor”, como se refere ao seu irmão e cunhada, a quem vê como repositórios dos seus pensamentos, enviando-lhes emails como “base de dados de si próprio”. Então, começa a enviar emails em “massa” entre as sessões, para se manter “em cena” – no pensamento do outro.

Por escrito a bizarria aumenta, assim como a agressividade do seu discurso. O discurso escrito parece ser muito mais impulsivo do que o oral, onde presencialmente, mesmo não ouvindo o outro e se sobrepondo constantemente a ele, mantém uma postura contida, medindo as palavras para não ser traído por elas. Por escrito não, o texto surge em forma de catarse, um “vómito” agressivo sobre o qual ele, depois de evacuar, não quer mais pensar: “imitar-lhes? Fazer igual a ti? (a esses indivíduos?) a todos os quais eu odeio, relato-lhes o meu testemunho (…) deixaste-me e puseste-me triste, assustaste-me, fiquei desolado, inconsolável, de rastos (…) mas não sou vingativo, não sou fraco, mas não perdoo, não sou forte, sou melhor, resisto, recuso, sou SUPERIOR E MELHOR, IGNORO, ESQUEÇO E DESPREZO.”

Entre muitos outros emails iguais a este, lê-se a zanga, a raiva, o desprezo pelos outros – umas vezes dirigido à psicoterapeuta, outras aos ricos –, a megalomania e, ao mesmo tempo, a fragilidade do seu sistema psíquico, sempre em contradição, com denegações e projeções desprovidas de sentido.

O movimento de evacuação – acting out – destes conteúdos arcaicos vai oscilando com defesas obsessivas, enviando emails com pesquisas exaustivas de imagens de casas pobres versus ricas, listando os bairros e moradas de uns e outros, separando-os em bons e maus, numa tentativa de sistematizar as desigualdades que tanto o frustram e traumatizam. No entanto, rapidamente estes levantamentos obsessivos lhe geram ira e passa a acrescentar aos emails, textos de fundamentalistas da extrema-esquerda, apropriando-se deles como sendo seus, para dar ênfase à desigualdade e descriminação de que se sente vítima: “Deus criou o mundo, antes de suicidar disse assim; aos pobres dou-lhes cabeça, coração, consciência e amor para todos, aos ricos doravante apelidados de “classe média alta” dou-lhes mãos para disparar e esfaquear e pés para chutar”.

A sua raiva parece estar apenas contida pelas defesas obsessivas (como o controle do vocabulário e manipulação do outro) e fóbicas, num funcionamento esquizo-paronoide, regido por uma identificação projectiva onde tudo era visto por ele como eventualmente letal. No entanto, estes mecanismos de defesa vão-se mostrando cada vez mais frágeis e falíveis.

Começa-se, então, a trabalhar a possibilidade de fazer sessões familiares, intercaladas com as individuais, onde é assegurada confidencialidade dos conteúdos falados em psicoterapia individual, mas reforçada a importância de envolver a família.

As vantagens neste tipo de intervenção eram evidentes; por um lado, debelava a sua fraca capacidade reflexiva e insight, resistente e até então impermeável à psicoterapia individual. Por outro lado, dissipava os efeitos contratransferenciais, assim como, em caso de aliança positiva com a família, reduzia a possibilidade da rutura terapêutica. Por outro lado ainda, a possibilidade de ter um elemento saudável na família que legendasse os seus comportamentos e atuasse de forma mais adequada perante eles, funcionava como esperança de algum tipo de mudança intra e inter-psíquica.

Ele aceita a intervenção familiar e fica estipulado sessões semanais individuais e sessões quinzenais com a família.

 

 A transgeracionalidade e o “louco instituído”

 

“Ele é o veículo mortal de uma substância (possivelmente) imortal – como o herdeiro de uma propriedade inalienável, que é o único dono temporário de um patrimônio que lhe sobrevive”

(Freud, 1974 [1914], p. 94-95).

 

Os conceitos de vínculo e de transmissão da vida psíquica entre gerações são fundamentais para compreender a dinâmica familiar, entendendo a família enquanto um grupo formador da matriz intersubjetiva do nascimento da vida psíquica (Kaës, 1998).

A dinâmica familiar associada à perversão tende a corresponder a padrões característicos, onde a mãe inibe a individuação do filho, assumindo uma relação simbiótica e fusional com ele, enquanto o pai exclui-se ou é excluído. Zimerman (2004) defende que “na história pregressa desses pacientes quase sempre são encontradas evidências de “pais pervertizantes” (…) como uma mãe (…) sedutora erógena e/ou narcisista” que “engrandece o filho e o usa como uma mera extensão sua, com a exclusão do pai” (p. 270).

Esta mãe, ao não permitir a individuação, e preservando uma relação dual exclusiva, com anulação e afastamento do pai desta relação privilegiada, nem sequer permite a entrada no conflito edipiano, pelo que o fracasso não é “na elaboração do conflito edípico, mas de algo mais regressivo, que seria a não entrada no mesmo” (Ferraz, 2010, p. 84).

