Revista | Vol. 7, N. 1, Junho 2016

Editorial

O sofrimento humano é um invariante quotidiano na psicoterapia/ psicanálise e apela a um entendimento e uma transformação eficaz que torne o paciente mais competente e funcional na sua vida. Este sofrimento apresenta‐se com várias vestes e disfarces que procuram e escondem compreensão e encontro numa nova relação onde a repetição termine e possa iniciar‐se uma nova maneira de lidar com os mesmos elementos presentes nas relações. O presente número da revista é composto por três secções com textos relativos à temática do estranho e do terror, teoria e clínica e investigação e psicanálise.

Os vividos de Estranho e de Terror devolvem o sujeito aos receios que o paralisam ou fazem fugir, bem como o questionam sobre os seus alicerces e as falhas que eles comportam. No texto O estranho caso do “menino de ouro”: a transgeracionalidade e a perversão, Alexandra Medeiros brinda‐‐nos com a evolução duma personalidade perversa em psicoterapia através de uma articulação entre indivíduo e a família, expondo a importância da trangeracionalidade, nomeadamente, das áreas indiferenciadas do self familiar (Bowen, 1991), geradoras de mal‐estar e de patologia nas gerações seguintes, deixando o sujeito entregue a uma raiva difratada e impossível de ser pensada.

Em Inocêncio x e a teoria das transformações: o terror puro é‐nos apresentado o olhar de Bacon acerca do humano e de como ele o via sem aparências, na sua essência mais crua ou no, dizer de Luís Delgado, como «uma metáfora do sentimento interno perante a falência total da cultura», nessa luta incessante entre natureza e cultura, onde a destrutividade pode imperar e as ocorrências da vida podem interpor o horror entre a vida e o sonho/pesadelo que apelam às velaturas que escondem e, ao mesmo tempo, mostram como a transformação se torna imperiosa.

A autora Conceição Almeida explana no seu texto sobre o estranho e o terror na radicalização fundamentalista do pensamento onde o ódio e o ataque ao vínculo imperam. A autora descreve com mestria como os vividos hostis podem tornar‐se capazes de desconstruir equilíbrios anteriores bem‐sucedidos. Esta contínua construção/desconstrução é pois uma obra em aberto, uma construção infindável que apela por cuidado permanente. Por outro lado, o seu texto desnuda a adolescência como um período do desenvolvimento onde o remanejamento da infância e o despertar de uma qualquer fragilidade pode tornar‐se semente dum desencontro do sujeito consigo e com os outros. Na história de fundo que acompanha o texto, o sujeito reencontra‐se consigo e com os outros, curiosamente em lugar teoricamente hostil, reintegrando‐se de forma mais solidária e empenhada com o contexto que o viu crescer. Quando a hipérbole pôde ser contida e transformada o reencontro deixou de ser uma miragem longínqua e o outro reassumiu também a sua condição humana.

No texto Do terror à realidade: O holograma, o ornitorrinco, o desenho e o psicoterapeuta, Ricardo Gameiro Mendes mapeia a construção do eu e o lugar mutante do outro num texto onde se torna clara a construção paulatina do eu e do lugar do outro. A démarche do texto deixa claro os movimentos de vai e vem e as construções/desconstruções que apelam à constância, à consistência e à função continente (Anzieu, 1994, 1995) do psicoterapeuta na construção duma área de concordância e de significação do sujeito com o mundo, bem como revelam que a função psicoterapêutica vai mudando e ajudando a estruturar o Eu do paciente.

No texto O estranho entre amor e morte. Uma análise psicanalítica Michael Knoch desenvolve os termos unheimlich e heimlig e faz uma resenha histórica do período napoleónico e do seu impacto devastador em terras da Alemanha e da Áustria, deixando um rasto de devastação e dor. Mostra‐nos como a literatura romântica é fruto deste sofrimento, passando a reger‐se pelas emoções e fantasias em contraponto com a literatura clássica. Termina analisando O homem da areia, onde a tragédia humana – o desencontro do eu consigo mesmo – pode inviabilizar qualquer projeto de amor que desponte, num sentido expresso pelo autor como amor e morte, onde esta suplanta qualquer desejo idealizado. O autor devolve‐nos à natureza humana e à sua tragédia irresolúvel.

Em O estranho no processo analítico José Manuel Pinto parte do conceito de estranho de Freud, da sua paradoxalidade e estabelece uma ligação com a construção da identidade do eu, salientando a presença do estranho em situações aparentemente banais do dia‐a‐dia. Complementa o seu texto com ilustrações clínicas que dão corpo e sentido aos conceitos desenvolvidos teoricamente.

