Revista | Vol. 7, N. 1, Junho 2016

Fazer rir para não chorar – abordagem psicanalítica do humor

Introdução

O humor possui “qualquer coisa de grandeza e elevação (…) O Ego recusa‑se a ser afligido pelas provocações da realidade. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo” (Freud, 1927, p. 166).

O humor é um mecanismo de defesa com a tarefa de impedir a geração de desprazer, é uma forma de lidar com as dores de existir (Freud, 1905); o meio pelo qual o sujeito se recusa a sofrer (Freud, 1927). O recurso ao humor denuncia a noção de fracasso e a impossibilidade de realização das ilusões narcísicas do Ego. Porém, o princípio do prazer sobrepõe‑se ao princípio da realidade – sem o anular – pela “afirmação teimosa e rebelde” da vontade do sujeito (Freud, 1927). A disposição benigna do superego permite que o Ego reaja, inove e enfrente a realidade, escapando do sofrimento (Morais, 2008), ou seja, diante da angústia de castração o Ego ri de si próprio (Salles, 2011), recriando, perante si e o Outro, a perceção de controlo, de domínio sobre o ameaçador (Kupermann, 2010). O humor significa a vitória do Ego sobre o mundo externo e a vitória do princípio do prazer (Kupermann, 2010).

O humor, como uma das manifestações do cómico em geral, pode ser elevado a uma forma de arte e a um método que a mente humana possui para escapar da realidade incómoda, evitando o sofrimento mental.

“A arte (…) (é) uma actividade destinada a acalmar desejos insatisfeitos, primeiro no próprio artista criador e depois nos seus ouvintes ou nos seus espectadores (…) O primeiro objectivo do artista é libertar‑se ele mesmo e, mediante a comunicação da sua obra a outras pessoas que sofrem os mesmos desejos retidos, oferecer‑lhes idêntica libertação” (Freud, 1913, cit. por Delgado, 2012, p. 49).

 

Neste sentido, a arte envolve a libertação ou reparação de algo. Isto é, a evolução do processo criativo pode centrar‑se em dois objectivos: a reparação do objecto, devido a sentimentos de culpa ou ao receio de retaliação do objecto (Klein, 1937/1996) – representando‑se como uma formação reactiva. A criação teria como objectivo redimir e reparar a possível danificação do objecto. Por outro lado, um segundo objectivo seria a reparação do próprio self, na medida em que o objetivo é enriquecer e satisfazer o próprio Ego (Klein, 1937/1996). Neste sentido, a descarga de pulsões sublimadas facilita a restauração da própria integridade que antes parecia frágil (Chasseguet‑Smirgel, 1984).

A vontade e, por vezes, necessidade de recriar é sinónimo de recuperar o que se perdeu – tanto interno como externo (Delgado, 2012, p. 113). A criatividade deriva do sentimento de incompletude, vem associada à tarefa de criar algo novo como um meio de restauração simbólica do mundo interno – função reparadora da arte. O que assinala a reparação de uma ferida narcísica.

O ato criador, tal como o humor, é uma tentativa de atingir a integridade, de ultrapassar a castração a todos os níveis (Chasseguet‑Smirgel, 1984).

Neste sentido, o seguinte estudo tem o intuito de compreender a função psíquica do humor, enquanto mecanismo de defesa. A partir do método qualitativo estudo de caso, foram realizadas entrevistas semi‑estruturadas com base em três questões chave – a) O que é que o faz fazer humor?; b) Quando achou que era utíl para si fazer humor?; c) Existe algum tema mais recorrente quando escreve humor? Qual a relação com a sua experiência de vida?. Para além das entrevistas, foram aplicados 7 cartões do T.A.T (1, 3BM, 6BM, 7BM, 13B, 13MF e 16) escolhidos pela pertinência das solicitações latentes, de forma a complementar as entrevistas. Neste estudo participaram cinco humoristas (quatro homens, uma mulher), selecionados por conveniência. A análise do material recolhido seguiu a perspectiva psicanalítica.