Esta não entrada no conflito edipiano resultaria, assim, num “transtorno de género construído sobre uma tríade da hostilidade: raiva, medo e vingança (…) raiva da identificação inicial com a mãe, (…) medo de não conseguir escapar de sua órbita” (Ferraz, 2010, p. 84), e vingança pelo medo e raiva que sente.

A perversão cristalizar-se-ia pela impossibilidade de dissolução do conflito edípico pela via do recalcamento, mantendo-o suspenso, ad infinitum, por força do seu evitamento ou recusa (Ferraz, 2010).

O pensamento sobre o qual esta dinâmica se funde é que enquanto menino, e mesmo ainda pequeno, o filho é superior ao pai – no seu domínio e representação fálica – donde “mesmo sendo criança, é um parceiro perfeito para mãe” (Ferraz, 2010, p. 101).

Instaurando-se este tipo de pensamento, ficam criadas as condições para a emergência da perversão. Daqui resulta “uma ampla operação psíquica que visa à elevação do falso à condição de autêntico e do inferior à condição de superior e melhor” (Ferraz, 2010, p. 101-102).

Lacan fala dos interditos paternos no complexo edipiano, não apenas no sentido de inibição dos impulsos incestuosos, mas também nos desejos inconscientes da mãe de reintegração do “seu produto”, o que se assume de extrema importância no processo de identificação sexual (Ferraz, 2010).

Na primeira sessão familiar, estão presentes: o Ângelo, os pais, a tia paterna, o irmão e a cunhada.

O tema discutido é o percurso e desenvolvimento do Ângelo e as preocupações que toda a família têm em relação ao seu futuro.

O primeiro a tomar a palavra é o pai que diz que a sexualidade dele, ou a ausência dela, é “o maior obstáculo de todos”.

Segundo a família, ele sempre “teve uma reserva moral muito recuada”.

Enquanto este tema é abordado, o Ângelo começa a abraçar-se à mãe, a encostar a cabeça no seu peito e diz: “Ela é que é a minha namorada”. A mãe ri-se, mas, ao ser confrontada com a desadequação daquele comportamento, começa a dizer ao filho: “Pára com isso, tu nunca fizeste isso, porquê que estás a fazer isso aqui?”. O Ângelo responde: “Nós não somos casados… tu antes deixavas” e a mãe acrescenta “e tu foste galgando…”. O pai diz: “Tens que arranjar uma rapariga da tua idade, tu não sabes nada de nada… tu precisas é de uma namorada”.

Lacan fala da “constelação familiar que precedeu o nascimento do sujeito” (Lacan, 1953, p. 54) como o significante que antecede o sujeito e, por intermédio do desejo do Outro, o introduz no simbólico. “É em torno da “causa” do Outro que o sujeito constitui o seu mito individual” (Quinet, 2009a, p. 30).

O Ângelo vê-se assim privado de viver a sua genitalidade, porque na fase anterior a fantasia se concretizou. O que devia ficar no plano simbólico foi vivido na realidade. A relação erotizada com a sua mãe condenou-o a uma castração real. Expressar a sexualidade é cometer o incesto.

Durante a sua infância, ele viveu com os pais, irmão mais velho e avós paternos. A avó paterna é descrita como uma doente psiquiátrica, obsessivo-compulsiva, que chamava o neto para lhe abrir as portas porque “tinha nojo”. O avô, como um homem muito violento, tal como o Ângelo descreve o seu próprio pai.

Os avós dormiam em quartos separados, e esta negação da sexualidade do casal vai-se repetir na geração seguinte, quando o seu pai decide ir viver para uma outra casa, entre os 4 -5 anos, e de novo entre os 12-17 anos do filho.

Aos 21 anos, é a mãe e o Ângelo que decidem ir viver sozinhos, durante dois anos, mas ele quer sair de lá, porque foi acusado de roubar ouro a um vizinho e isso foi, segundo filho e mãe, muito traumatizante.

É nesta altura, que vai viver sozinho para a casa onde está atualmente.

Segundo a família, pai e filho não podem viver na mesma casa: o Ângelo precisa de ter as janelas e portas todas fechadas por causa do barulho, o pai precisa de dormir com as janelas e portas abertas, para controlar o que lá se passa. O Ângelo tem que dormir 14 horas por noite, o pai deita-se muitas vezes às 7 da manhã, passando toda a noite acordado. O filho precisa de uma casa-de-banho só para ele, ficando lá horas seguidas, o pai quer poder entrar na casa-de-banho quando lhe apetecer e não aceita ter a porta fechada.