Na secção Teoria e Clínica, os autores desenvolvem temas como dor psíquica e risco de suicídio, a palavra, o corpo e o “verdadeiro outro” e a rêverie. Em Dor psíquica e risco de suicídio, Rui Campos apresenta‐nos o suicídio e atribui‐lhe uma génese depressiva, assumida melancolicamente ou negada no acting contra o corpo próprio. O suicídio, no entanto, serve de ponte para realçar a importância do amor e da significação do eu, ou num outro dizer: ao reconhecimento do eu, como elemento chave de significação individual. O m da linha sempre pode espreitar quando a esperança, estruturada na confiança básica (Erikson, 1998, 2011), não pôde ocorrer e abandonou o sujeito a um desamparo de significação de si e do mundo envolvente ou somente a uma distorção sem saída do mesmo.

Em A palavra, o corpo e o “verdadeiro outro” – O modelo AEDP (Accelerated Experiential Dynamic Psychotherapy, João Ferreira apresenta‐nos o modelo AEDPP baseado no conceito de transformance, baseado na necessidade de transformação do humano, tendo como alicerce a experiência emocional e relacional no aqui e agora. O autor descreve o modelo AEDP e considera‐o «inspirado na psicoterapia psicanalítica, mas distinguindo‐se desta primordialmente por não ser focado num modelo psicopatológico, mas antes num modelo teórico centrado nos mecanismos de mudança e transformação». Este texto propõe, com minúcia, uma outra modalidade de intervenção de inspiração psicanalítica com pacientes onde as emoções e as suas transformações estão no centro da mudança.

No texto O lugar da rêverie na obra de Bachelard, Ana Gaspar descreve o encanto que a psicanálise exerceu em Bachelard fazendo‐o infletir duma linha racionalista para uma leitura poética. Bachelard, diz a autora, ao “deitar a ciência no divã” acaba por fazer «aquilo que qualquer psicanalista faria: analisar a sua história infantil». Ao fazê‐lo desemboca numa filosofia poética onde as teses sobre a rêverie aparecem ligadas à imaginação e criação de imagens que aguardam por transformação.

No artigo de investigação Sobre ombros de gigantes: o percurso e principais lições de psicoterapeutas de renome internacional, Alexandre Vaz apresenta‐nos um estudo sobre a psicoterapia, a partir da análise de 22 entrevistas a psicoterapeutas e investigadores de renome internacional, onde se abordou o desenvolvimento epistemológico dos profissionais em causa e os seus principais contributos para o que gostavam de ver desenvolvido no âmbito da psicoterapia. Os entrevistados revelam ter passado por fases de desenvolvimento semelhantes, «começando com certas “certezas” teóricas, seguidas de “caos” (fase de desintegração dessas certezas), e nalmente chegando à “complexidade”».

Na secção Investigação e Psicanálise, a revista apresenta dois textos onde, através do método qualitativo de entrevista, se investiga a psicoterapia e o papel do riso e do humor como elemento de defesa e de adaptação ao outro, pela capacidade de rir e fazer humor das misérias humanas que sempre nos ladeiam, tocam e/ou acompanham na nossa demanda mundana. Em O estudo da representação de si através da obra fotográfica de Francesca Woodman numa perspetiva psicodinâmica e projetiva, os autores propõem‐se explorar a relação entre o funcionamento psíquico da artista tendo em conta as suas produções, utilizando conceitos psicanalíticos, análise documental e aplicação da metodologia projetiva. Francesca Woodman revela na sua arte fotográfica da ruína exterior que se atualiza no corpo e nos atrai, perturba, angustia e faz pensar nos limites do corpo e do self em geral integrando temas como a solidão, a morte e o feminino.

Por m, em Fazer rir para não chorar – abordagem psicanalítica do humor, os autores partem de um estudo qualitativo com humoristas e, através das suas entrevistas e do TAT, realçam como o riso é uma aprendizagem protetora para o próprio e para a relação com o outro. O humor, no próprio entender dos autores «talvez não seja muito mais do que a capacidade de rir das misérias da vida, dos fracassos do eu, da angústia de castração, da solidão, do desamparo, consistindo numa forma inteligente de lidar com a dor e o sofrimento e, fundamental, ainda tirar prazer disso».

O presente número da revista desafia‐nos a uma imersão nos textos e ao retornar a eles, à luz da psicanálise e olhares sobre as temáticas em estudo, confirmando que a psicanálise está viva e se recria a cada texto como expressão humana por excelência.

José Manuel Pinto