Caso 1 – “Cristóvão”

“Se as pessoas riem, não te chateiam; não te chateiam, não te põem a um canto.”

Cristóvão nasce em Portugal e um mês depois vai viver para Angola, onde fica até aos 3 anos. Aos 4 anos, já em Portugal, os pais divorciam‑se e começa a viver uma semana em casa de cada um. Aos 9 anos começa a ler livros de Kafka, Voltaire, Camus e Woody Allen – justifica que por ambos os pais gostarem de ler, ser uma forma de os acompanhar – “Comecei a ler muito cedo. Não sei se foi por causa do divórcio ou não. (...) também porque os meus pais liam muito e era uma maneira de os acompanhar”. A infância é caracterizada, pelo próprio, como solitária. A imagem que o define é a de “filho único”, que vem associada a uma imagem de solidão tanto no meio intrafamiliar como no contexto extrafamiliar – “Brincava muito sozinho. Fazia os meus mundos dentro da minha cabeça e as minhas histórias. Não tinha muitos amigos.”, o que parece estender‑se à idade adulta.

No cartão 1 do T.A.T. denota‑se a insuficiência das figuras parentais e a carência afectiva sentida na infância. No cartão 6BM e 13B a precaridade do símbolo e a função do materno, assim como a revolta contra a insuficiência parental. Cartão 1: “Este rapaz (…) tinha deixado especificamente escrito na carta ao Pai Natal e os pais deram‑lhe um violino. Onde a única coisa de cavalo é as cordas do aro, que são feitas de crina. Ele está triste”. Cartão 6BM: “(…) a velhota está a ver o que é que se passa. Está a ver a vida pela janela e ele só está a pensar quando é que ele morre para eu ficar com a herança (…)”. No entanto, a solução para a solidão sentida surge na sua forma positiva (Morais, 2008) – “muito virado para um mundo que não existe, muito irreal, de criatividade (...) tentava sempre mudar as coisas à minha volta em coisas mais interessantes”. Denota‑se, então, um grande investimento no mundo interno e, no outro lado da balança, a precaridade das relações.

A carência de investimento leva às consequentes dificuldades na relação com o Outro. Parece recorrer a barreiras defensivas e protectoras das fragilidades do Self. Com o humor, encontra a eficácia da barreira defensiva que permite a relação – “As primeiras coisas que eu fiz com piada eram maneiras de contornar bullies”. O facto de ousar o humor para contornar a situação de bullying é uma manifestação do triunfo do ego que lhe permite a percepção de controlo e de domínio sobre o ameaçador (Kupermann, 2010). A utilidade do humor vem associada à aceitação, à defesa e à integração no grupo (Rosa, 2004), é por este meio que é proporcionado o investimento narcísico e a valorização do self (Kupermann, 2010). A utilização do humor parece estender‑se ao dia‑a‑dia – o que não implica, necessariamente, um falso self (Rosa, 2004), mas sim, através do humor, a liberdade para expressar o verdadeiro self – concebendo a possibilidade de catarse referida e acentuada por Freud (1905).

Actualmente, a razão pela qual faz humor ainda está associada à necessidade de aceitação – “Quando estás em palco, estás sozinho. És só tu contra o mundo e o mundo aceita‑te. Aquele bocadinho quando ri está‑te a aceitar. O que é muito bom”. Acrescenta, como segunda razão pela qual faz humor, a necessidade de transmitir a sua mensagem – “a comédia é a maneira mais fácil, como eu te disse, de passar uma mensagem” – o que traz à tona, para além das dificuldades na relação já referidas, a necessidade de ser ouvido/reconhecido.

Caracteriza o humor que faz como sendo de intervenção social – sendo este o tema mais recorrente – “Como fico em depressão constante com aquilo que acontece à volta, sinto necessidade de apresentar soluções”. Compreende‑se o sentimento de não‑pertença e, simultaneamente, a vontade de pertença pela procura de soluções para esta realidade. Uma vez encontradas, a realidade insuficientemente boa estaria mais próxima do seu ideal, do seu imaginário, do seu self. A transmissão de uma mensagem crítica sobre a realidade externa faz transparecer a liberação da pulsão agressiva sublimada (Freud, 1927) e o humor como meio para atingir o triunfo do ego (Kupermann, 2010).