Então o pai diz: “A melhor solução é o meu filho ir viver com a mãe e eu sacrifico-me e saio de casa, vou antes eu viver para casa onde ele está agora”. O Ângelo exalta-se e diz: “Eu só preciso do patrocínio da minha mãe”. A mãe ri-se. O irmão comenta: “Todos suportam este tipo de manipulação e o meu irmão faz o que quer. Ninguém o contraria”.

Nesta dinâmica, o pai assume-se ora como figura omnipresente, invadindo a privacidade do filho, o “seu íntimo exterior, sua extimidade” (Quinet, 2009a, p. 10), ora colocando-o na posição de homem da casa, colocando o filho no lugar de amante da mulher. Quando o pai sai de casa, entre os 12 e os 17 anos do filho, era o Ângelo quem decidia, sempre que o pai lá ia jantar, a que horas ele tinha de ir embora – “às 22h no máximo”, transformando a figura paterna numa “pálida miragem, impotente diante do pacto estabelecido entre mãe e filho em torno da situação edípica” (Ferraz, 2010, p. 102).

Esta autorização edipiana associada à ideia de extimidade de Lacan (1963-64/ 1979) – a parte íntima a uma distância inacessível – assume os contornos de um discurso do tipo double bind, perverso e desconcertante.

A mãe aceita o lugar de amante do filho – seduz e erotiza a relação entre ambos – para logo a seguir a negar, colocando-o como assexuado, infantilizando-o e anulando a erotização da relação dos dois. Este duplo sentido, ora exigindo, ora relegando, deixa o filho “confuso, e a sua necessidade de acolhimento e atenção torna-se maior. Assim, ao invés de promover a individuação, a mãe acaba por dificultar o corte separador entre ela e o bebê. Isso leva à permanência do incesto” (Menezes, 2014, p. 14-15).

“À negação da diferença sexual – da qual resulta a negação da existência de papéis e posições distintas na triangulação edípica – associa-se uma outra que dela decorre: a negação da diferença entre as gerações. Se o pênis do menino é qualitativamente superior ao do pai, e se, por isto mesmo, ele é o parceiro mais adequado para a mãe, então a diferença entre a criança e o adulto também se desfaz” (Ferraz, 2010, p. 103).

“Se não existe a intervenção do pai, e a mãe não permite a entrada do bebê na realidade ou no mundo, o bebê continua acreditando ser completo, ou seja, ele não é e nem será castrado” (Menezes, 2014, p. 15).

As sessões familiares são esgotantes. Todos falam por cima uns dos outros, elevando a voz para serem ouvidos ou falando ininterruptamente sem prestar atenção aos interlocutores.

A mãe cola-se muito ao discurso do filho, reforça muitas as suas crenças irrealistas e dá sempre uma interpretação às suas palavras ou apoiando-as, ou reformulando-as de uma forma muito fusional e patológica. Partilha da sua indignação pelos ricos, corroborando: “É verdade o que ele está a dizer da classe alta… ele ficou traumatizado quando viveu no bairro social”. Quando o filho diz, sem qualquer autocrítica, “que uma violação é apenas um pormenor comparado com uma guerra, não é grave porque tudo depende da importância que quisermos dar às coisas, as mulheres podem não se importar… depende…”, a mãe apoia-o dizendo: “há tantas mulheres que são violadas e se calam… só pode ser porque gostam”. Outras vezes reformula o que ele diz quando, por exemplo, este afirma que os ricos mereciam morrer todos: “O que ele está a querer dizer é que há muita injustiça social… e isso é verdade”.

O pai, perante muito do que ali é dito, assume duas posturas: ou agride verbalmente a mãe: “cale-se, você não sabe nada do que está a dizer, se o seu filho está como está é por sua culpa, eu avisei-a tantas vezes que tinha que ter mão nele”, ou dá sermões ao filho, em forma de “palestras”, dissertando sobre vários temas, história, sociedade, economia, confrontando-o nos seus argumentos, acabando os dois por falar um por cima do outro, aos gritos e sem se ouvirem. Pai e filho são muito idênticos nesta postura arrogante de quem sabe tudo e o outro é que está errado. Os sermões do pai não são muito diferentes das “palestras” que o filho quer dar nas sessões individuais, apenas mais organizadas e fundamentadas. A tia desculpa o sobrinho e embarca nas suas manipulações, defendendo que ele está muito melhor, que estas consultas são muito importantes, que ele vai mudar o seu comportamento porque os dois vão ter uma conversa séria, assumindo-se como a salvadora do sobrinho e a pessoa que melhor o entende. Descreve-o como um menino muito meiguinho, colando-se à imagem que todos têm dele, de um “menino de ouro”.

O irmão e a cunhada são os elementos mais saudáveis e estruturados da família, funcionando como um bom ponto de reflexão e discussão nas sessões familiares. São eles que confrontam o Ângelo nos seus comportamentos desajustados e, para os dois, o Ângelo não é tanto o “menino de ouro”, mas antes um bebé-manipulador ou adulto-criança. Para a cunhada, ele é manipulador, para o irmão, ele é irresponsável. A cunhada com um olhar mais lúcido; o irmão, sensato mas emocionalmente mais envolvido.

