Revista | Vol. 7, N. 1, Junho 2016

Do terror à realidade: o holograma, o ornitorrinco, o desenho e o psicoterapeuta

Introdução

Joana, atualmente com dezanove anos, tinha doze anos quando iniciou a sua psicoterapia. Apresenta‑se no consultório medicada com Risperidona e diagnosticada medicamente com um quadro de fobia escolar grave que a impedia de frequentar a escola. Estava no sexto ano do segundo ciclo.

No nosso primeiro encontro vem acompanhada pela mãe. Entra receosa, sinto que não está confortável. É alta e com uma obesidade considerável. A sua aparência parece muito infantil. Vem vestida com umas calças de fato treino verdes, um sweat shirt cor‑de‑rosa e a prender o cabelo tem uma bandelete enfeitada de elásticos com figuras de animais.

Senta‑se na beira do sofá e, apesar do desconforto observável, imediatamente começa a falar. Fala de uma forma mecânica e descontínua, as palavras não se ligam umas às outras, parecem ser compostas por letras que se juntaram por conveniência, por trás delas faltam imagens com vida, são robotizadas.

Joana descarrega palavras, parece ter forcluído o sintoma da representação! Evacua na sessão medo e perseguição, terror e solidão: “tenho medo de ser atacada por monstros, fantasmas e espíritos, eu sei que eles não existem, mas às vezes para mim é como se fossem reais. Sinto‑me perseguida e tenho medo de ficar sozinha. Tenho receio que me aconteça alguma coisa e que ninguém me possa ajudar. Fico com medo de não conseguir gritar”.

Com muita frequência tem pesadelos com um boneco que diz ser o filho do diabo: “o diabo tirou uma filha ainda muito pequena a uma senhora e trocou‑a por um menino, que é o filho do diabo. Depois, o sonho é sempre igual, ela, a menina, está a regar as plantas que estavam no teto e como ela está virada ao contrário não consegue ver o menino. Mete‑me muito medo! Este boneco, o menino, é muito mau e quando as pessoas não fazem o que ele quer, ele gosta de lhes fazer mal. Está sempre a falar em sangue, fala em matar. O sonho termina sempre da mesma maneira, com a cara de medo da mãe, uma cara que também me mete medo. A mãe está a lavar a cara no lavatório e o menino começa a morder‑lhe e arranhar‑lhe as costas e ela começa a gritar”.

Joana para ficar sozinha no quarto diz que tem duas estratégias, uma é estar agarrada às suas cadelas Toy e Lua: “como são animais, elas percebem mais depressa quando alguém se aproxima”. A outra é deixar o quarto todo desarrumado de brinquedos: “deixo os brinquedos todos no chão até à porta, se os pisarem vão fazer barulho e eu vou aperceber‑me”.

O contato com o fora parece ser intolerável, os olhos e ouvidos ainda cumprem a sua função, mas a digestão do captado pelo sensorial, o bizarro e o caótico, o aleatório e a anarquia, tornam a assimilação e a catalogação, a lógica e o simbólico, em suma, o pensar sobre o real, impossível: “os humanos, às vezes não sei se eles existem, desconfio que os meus pais sejam robôs. Só gosto de animais. Percebo‑os, sei o que eles querem! Se pudesse mandava construir um hotel para todos os animais que perderam a sua casa porque tiveram que fugir de florestas a arder”. A representação mental do vínculo parece estar incendiada, onde a recusa em estar em contacto com o humano parece manifesta como um garante de não ser destruída.

Não fala praticamente da escola, Joana não vai à escola desde Dezembro, estamos em Abril: “a semana passada estive perto da escola e só de ver as pessoas no recreio fiquei mal disposta, não sei explicar, no primeiro ciclo e no jardim‑de‑infância já era assim, se calhar tive uma educadora muito rígida”.

A sua história é branca, o seu histórico ainda está por colorir. Dos pais afetivamente não fala, da irmã pouco fala, diz ser pessoa muito organizada e obsessiva com as limpezas de casa, que embirra consigo com muita frequência. Joana mora com a mãe e com a irmã de 18 anos. Os pais divorciaram‑se quando ela tinha 8 anos: “lembro‑me que eu estava atrás da porta a ouvi‑los a discutir e que depois caiu um quadro da parede e fiquei muito nervosa. Os meus pais dizem que eu estou assim por causa da separação, mas para mim tanto me faz”.

Um vácuo no sentido existencial parece não ter permitido a identificação, contaminando o Ser e enfraquecendo a representação e a simbolização, os principais antídotos contra o Desamparo Humano. Ao longo da terapia, os fenómenos de desrealização vão estar presentes na sua comunicação e a realidade, a minha presença, vai ser aos poucos tolerada. Inicialmente, de uma forma muito desumanizada e desvitalizada. Num primeiro momento serei tolerado como um Holograma, num segundo momento o Ornitorrinco, num terceiro serei mediado pelo desenho e, por fim, a minha presença será autorizada e tolerada como Humano e Psicoterapeuta.