Na compreensão da importância do riso surge, quase como substituto, a importância da escuta activa do público. Se, por um lado, o riso simboliza a aceitação de Cristóvão nesta realidade, por outro a atenção à mensagem/ solução que transmite confere a possibilidade de mudança desta realidade – possibilitando, mais do que o sentimento de aceitação, o sentimento de pertença. A partilha humorística com o público representa uma forma de reparar o self que na infância não foi sentido como aceite nem reconhecido.

A escrita humorística está associada à sociedade mas, desta vez, vista como a tábua de salvação – “Criamos isto [sociedade] para nos distrairmos de um facto simples que nos deixa infelizes se nós pensarmos muito nele: nós não sabemos porque é que aqui estamos e o que é que aqui estamos a fazer. Nunca vamos saber o sentido da vida e o nosso sentido pessoal. E isso é, obviamente, uma questão que nos deixa a todos infelizes de pensarmos e inseguros”. A procura da origem parece invadir o fantasmático, também pelo facto de anteriormente ter sido arqueólogo. No entanto, vencido pela sua limitação e condição humana, desiste desta actividade e investe no humor como profissão. No entanto, a procura res‑surge, sendo que os conteúdos humorísticos provêm de problemáticas pessoais e íntimas – “Essas coisas que estão numa zona da tua cabeça, que o teu cérebro tira‑as para não te foder a vida para sempre”. O humor representa a possibilidade de reviver e transformar os traumas, compreendendo a sua origem e permitindo a aceitação do próprio – “Consigo perceber alguns dos comportamentos que eu tenho, mais desviantes, através de coisas que eu me fui lembrando ao ir buscar piadas. Comportamentos ou medos...” Percebemos, assim, que o humor assume a função de reparação do self – “Faz‑te combater um bocado os demónios.” (Klein, 1937/1996).

O humor revela, para além da função de liberação pulsional, a possibilidade de reviver e transformar os traumas (Chasseguet‑Smirgel, 1984), assim como uma forma de reparar o self que, na infância, se sentia desenquadrado

Caso 2 – “Benjamim”

“O humor é uma forma de chutares para canto.”

O Benjamim tem 23 anos e começou a investir no humor profissio­nalmente há cerca de dois anos. Relativamente à família, considera‑a “completamente normal”, sendo de destacar uma forte identificação à figura paterna – “não sei se já ouviste isto, mas os filhos normalmente vivem com o objectivo, sempre, de ultrapassar os pais. E o meu pai, since­ramente, acho que é um homem normalmente com muita piada”. Sobre a sua infância refere que era “o gordinho da turma”, mas não considera que fosse alvo de bullying. O humor surge na infância como facilitador da relação; “é uma forma de chutar para canto”; permite que as coisas que diz não tenham que ser válidas, que não sejam negativamente julgadas. Sempre que em relação, o Benjamim resguarda‑se nesta máscara humorística.

O humor no grupo é, primeiramente a forma de garantir a aceitação e, posteriormente, a forma de ser investido narcisicamente – “é uma forma de ser aquele rapaz do grupo que chama um bocado às atenções nas conversas (…) porque acho que o humor, acima de tudo, também é uma forma de ser bonito”. Acrescenta a importância de notar, no concreto, o impacto no Outro e a validação de si pelo mesmo – “sempre gostei de fazer alterar a expressão da forma da cara da outra pessoa”.