Numa sessão em particular, o irmão emociona-se e chora assumindo a sua preocupação. Todos ficam calados (pela primeira vez) e emocionam-se também com aquela reacção inesperada. Apenas o Ângelo parece não se incomodar, comentando apenas com um sorriso malicioso: “Eu nunca te vi chorar”.

Perante esta frieza, a família reage, mas logo a seguir a mãe vem em seu socorro e, desvalorizando a indiferença, dá uma interpretação tão delirante como as que o filho utiliza quando quer impor algumas das suas muitas verdades.

Nas sessões de família, o Ângelo ou tenta manipular os conteúdos, na maior parte das vezes iniciando uma discussão com o pai onde grita e se exalta, ou argumenta de forma delirante até se exaltar de novo se contrariado pela família, ou ainda demite-se da conversa, olhando para a psicoterapeuta com grande hostilidade e arrogância, embora incapaz de a confrontar verbalmente. Sempre que lhe dirige a palavra, seduz. Com a mãe e a tia, anula-as, mandando-as calar enquanto lhes diz “oh filha, não é nada disso” com ares de superioridade. Ao pai agride-o ou ignora-o. Com o irmão e cunhada, assume uma postura sedutora e submissa, ainda que artificial.

“A estruturação psíquica do perverso repousa sobre a base de uma crença ilusória, a saber, a de que o menino não precisa crescer, visto que agrada à mãe da forma como é, já tendo portanto tomado o lugar do pai. (…) A inexistência da genitalidade permite a perpetuação do embuste representado pela abolição das diferenças. Acontece que essa crença não assume a totalidade do mundo mental do perverso, devido às próprias características da clivagem do ego que decorre da recusa. Desse modo, o perverso tem a necessidade de recorrer a um mecanismo que lhe permita salvaguardar sua ilusão: é na esfera da idealização que isto ocorrerá” (Ferraz, 2010, p. 108).

Após um ano de sessões familiares, um ano e meio de sessões individuais, o Ângelo mostra vontade de interromper o apoio familiar “por falta de tempo”, diz ele. A família opõe-se, então ele decide interromper as sessões individuais.

A sua intenção de desistir do apoio é discutida em sessão familiar e todos o criticam e tentam impedir de o fazer. Mesmo assim, ele desiste. A família quando confrontada com a sua desistência fica muito zangada com ele, e acusam-no de ser irresponsável e manipulador. O Ângelo encena uma crise de pânico e, de forma muito teatral, começa a chorar aos gritos “Porquê que estão todos contra mim?… o que é que eu fiz? São todos maus comigo”. A família paralisa com esta reacção, a mãe defende-o, zangando-se com quem se zangou com o filho (principalmente com a cunhada) e vão todos para a urgência de psiquiatria. Na urgência já ele estava totalmente calmo e controlado.

Uns dias depois envia um email à psicoterapeuta: “O meu afeto eu guardo e centralizo para todos que sejam mais especiais, caso mereçam o meu tempo (…) dedicação, importância. Não sigo todas as regras (…) impostas pela sociedade, a qual considero suja e as vezes, ajo imponderadamente sem analisar as etiquetas, leis, convenções) (…) Erro, faço equívocos admito (…) confesso. Também aprendo e ensino. Todos erram um dia: por descuido, inocência ou maldade (…) As pessoas tem o direito de não adorar ou venerar A MINHA MENTALIDADE, mas às vezes agrada-lhes tanto que ficam com um pouco dela com elas. As pessoas julgam-me, humilham-me e condenam-me, eu julgo-as, humilho-as e condeno-as, também. Dão opinião sem eu a pedir. Confundem-me e misturam-me, eu também as rotulo (…) Não sou qualquer um, tenho os meus esquemas, estratégias, jogadas, métodos e formas de resultar bem. Melhoro a minha opinião, mas não os princípios morais e éticos que me governam e orientam. Não sou estranho/esquisito ou errado, embora eu seja louco de tristeza y dolores mas não propriamente diabólico, digamos (…) que sou apenas diferente do que pensas e acreditas que é normal (…)”

Esta “encenação” corresponde a uma interrupção para férias, e ele volta a tentar reiniciar o acompanhamento noutra equipa de saúde mental, mas a família opõe-se e o acompanhamento prossegue.

Nesta altura, os sintomas obsessivos e fóbicos já tinham reduzido substancialmente, e a família vê nisso uma grande melhoria. Passa a comer com garfo e faca, deixa de vestir tantas camisolas, começa a ter mais cuidados de higiene e, embora ainda não trate da sua roupa ou comida, já não a traz para a consulta, misturada com papéis em sacos de plástico sujos, como o fazia inicialmente.