 

Primeiro ponto de referência cartográfica: o holograma

 

Num primeiro momento sou apenas um registo humano iluminado com informação tridimensional: “é estranho, parece que vens desse candeeiro que está por cima de ti, pareces mesmo um holograma”. Joana transforma‑me num holograma e encontra uma forma segura de poder estar em contato comigo.

Joana é um Ser indiferenciado! Sem a possibilidade do encontro com o humano, a potencialidade de constituir um aparelho psíquico parece ser da ordem da impossibilidade. Esta é, como sabemos, a condição incontornável para que, entre experiências compartilhadas e vivências singulares, possa advir um Eu aprendiz de historiador, às voltas com a tarefa interminável de dar sentido à realidade do mundo exterior, das manifestações do corpo, do outro e do seu psíquico.

Joana liga‑me e desliga‑me consoante as suas necessidades e tolerância interna! Não gosta que eu lhe olhe nos olhos, acha que lhe vou ler os pensamentos. Sente‑se invadida, pega no comando e volta a desligar‑me! Reduzir a zero a excitação e os estímulos desagradáveis parece ter sido a solução de autoconservação encontrada pelo seu rudimentar aparelho psíquico.

Sinto a espessura do seu silêncio, reparo no seu olhar que visivelmente não vê, nem o espaço à sua volta, nem o psicoterapeuta. Tenho em atenção os “sinais brancos” que manifestam os efeitos do seu terror. Está paralisada! Joana desligou‑se! Alienou‑se para fugir de um horror e de um terror ainda por revelar.

Tentei nesta fase oferecer constância, previsibilidade e confiabilidade, tanto pelo ambiente físico do consultório, quanto pela qualidade do meu cuidado pessoal. Esperar, não forçar e não interpretar foi fundamental. Esperar pelo seu ritmo e pela sua temporalidade de ter força egóica para não se “desligar”.

Nesta primeira referência cartográfica a psicoterapia teve obrigatoriamente de representar a incubadora onde Joana pode encontrar as condições ambientais ideais para o nascer de uma consciência espontânea com vontade de assimilar e metabolizar a relação com o mundo.

Corporalmente Joana existe, mas sem o oxigénio da ilusão, do sonho e do pensar. As defesas primitivas contra as angústias de aniquilamento e de fragmentação, os núcleos persecutórios e paranóides têm sido o seu escudo protetor. Vive a agonia daquele que sobrevive, negando a necessidade de um lugar psíquico onde repousar.

Ocorreu um corte, o vínculo libidinal com os objetos do mundo aparentemente foi eliminado. Sem solidez egóica, Joana experiencia o terror, um terror sem nome. Sente‑se abandonada e sem recursos que a possam amparar e proteger dos sentimentos de desamparo e de estados de angústia. Não aparenta conseguir socorrer‑se da fantasia. O sentimento de confiança básica encontra‑se severamente abalado e o medo impera nas relações de objeto. Sem rotas alternativas e sem possibilidade de “fuga”, é incapaz de estar só e de suportar a alteridade. É apenas um “corpo” fragmentado e despedaçado.

A ligação a um terceiro, o corte da fusionalidade e o sair da posição de “marioneta” de um Outro que não permite o pensar parecem ser fatores importantes a trabalhar para que a dependência e ódio na relação não continuem a coabitar no seu interior.

Joana desinvestiu o externo e a realidade! A hipersensibilidade impediu‑a de obter os “materiais imprescindíveis à navegação do seu Ser”, a subjetividade, a narrativa e a ambivalência. O interesse pela “descoberta” e pela “exploração de novos continentes” não é possível! A escola e o Outro ainda não podem ser uma aposta para si!

Joana continua a não ir à escola, só começará a frequentar a escola um ano depois do início da terapia. Nas sessões, fala do que faz quando fica em casa com a irmã ou quando vai para o trabalho da mãe. Não pode ficar sozinha, não quer, não consegue, não a deixam. O medo é sempre a dois, o seu e o do Outro.

Continua a apresentar‑se sempre vestida com roupas de cor verde e rosa, diz que são as cores que mais gosta, mas não sabe explicar porquê: “um dia quero pintar o meu quarto com estas cores, nessa altura vou conseguir dormir sozinha”. A decoração do seu interior não foi realizada, não sabe o que falar, o que vestir, o que fazer, Joana não sente! A passagem da posição esquizo‑paranoide para a depressiva ainda não é possível: “eu nunca choro, não consigo”.

As angústias de morte criaram condições atmosféricas que impediram o navegar do Ser. O EU sangra hemorragicamente! O medo da diluição e de perder os limites provocaram uma angústia intolerável e impensável. Joana não consegue viver, não consegue aparecer, teve que desaparecer.

“Ontem à noite tive um sonho. Estava a falar com a minha vizinha e ela estava‑me a dizer que se eu cortasse as unhas à minha cadela ela passava a falar comigo. É como se o sonho fosse aquilo eu quero. Gostava de saber o que a Toy quer de mim? Ela muitas vezes quer falar comigo mas eu não compreendo. Sabes, eu agora estou a dormir com a minha irmã e a Toy vem muitas vezes chamar‑me à cama e eu não sei o que ela quer, não consigo entender”.