A utilidade do humor é descrita sempre centrada na aceitação, validação e no reconhecimento do Outro. O riso provocado pelo Benjamin no Outro é o sinal de que ele consegue proporcionar prazer, o que possibilita ao ego o retorno narcísico que fora investido. Parece haver uma procura constante do investimento narcísico, uma vez que, desta forma, o ego torna‑se, como um balão, subitamente, maior, mais forte e mais capaz. Quando não tem esse alimento o ego parece tornar‑se mais frágil. Como o objecto interno não é securizante precisa do reforço externo, caso contrário confronta‑se com as falhas narcísicas, chegando a questionar o que antes eram certezas – o que gera um ciclo depressivo (Coimbra de Matos, 2001) – “Se eu fico muito tempo sem dar um espetáculo... por acaso fiquei 2, 3 semanas sem actuar, comecei a entrar numa espiral depressiva”. A própria forma como vê o humor revela a fraca capacidade securizante dos objectos internos – “Nós vivemos da opinião dos outros (…) Tu vales aquilo que tu és no último momento”.

O cartão 16 do protocolo T.A.T, compreende, de forma sintética, as problemáticas essenciais do Benjamin: “Era uma vez um rapaz que sempre foi o melhor em quase tudo aquilo que fez (…) sempre com os problemas dele. Descobriu realmente aquilo que gostava de fazer. E decidiu para o resto da vida dele e para além de ser o melhor naquilo, fez com que ficasse na história… e não conseguiu… (?) Era comediante.” Revela a necessidade de produzir humor a partir de si próprio. Nesta história surge a elaboração da problemática depressiva, evidenciando a depressividade e a fuga desse sentir quando em relação, o que conduz à hipótese de um falso self relacional – demonstrando a necessidade de lutar contra uma imagem de si frágil e negativa e, por isso, evidenciando as falhas e carências narcísicas –, uma vez que a representação do verdadeiro self acarreta a possibilidade de revelar insuficiência (Zimerman, 1999). As generalizações presentes ao longo de toda a entrevista, demarcam tanto a pouca confiança como a necessidade de validação. É no encontro com um semelhante que existe a possibilidade de ser. Ou seja, existe através do Outro – aproximando‑se do conceito de relação especular.

O tema mais recorrente é humor de observação. Associa este tema recorrente – procura no quotidiano do que faz rir – ao tema presente em toda a entrevista, a vida social e a interação com várias pessoas. O que parece tornar‑se um ciclo, a “vida social” e o humor passam a confundir‑se, onde a evocação de um envolve a evocação do outro.

Apesar deste ser o tema escolhido, o que proporciona mais prazer é tratar dos temas pessoais em palco – o humor enquanto catarse (Freud, 1927) – “quando me acontecem coisas más é daí que eu tiro a comédia toda”. No entanto, pela ênfase dada à intensidade do riso, não parece ser no processo de escrita que o humor permite a reparação do self. Benjamin explicita que o self é reparado pelo riso do Outro, quando afirma a necessidade do riso e das palmas – “Às vezes quase que estou desejoso que me aconteçam coisas más para ter material para escrever”.

Podemos afirmar com propriedade que para Benjamin o humor é o meio de atingir a inflação do Ego, tornando‑o exponencialmente maior (Ribeiro, 2008; Anzieu, 1979), assim como é facilitador da relação com o Outro e com o próprio. Tentando fugir ao julgamento dos outros, razão pela qual o humor é útil, retorna ao peso e impacto desta problemática – evocando a necessidade de aceitação, de ser narcisado quando num palco. Neste caso, o humor como mecanismo defensivo apenas tem função de desimpedimento quando o Outro valida, ou seja, ri. Neste caso, o Outro é um elemento essencial para completar o processo humorístico.

Caso 3 – “Pedroso”

“Se estão a rir, não se vão meter comigo agora, está tudo bem.”