Também deixa de “usar” a família como seus “empregados”, reduzindo o envio em “massa” de emails e sms, para a cunhada e irmão, os telefonemas para o pai a meio da noite para que o vá buscar algures no meio da cidade, os banhos em casa da tia e o uso indiscriminado de toalhas para se limpar (diz a tia: “Agora já só usa 3 toalhas, está muito melhor”), assim como a estratégia de manipulação e fuga, de “verter águas” cada vez que não gosta do tema da conversa. Deixa de controlar o vocabulário utilizado pelos outros e parece deixar de se incomodar com o uso de palavras com “conotações agressivas ou sexuais”, como antes insistia em sublinhar.

Diminui a exuberância e agora não só respeita melhor os horários, como já aceita esperar na sala de espera pela sua hora sem se fazer notar.

Na aparência está muito mais adaptado e a sua imagem já não é tão desagradável nem bizarra como no início. No entanto, em termos emocionais permanecem inalterados os contornos manipulativos, sedutores e teatrais na relação com os outros, a desresponsabilização e o recurso a interpretações irrealistas e delirantes. Porém, tudo começa a ser mais contido e ele começa a tornar-se mais flexível na argumentação, deixando de querer impor a todo o custo a sua verdade.

Para a família, estas mudanças assumem contornos de “milagre” e a idealização da terapia é total. Acreditam que as conversas ali o ajudam muito a moderar as suas opiniões e a mudar os seus comportamentos excessivos, quer sejam de medo, de raiva, de desorganização ou de dependência.

Embora o comportamento do Ângelo se vá tornando mais adaptado e funcional, a patologia familiar parece impor-se nas sessões de uma forma mais constrangedora e evidente. Quanto melhor parece funcionar o “menino de ouro” mais doente a família se revela.

Há necessidade de uma mudança de horário nas sessões familiares, que passam de manhã para o final da tarde. Esta mudança revela o alcoolismo do pai, que, se no período da manhã era menos evidente, ao final da tarde é notório. O seu discurso torna-se mais verborreico e prolixo e a sua capacidade de escuta e reflexão diminuem à proporção direta do seu estado de consciência. Também o traço conflituoso do pai aumenta substancialmente, tornando as sessões familiares ainda mais caóticas e disfuncionais.

Nesta mudança de atitude do pai, emerge de forma significativa o conflito entre o casal, aparecendo conteúdos paranóides na base de um ciúme patológico, insistindo o pai em acusar a mulher de infidelidade, tratando-a publicamente como uma mulher promíscua e leviana. A mulher reage as estas acusações de forma teatral, encenando o papel de vítima de modo pouco convincente, o que apenas reforça as suspeitas do marido, que a acusa de ser mentirosa, falsa e manipuladora. A dinâmica do casal vai-se assumindo com contornos sado-masoquistas, onde ambos oscilam e invertem os papéis.

A relação erotizada entre a mãe e o Ângelo funciona como rastilho desta dinâmica perversa. O filho enfrenta o pai, a mãe erotiza a relação com o filho, e o pai, num ciúme patológico perante qualquer “outro” homem, ataca a mãe, embora esteja latente a rivalidade e zanga que sente em relação ao Ângelo, na posição que este assume entre o casal.

Masud Khan (1987) define o pai como alguém que, “embora se ache presente na experiência familiar da criança, não chega a ser registado como pessoa ou presença significativa. A mãe, por sua vez (…) tenderia a tratar seu filho como se este fosse mais maduro do que na verdade é, o que provoca um desenvolvimento egóico precoce, por um lado, mas, por outro, estimula a manutenção de um vínculo primitivo do tipo autoerótico com ela, fomentando a expectativa constante de receber dela satisfação e, através dela, obter prazer (p. 39).

“Não é exagerado inferir que a conduta destas mães é, a um só tempo, traumatizante e sedutora (…). A teoria da sedução real, à medida que cria uma aguda dissociação egóica, não é, no final das contas, tão falsa” (Ferraz, 2010, p. 120).

 

O “estranho” na perversão e família

 

Todo o caso de loucura é porque alguma coisa voltou. Os possessos, eles não
são possuídos pelo que vem, mas pelo que volta.

Clarice Lispector

 

“Nos momentos em que a confrontação com a loucura desperta osentimento de Unheimlich, com sua ambiguidade de algo estranhamente familiar, de inquietante, de fascinante e aversivo, isto poderia ser devido ao fato de que nela manifesta-se abertamente algo que é próprio do sujeito, mas que ele desconhece e que aponta (…) para a castração” (Brepohl, 2012, p. 26).

A loucura de Ângelo faz despontar a castração pela sua recusa e, consequentemente, toda a omnipotência a ela associada. Os seus “problemas de vinculação com a mãe, distorção do objetivo e da meta de seus impulsos, negação da castração, cisão do ego” (Menezes, 2014, p. 16) colocam-no mais próximo do psicótico do que do neurótico e, neste sentido, a “céu aberto” com o seu inconsciente, como refere Colette Soler (1937). E isso é o que de mais estranho existe.

“Podemos supor que, nas psicoses, haveria a forclusão de algo bastante íntimo e familiar ao sujeito, que, relegado a “trevas exteriores”, aparece como estranho” (Brepohl, 2012, p. 80).

A transgeracionalidade reforça esta estranheza, nas falhas e buracos do “envelope genealógico familiar” (Grajon, 2000, p. 20), onde no espaço intersubjetivo de Ângelo, “mais precisamente, no espaço e no tempo da geração, do familiar e do grupal, (…) onde (…) o Eu pode vir a ser” (Kaës, 1998, pp. 5-6), estão as suas dificuldades em constituir-se.

Os conteúdos que emergem na transmissão psíquica transgeracional são os “caracteres de violência, alienação e transmissão do negativo” (Gomes, & Zanetti, 2009, p. 96), conduzindo à falta de inscrição de Ângelo na sucessão das gerações, vedado à simbolização e seus significantes (Correa, 2001). E, se “só há Unheimlich se houver repetição” (Garcia-Roza, 1986, p. 24), esta herança transgeracional, nada mais é, que uma repetição do “indizível dos pais” para o “inominável dos filhos” (Piva, 2009).

Após 3 anos de acompanhamento psicoterapêutico, o Ângelo começa a revelar um maior autocontrolo, refletindo mais nas suas palavras e atitudes, contornando o que antes era exuberante para agora camuflar, organizando melhor o seu pensamento, revelando-se menos rígido e inflexível, mas com isso tornando-se mais elaborado na sua manipulação.

A sua atitude muda na aparência, mas tudo o resto se repete.

Mantém em “segredo” parte da sua vida, e deixando de apoiar-se tanto na família, inicia uma “busca desenfreada” por templos, lojas e restaurantes indianos – com base na mesma veneração à India pela sua pobreza extrema e associação delirante da pobreza à bondade –, tentando conhecer todos os indianos residentes em Lisboa, como na adolescência tinha feito em relação às linhas da carris ou às juntas de freguesia.

Após esta busca “compulsiva”, passa a fazer todas as suas refeições nos templos hindus e, embora misturando-se e sendo aceite por esta comunidade sem reservas, pouco ou nada sabe sobre a sua religião ou costumes, resultando estas visitas numa outra forma de “usar” o outro em seu benefício, assente nas mesmas convicções delirantes e extremadas. A única manifestação de “gratidão” que presta à comunidade hindu pelo seu acolhimento é o ódio que dirige ao Paquistão, em nome dos conflitos entre aqueles dois países, sobre os quais pouco ou nada sabe.

Nestas suas idas ao templo hindu, conhece um dia uma indiana que lhe pede guarida na sua casa por uns tempos.

A permanência desta mulher na sua casa gera no pai grandes expectativas, trazendo este tema para a sessão. Descreve a mulher como sendo uma mulher muito atraente, com atributos sexuais evidentes, seios grandes e linhas de corpo bem torneadas, falando dela como uma mulher “fácil”. A mãe, pelo contrário, descreve-a como sendo uma mulher mais velha, de cinquenta anos, desinteressada e desinteressante do ponto de vista sexual.

Umas semanas mais tarde, este tema volta à sessão, mas agora como desencadeador de mais uma crise de pânico do Ângelo. As interpretações dentro da família divergem. Para o pai, a explicação do sucedido reside no fato de o filho não ter aproveitado aquele “mulherão”, como lhe chama, e esta “se ter metido na cama de um vizinho”, dada a inércia dele. Para a mãe, a explicação assenta antes no tempo prolongado que ela se manteve lá em casa, que afligiu o Ângelo, que, por ser “tão bom menino”, não sabia como lhe dizer que devia ir-se embora. O filho não faz nenhum comentário, referindo-se apenas à amiga de forma assexuada.

Por força do seu último ataque de pânico, a mãe vai para casa do filho “para o ajudar a acalmar”. O pai refere-se a isso como a causa da patologia do Ângelo: “em vez da mãe, devia ter lá em casa uma namorada”. Nesta sessão, a postura corporal do Ângelo face à mãe é de total colagem, passando toda a sessão encostado a ela, virado para ela e de costas para o resto da família, olhando para a mãe o tempo todo ao mesmo tempo que lhe segura no braço. O irmão comenta a postura corporal dele e diz: “quase parece querer sentar-se ao seu colo”, ao que a mãe responde: “Está à procura da maminha”. O Ângelo ri-se. Ninguém comenta.

Em torno desta nova situação de “alarme” na família, pelo retorno das crises de ansiedade, ausentes há já algum tempo, a cunhada resolve procurar a psicoterapeuta para lhe confidenciar a preocupação dela e do marido, na sequência dos recentes comentários e publicações do Ângelo no facebook, onde este se assume como homossexual e expressa conteúdos sado-masoquistas de teor sexual, segundo a cunhada muito agressivos e preocupantes.