Tem 33 anos. Viveu até aos 8 anos no Cacém, e depois foi viver para Londres durante 3 anos com os pais, tendo sido foi uma fase de difícil adaptação, visto que nenhum dos 3 sabia falar inglês. Pedroso acaba por se formar e ser professor de português e de inglês de 1º e 2º ciclo. A relação com as figuras parentais impele ao distanciamento, ao pouco investimento emocional, investindo, antes, nos limites da relação ‑ “São pais, ponto final.”. A relação com o materno impele ao distanciamento como defesa, o que está bem patente no cartão 6BM do T.A.T na defesa contra a proximidade na relação com a figura materna – “Eu sou filho único. É super mãe‑galinha e só não é mais porque eu a impeço de ser mais”. A figura paterna é “desligada” e a história ao cartão 7BM mostra que esta não se apresenta como objecto de apoio, antes pelo contrário, é representada uma relação de inferioridade perante a figura paterna – “Um bom bigode. Começa logo aqui (…) Aqui não há bigode… quase um buço. Este senhor poderá estar a gozar com ele por não ter bigode. Está a esfregar‑lhe… sem lhe dizer nada na cara. Com aquele olhar de ‘queria ter um bigode. Eu sei que tu querias’ e ele olha para o horizonte a pensar ‘raio, queria mesmo ter este bigode e não consigo. Merda.’”

Durante a infância foi vítima de bullying pela forma como se vestia – era a mãe que o vestia. Não tendo qualquer controlo sobre a situação, recorre ao humor – “Tinha um aspecto parecido com o Harry Potter (...) tinha um aspecto engraçado e usava esse aspecto para fazer rir as pessoas” –, recriando a percepção de controlo e permitindo o triunfo do ego (Kupermann, 2010).

Dada a história de vida de Pedroso, desde a mudança para Londres, à experiência passada de bulliyng – tratando‑se de ataques ao amor‑próprio e à socialização – e o investimento na profissão de professor de línguas (português e inglês) a crianças de 1º e 2º ciclo fazem crer, primeiramente, que a profissão de professor – sendo o detentor do poder e do saber – é uma tentativa de reparação do self danificado aos ataques contra a socialização (bulliyng e desconhecimento da língua inglesa) que sofreu e, posteriormente, que a profissão de humorista é uma ponte para a relação com o Outro. A história ao cartão 1 ilustra claramente a defesa contra a castração que lhe possibilita a relação com o Outro: “(…) Eu agora estou a fazer um espetáculo ‘Isto era para ser com o Sasseti’ em que eu toco violino… toco mais ou menos”.

O humor começou por ocupar um espaço de preenchimento da solidão e de ultrapassagem do sentimento de inferioridade. A apresentação a partir de uma personagem sugere a criação de um falso self que possibilita a comunicação, sem se comprometer e identificar (Zimerman, 1999). Exerce, defensivamente, a sua função de máscara e barreira na relação Eu‑Outro. No entanto, depois de se apresentar através de uma personagem e de estabelecida a devida comunicação e relação, é possível «tirar a máscara» e apresentar o verdadeiro self – “Chegou uma altura em que eu comecei a desligar mesmo e a envergar só pelo Pedroso”.

O humor, servindo como ponte de relação, permite que o assunto seja o próprio, que se explique e se apresente através da personagem: “Eu gosto de ver comediantes em palco que eu sinta que estão a falar sobre eles. Que aquilo que eles estão a contar é verdade”.

Esclarece, tornando mais nítida a questão da aceitação do Outro, fazendo um paralelismo entre o stand‑up e um monólogo de teatro – “o stand‑up não tem nada que ver com teatro” – porque o humor está relacionado com a interacção e com o mostrar ao Outro o verdadeiro self, mesmo que abrigado por um escudo (a personagem). Enquanto os monólogos de teatro consistem em representar sem desejar nada em troca, o stand‑up, neste caso, é exactamente o oposto – mostrar o que é do próprio com uma máscara e, aproveitando a oportunidade, interagir com o Outro. Revela: “Eu gosto muito de escrever, mas gosto de muito mais de estar no palco (…) Em cima do palco tens uma reacção… e tu consegues ver na cara das pessoas se estão a gostar ou não estão a gostar”.

A utilidade do humor prende‑se à possibilidade de testar o Outro com o falso self para posteriormente mostrar o verdadeiro self. Através do humor consegue sublimar a agressividade que surge nas primeiras interações com o Outro – devido à experiência passada de bullying. Coloca‑se a hipótese, devido a estas experiências passadas, da mobilização da identificação ao agressor através da presença em palco. O Outro tem a função de receber e conter a agressividade: “Às vezes gosto mais de ouvir um ishhh que uma boa gargalhada (…) Se a pessoa me responder do outro lado e começar também a entrar naquilo ou a gozar comigo óptimo. Se calhar está ali um amigo”. Remete para o impacto que tem no Outro e o prazer sentido quando provoca mal‑estar, assim como a contenção da agressividade que desencadeia e possibilita a relação. Por meio do humor, é permitido que a raiva flua, e se exteriorize. O humor simboliza o poder, a capacidade de destruir o Outro e destruindo‑o, não se submete à destruição do Outro – inerente ao perigo da relação.

Ao longo da entrevista evidencia vontade de se mostrar ao Outro. O palco serve como aparelho psíquico colectivo que ajuda a conter e elaborar as histórias da sua vida que vão acontecendo – notada pela reconstrução dos textos, na sua forma integral, como se o próprio se reconstruisse neste processo – função reparadora da partilha e aceitação do outro (Chasseguet‑Smirgel, 1984). Nesta lógica, o tipo de humor e os temas que abordam encontram‑se, directamente, relacionados com a utilidade do mesmo. Os temas a que recorre são temas sensíveis, que facilmente incomodam o Outro – que tem a função de conter agressividade. No mesmo sentido, no palco está uma “personagem”, que se mostra ao Outro através de uma máscara, para e eventualidade de, se esse Outro não o aceitar, se sentir protegido (Rosa, 2004).

Por fim, concluímos que é por meio do humor que a circulação da agressividade na relação é possível. A necessidade de uma “personagem” surge como um capacete ou escudo para se defender do ataque. Mas somente como defesa da possível retaliação. O humor é a possibilidade de Pedroso se expor e contar a sua verdade em palco.

Caso 4 – “Ângelo”

“O humor é uma arma brutal de arremesso.”

O Ângelo nasceu no Norte. Assinala uma experiência de vida que se pode dividir em duas. A primeira, depois da primária, é caracterizada por dificuldades em socializar e interagir. Denota fragilidades e a necessidade de um Outro “Era um alien. Estava sozinho. Não tinha ninguém”. Perante estas fragilidades, compreende a descoberta do humor como uma “arma brutal de arremesso”, fazendo referência à função de facilitador da relação social (Rosa, 2004). Atribui ao humor a função de defender, atacar e seduzir. O que conduz à segunda fase: Vivida em Lisboa que assinala como se de um recomeço se tratasse. Em Lisboa, o Outro não conhece nem reconhece as suas fragilidades narcísicas – estão resguardadas pelo humor (Ribeiro, 2008).

Relativamente às figuras parentais, ambos são professores, muito conservadores. A rivalidade com a figura paterna, sentida como demasiadamente esmagadora, leva à ruptura do investimento na relação e à necessidade de sobrevalorização do intelecto como forma de valorizar o self – “Fez com que eu, desde os 13 anos, deixasse pura e simplesmente de comer à mesa (...) via o telejornal que eu gostava de ver e sabia que me fazia bem para ter informação para a minha cabeça e ser melhor que os outros a esse nível”. Assim, o investimento no que é intelectual é também uma forma de colmatar a ausência relacional.

As dificuldades com o paterno parecem estar na base da importância que atribui à comunicação. Surgiu também uma identificação negativa em relação à figura paterna, que elicitou a identificação a uma outra figura masculina – “Normalmente pode ser a projecção do teu pai. Eu era a projecção do Miguel Esteves Cardoso”.

A utilidade do humor aparece associada à necessidade de se defender “da vida e das fragilidades (...) a nível de timidez”. Acrescenta, explicitando a utilidade: “Quando percebi que as pessoas adoravam outras pessoas que as fizessem rir e as vantagens de fazeres rir uma pessoa são imensas. Sobretudo do sexo feminino” – reenvia‑nos, assim, para as fragilidades da auto‑estima e falhas na relação; o humor possibilita o investimento do Outro – “Não é propriamente pelos meus olhos castanhos que quiseram (...) Não é por aí que elas vão. Acho que depois poderão ver isso, estás a ver, mas o que cativa é o humor”. O humor representa uma forma de seduzir e cativar o Outro.