Embora esta “confidência” da cunhada não possa ser utlizada em contexto psicoterapêutico, o irmão acaba por incentivar o Ângelo a retomar as sessões individuais para falar de temas “íntimos”, sendo essa sua sugestão muito apoiada pelo resto da família e aceite pelo Ângelo com alguma relutância de início, mas, ao mesmo tempo, com uma concordância não totalmente desinteressada.

Estas sessões individuais revelam-se muito diferentes das iniciais, estando o seu discurso e postura mais organizado, menos defensivo e rígido, com uma maior capacidade reflexiva. Passa a falar mais de si do que da sociedade, ainda que continue a atribuir “responsabilidades” aos outros, substituindo a raiva e inveja aos ricos pela raiva e violência do seu pai, ou as desigualdades sociais pela “loucura” da dinâmica familiar.

Justifica os seus sintomas, quer físicos quer psicológicos, como consequência da sua história de vida. A sua incontinência é vista como fruto do medo em urinar em sítios públicos, este por sua vez derivado às constantes “invasões” do pai à sua privacidade, quando ainda viviam juntos. Este medo, agora transferido para as casas-de-banho públicas, cinge-se ao medo de ser observado (revelado) e agredido (castrado).

Diz: “Não sou o único louco da família, mas o que mais absorveu a patologia da dinâmica familiar”, acrescentando: “o meu pai é um paranóico, a minha mãe permissiva e dependente, e a minha tia excessivamente submissa.”

Com o reinício das sessões individuais, retoma o envio de emails entre sessões, como prolongamento e imposição na relação com o outro – uma presença na ausência – onde, embora se revele mais contido e organizado, mantém uma mesma “compulsão” num escoamento pela escrita, sem desejo de reflexão ou mudança. Num desses emails, esquece-se de utilizar acentos, acabando por ser “traído” no duplo sentido das palavras, tal como antes esforçava-se para não ser “ultrapassado” pela conotação ambígua e dupla da semântica. Então escreve: “Fui forçado psicologicamente a fugir de casa à noite porque não aguentava a violência doméstica, tanto entre o meu pai e mim e a que fazia a minha mãe” querendo referir-se à violência do pai contra a mãe, mas acabando por escrever a violência (na relação erótica) da mãe com ele.

“Aquilo de familiar que aterroriza e do qual nada se quer saber, aquilo que o sujeito esforça-se por manter oculto é justamente a castração que, deve-se ressaltar, oferece uma oposição particularmente intensa à sensação de onipotência que é própria do narcisismo primário” (Brepohl, 2012, p. 25).

A homossexualidade passa então a ser a única forma de viver a sexualidade sem a conotação do incesto. O desmentido da castração, na lógica do narcisismo primário, conduz à escolha de si mesmo (ou do objeto da sua inveja) como objeto de amor. Então, assume a sua homossexualidade, estando esta, segundo ele, identificada desde a adolescência, altura onde tomou consciência da repulsa que sentia pelo sexo oposto.

Inicia a sua vida sexual há cerca de dois anos, correspondendo este período à acentuada remissão dos seus sintomas obsessivos e fóbicos. Segundo o que descreve, as suas experiências sexuais são fugazes e sem qualquer ligação íntima. Refere, no entanto, a sua primeira experiência como algo mais significativo, pois o rapaz com quem se envolveu, por um período de tempo curto, tinha “uma história de vida muito parecida” com a sua, “uma alma gémea, um sósia”, “apaixonando-se”, tal como Narciso1, pela sua própria imagem.

As experiências sexuais posteriores surgiram de encontros através de sites para esse efeito e as suas escolhas sexuais são preferencialmente “estrangeiros asiáticos”, o que, segundo ele, confirma o fato de não ser racista, permitindo-lhe, ao mesmo tempo, “incorporar” neste objeto sexual as qualidades que lhes atribui de bondade e modéstia.

Acredita que a revelação da sua orientação sexual na família nunca seria aceite por eles, principalmente pelo pai, que sempre demonstrou repugnância e desdém pelos homossexuais.

Coloca, assim, a hipótese de casar-se para poder ter um descendente e, ao mesmo tempo, fazer-se passar por heterossexual perante a família.

Este desejo de descendência tem, segundo o Ângelo, vindo a aumentar nos últimos tempos, principalmente associado à ideia/convicção de vir a morrer prematuramente, este pensamento, por sua vez, muito ligado ao medo de morte da sua mãe, pela sua idade já avançada, o que o leva a pensar na sua própria morte de uma forma simbiótica.

Este descendente, um prolongamento dele próprio, seguiria, segundo os seus desejos e fantasias, o mesmo caminho que ele, “só que por uma estrada com um bom asfalto, sem os buracos nem irregularidades do caminho que teve que percorrer.”