Sobre o tema mais recorrente – o amor –, realça necessidade de se rever numa relação profunda de reciprocidade, numa relação compensadora. É precisamente o emocional que tanto tenta inibir que surge como o tema mais recorrente, demonstrando assim, a sublimação. O humor assume‑se sublimado pela insatisfação das pulsões; como possibilidade de catarse e de triunfo do ego (Kupermann, 2010) – “Estás num dia mau até tens um humor melhor, mais ácido, mais consistente”.

Através do humor é possível comunicar e relacionar‑se. É através do humor que surge a possibilidade de, finalmente, se sentir capaz de rivalizar, ao contrário do que acontecera na infância em que se retirava física e emocionalmente (relação com a figura paterna).

Para Ângelo, o humor não é usado para fazer rir o Outro, mas sim como uma ferramenta que permite dominar aquele que a priori o poderá destruir e, consequentemente, estabelecer a tão desejada comunicação – “poder falar de coisas sérias”. Sendo um facilitador da relação, o humor funciona como reparador do Self que foi danificado no passado (Chasseguet‑Smirgel, 1984). Cartão 16: “Isto é uma folha em branco cujo objectivo, para mim, é nunca deixar em branco. Há uma piada perante uma folha em branco. Um rapaz diz que o que tinha desenhado era uma vaca a comer erva e ele pergunta‑lhe ‘Então mas onde é que está?’ (?)… sabes essa história? Pronto. É essa história”.

Caso 5 – “Dolores”

“Isto do humor não tem muita graça.”

Dolores divide a sua infância em duas fases. Antes dos sete anos considera “uma infância espetacular”. Nesta altura Dolores vivia com o avô e as tias, porque os pais tinham um café e, devido ao horário de trabalho, não conseguiam uma presença e educação mínimas. Nesta altura via os pais ao fim de semana. A segunda fase da infância começa aos sete anos, em que Dolores foi viver com os pais que continuavam a ter os mesmos horários. Apesar das falhas, considera que a mãe conseguia cumprir o seu papel enquanto a figura paterna foi atribuída ao avô – “O meu avô foi a minha referência masculina na minha vida”.

Particularmente no caso de Dolores, é evidenciado a privação da relação primária na sua qualidade suficientemente boa (Zimerman, 1999). Surgem fragilidades narcísicas que são acentuadas para além do não‑investimento, pelo carácter superegóico da figura paterna – sendo que o que recebe desta figura paterna são críticas constantes que elicitam uma representação de si insuficiente – “Ele nunca aprovou nada daquilo que eu fiz”. O conflito entre o que deverá fazer para agradar e a vontade própria parecem ter origem nesta relação de insuficiência com a figura paterna. Este conflito é directamente relacionado na entrevista e surge ilustrado de forma transversal em todo o protocolo de T.A.T. Sentindo a insuficiência, não existe espaço para direccionar a agressividade ao objecto frustrante, pois isso seria a decisiva constatação de que não é digna do amor do objecto (Klein, 1940/1996). Cartão 7GF: “(…) É uma miúda, quer brincar, é uma miúda! E a ama está a dizer‑lhe ‘Por favor tens de aprender qualquer coisa se não o teu pai um dia vai ver que tu não sabes costurar, não sabes fazer nada! (…) Por favor concentra‑te e aprende a fazer qualquer coisa, a costurar um passarinho ou o teu nome ou uma merda qualquer’, ela está naquela tipo foda‑se, mas eu não quero (…)”.