Nestas sessões individuais, não só se verifica uma maior abertura para falar dele e da sua sexualidade, como também uma atitude muito mais sedutora, fazendo passar a ideia, tão associada à perversão, “de que melhor vive quem melhor consegue fingir” (Zimerman, 2004, p. 271).

Nesta mudança, que o torna aos olhos dos outros, muito mais adaptado, pode-se ler, num dos emails que envia entre sessões: “Eu estava equivocado, venho por este meio fazer um autoreconhecimento (…) de paranóia fanatismo, estupidez quantas bastem, nos discursos realizados por mim quando eu falava consigo em 2013 e 2014 de temáticas paranoicas acerca de classes sociais e ideologias politicas, nomeadamente, uma certa aversão as classes mais privilegiadas, ora eu admito que essas ideias estavam distorcidas e senis, loucas, isso não era mais que INVEJA, PURA INVEJA, (…) mas infelizmente o meu pai sempre me sugestionou, direta ou indiretamente, a politiquices de extrema-esquerda, uma sociedade de todos iguais e sem ricos e tampouco sem classes medias, mas, repare, os extremos são sempre perigosos, tanto o fascismo/nazismo não presta são obsessões, (…) como o comunismo também. (…) O meu pai foi criado e morou 20 anos (…) com dois pais alcoólicos (…) e a ideologia de extremos dele surgiu como uma panaceia, que acabei por assimilar impercetivelmente sem ponderação. E acabou por distorcer a minha visão e perspetiva da sociedade durante longos anos. Cada um deve ter liberdade e chances de iniciativa individual, portanto direitos e deveres. Portanto, aprendi e também acabei nos últimos 2/3 anos por corrigir, retificar e melhorar os meus pensamentos, leituras, prismas e quadrantes”.

O psicoterapeuta, enquanto “historiador da e na análise do perverso” empresta-lhe o “funcionamento psíquico de que ele carece” (Ferraz, 2010, p. 137-138). No entanto, porque a relação é marcada pela repetição da fusão e da omnipotência, sem possibilidade para existência de um outro diferenciado, corre-se o risco de haver apenas uma apropriação, aglutinação, do pensamento do outro, numa repetição das suas palavras, refinando o seu discurso, na manipulação em torno de uma aparente, mas fingida, mudança.

Se, por um lado, o Ângelo parece ter conseguido reorganizar e isolar os seus núcleos psicóticos, tornando-se mais adaptado, por outro, eliminando as defesas obsessivas e fóbicas face ao seu “desejo de vingança”, o exercício da sua hostilidade e agressividade passa a poder ser expressa, exibindo-se agora em expressões sadomasoquistas na internet.

O que Hermann refere como o “risco do desmoronamento das bordas representacionais” (cit. em Ferraz, 2010, pp. 133-34) do perverso, enquanto “desmontagem da recusa”, aparece neste caso no seu inverso, ou seja, o risco do seu fortalecimento, contento a expressão psicótica, mas, ao aligeirar as defesas obsessivas, fazer transbordar a estrutura perversa, negada até aí.

O que se assiste, independentemente dos comportamentos mais ajustados, é a um enaltecimento permanente de si, mantendo a mesma ausência de existência, o mesmo empobrecimento do contato humano, que se mantém inautêntico, o caráter egossintónico das suas ações e a permanência de objetos transitórios e pulsionais (parciais), fruto da constante manipulação do outro.

A falha narcísica leva-o  a manter o desejo de ser reconhecido dizendo: “A minha vida dava um filme, só ainda não foi para o cinema”. À imagem do descendente, este “ainda não foi para o cinema” leva a pensar no seu desejo de ser lembrado, mantido vivo na memória dos outros, numa condição imortal. E a imortalidade seria o triunfo máximo da recusa da castração.

“Tudo foi calculado, exceto como viver”

Jean-Paul Satre

 

Notas finais

I – Ao se inclinar para beber água da fonte, Narciso viu sua própria imagem refletida e encantou-se com sua visão. Fascinado, Narciso ficou a contemplar o lindo rosto, com aqueles belos olhos e a beleza dos lábios, apaixonou-se pela imagem, sem saber que era a sua própria imagem refletida no espelho das águas.

 

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Title

The strange case of the “gold boy”. Transgenerationality and perversion.

Abstract

This article shows a case of Perversion and transgenerational determinants that contributed to their emergence. First addresses the issues of perversion in clinical psychoanalytic inspiration, describing this state, between neurosis and psychosis, that being neither one nor the other, resembles both simultaneously. Below are addressed aspects of transgenerationality and the role of the “crazy set”, where the transmission of psychic life between generations plays a key role in understanding the family dynamics, as intersubjective matrix of the birth of psychic life. Finally, the strangeness of the Golden Boy and his family, as what “return”, repeating this transgenerational inheritance, the “inexpressible of the fathers” into the “unmentionable of the children” (Piva, 2009).

Keywords

perversion • transgenerationality • the stranger.