Assim, a agressividade não podendo ser direccionada ao objecto, regressa ao Ego na sua forma sádica levando a comportamentos auto‑destrutivos (Klein, 1996) concretizados na adolescência – é internada por coma alcoólico que a própria considera como chamada de atenção –, que conduziram a um estado depressivo‑melancólico (Coimbra de Matos, 2001) –, que surge ilustrado no cartão 16 do protocolo T.A.T. pela evocação da toxicidade do objecto interno (estímulo branco) e, num movimento defensivo, recorre à ironia – colmatando assim o afecto depressivo. Neste período, o trauma da perda e a negligência sentida tomaram forma; a reactivação da perda foi acentuada pela morte de um objecto de amor (melhor amiga). Seguidamente, surge o humor, durante a faculdade, como uma arma de defesa com a função específica de mudar o mundo externo e interno. Investe num humor que ataca a actualidade numa vertente política e social – “Comecei a interessar‑me mesmo por estas questões todas de injustiças (...) Na prática, na lei, o sistema, o que está errado”.

A descoberta do humor enquanto arte literária, permite que Dolores sublime a agressividade (Segal, 1991). Dirigi‑la para si deixa de ser a única opção. Com o humor, a agressividade é exteriorizada. Como seria de esperar, este novo alvo (sociedade) é caracterizado pela incapacidade de retaliar ou investir narcisicamente nela, ou seja, a sociedade pode ser alvo de pulsões agressivas, uma vez que esta nada lhe pode retirar ou devolver.

A utilidade e o tema mais recorrente estão intimamente associados, no sentido em que é a escolha do tema que revela e proporciona a utilidade do humor para Dolores. A crítica às injustiças sociais parece ser o tema central e a sua importância reside, precisamente, por ser o modo de resolução da crise psíquica com origem na relação com a figura superegóica.

O facto de Dolores não conseguir subir ao palco para concretizar as piadas anteriormente escritas parece estar relacionado com a dificuldade de dirigir a agressividade ao Outro. A plateia representaria a sociedade/ figuras parentais, como tal a possibilidade de retaliação ou desinvestimento libidinal torna‑se possível – retirando o propósito pelo qual Dolores faz humor. O humor permite que a agressividade seja externalizada; escrever humor é uma necessidade, mas apresentá‑lo ao Outro uma impossibilidade. O humor assume‑se enquanto sublimação com a função de externalizar a agressividade sem correr o risco de perder o amor do objecto.

Conclusão

No final deste estudo sobre o humor e à pergunta do que se trata no humor, concluímos que talvez não seja muito mais do que a capacidade de rir das misérias da vida, dos fracassos do eu, da angústia de castração, da solidão, do desamparo, consistindo numa forma inteligente de lidar com a dor e o sofrimento e, fundamental, ainda tirar prazer disso. Razão pela qual Freud afirmou que o humor seria uma das “operações psíquicas mais elevadas”, “um dom raro e precioso”, um “recurso para aferir prazer” (Freud, 1905). De facto, o humor implica que o sujeito, na sua infelicidade mostre a capacidade do Eu reagir, inovar e enfrentar a realidade.

Para além disso, temos que ter em conta que o humor é também uma ferramenta psicossocial eficaz, um instrumento facilitador da socialização e da aceitação pelo Outro.

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Title 

Making laugh not to Cry: A psychodynamic study about humor in a group of humorists.

Abstract

This study aims to understand the psychic function of humor, as a defense mechanism. Explore and deepen its function of relief, through the qualitative method case study. In this study, five comedians – four men and one woman – were interviewed in a semi‑structured interview in order to understand the reasons that led them to invest in humor, the usefulness in interpersonal relations and if the humor they write today is conditioned by past experiences. As a complement to the interview, the projective method T.A.T. was applied. The data obtained was analyzed according to a psychodynamic perspective. The results reveal that the discovery and the use of humor arise as a defense and it is also a used to ease interpersonal relationships. Still in all the participants, relational difficulties in childhood are remarked, through humor, in adulthood. Fundamentally, humor proved to be a mean or a way to both an intra and interpersonal satisfactory relationships.

Keywords

Humor • Defense Mechanisms • T.A.T.