Tento acolher o discurso do sensorial, do corpo, do estranho. Escuto‑o, tento metabolizá‑lo e digeri‑lo, tento por vezes devolvê‑lo. Mas, Joana ainda não está pronta, não está separada, integrada. O seu aparelho de pensar não está sólido e consistente para a inscrever no espaço psíquico e transformar as suas vivências e conferir‑lhes sentido e significação. O humano que vive no terapeuta e que está por de trás do candeeiro ainda se pode virar contra ela.

“Uma destas noites a Lua ficou a chorar e eu acendi a televisão para lhe fazer companhia, estava a dar um programa sobre mulheres que vivem em casas assombradas. Consegui ver o programa até ao fim, tive medo, mas consegui. O programa falava de três mulheres. A primeira dormia num quarto que quando desligava a luz começava a tocar uma música. No quarto da segunda mulher as gavetas dos armários mexiam‑se como as teclas dos pianos. E depois havia uma terceira que tinha um fantasma, mas ele não a assustava. O fantasma fazia‑lhe festas e carinhos na cabeça, mas o comen­tador do programa dizia que as provas não eram credíveis.

Joana quer que eu a acolha, a entenda, a compreenda – a pense! Construir uma unidade e uma multiplicidade para o seu discurso foi fundamental. Transformar a queixa, a fobia escolar, no pedido, a intolerância ao outro, teve que ser gradual. 

 

Segundo ponto de referência cartográfica: o ornitorrinco

 

Aqui vou ser percecionado como o “cara de Ornitorrinco” e o consultório passa a ser a minha toca: “é giro parece uma casa na árvore”. Joana transforma‑me novamente, agora na cara de um animal. Encontra uma outra forma segura que lhe possibilita aproximar‑se ainda mais de mim e se deixar vincular sem se sentir ameaçada de morte.

A dois e sem presença de estranhos, começa a sentir‑se mais confortável no setting terapêutico e na minha presença! Começa a explorar mais o espaço, a ouvir e a olhar, a procurar mais o meu olhar. Os olhos do Ornitorrinco parecem não a assustar!

Joana parece agora querer olhar mais para o espelho, começa a sentir‑se fascinada com o seu reflexo, este já não a deixa paralisada de terror. O que vê ao espelho já não é castração e anulação, a alienação parece perder força. O desejo parece querer emergir! Fica mais curiosa: “Aquilo é o quê? Para que serve? O que tens ali dentro daquela caixa?”. Começam a existir perguntas, curiosidade, olha para a plasticina, mas não se levanta. Tento antecipar o seu desejo ainda sem palavra. Levanto‑me e vou buscar a plasticina, coloco‑a nas suas mãos. Esboça‑me um sorriso.

A “toca”, o setting, vai ser o espaço neutro das contaminações da realidade. Na toca começa a reconstruir a falta, na toca transforma o interior materno, na toca acedo ao seu interno. Olha novamente para a caixa lúdica, estimulo‑a a ir comigo conhecer os brinquedos, receosa, volta‑me a dizer que não. Certa sessão, de forma espontânea, levanta‑se do sofá e dirige‑se à caixa lúdica, visivelmente pouco à vontade, abre‑a e retira dela um brinquedo, um cavalo castanho. Senta‑se no chão comigo e diz‑me: “a minha irmã não gosta que eu me sente assim no chão”. Conta‑me que está sempre a perder os brinquedos e recorda um em particular, um cavalinho chamado Spirit.

Projetivamente conta‑me a história do seu cavalinho perdido: “O Spirit tinha uma grande amiga, uma égua chamada Chuva. Viviam livres com os Índios nas montanhas, gostavam de fazer corridas e brincar um com o outro. Eram felizes! Mas, a história deles vai ser triste. Um dia enquanto estão a beber água num lago vão acabar por ser capturados pelos cowboys que precisavam de cavalos para domesticar”.

As consequências do terror e da captura do seu Eu ainda estão bem patentes, no início das sessões faz questão de registar o tempo, se chegou a horas ou atrasada, no final, Joana arruma e limpa o espaço. Vai ao ínfimo detalhe, tudo é controlado, os sofás, as almofadas, a caixa lúdica, os brinquedos, o candeeiro. Limpa os registos da sua existência, apaga as provas, mostra‑me a sua domesticação. Ainda não confia plenamente. Estar no chão comigo a brincar e a falar ainda lhe causa muita estranheza. Ser espontânea e revelar‑se ainda pode ser um risco. Será que aqui posso ser livre e selvagem? Será que aqui me posso desarrumar e brincar? Pergunta‑me se o meu consultório costuma ter aranhas: “Se tiver, ou se eu descobrir não volto cá mais, não suporto aranhas” – diz.

 

Terceiro ponto de referência cartográfico: o desenho 

 

Aos poucos nesta nova referência cartográfica, Joana começa a aceitar e a solicitar a minha companhia, num primeiro momento de forma silenciosa, que a pode observar a desenhar. Joana permite‑me entrar no seu refúgio, o seu desenhar. Através dos desenhos vai‑me apresentando o seu aparelho psíquico rudimentar, o que sensorialmente registou mas não codificou. Desenha o terror da falta, o desprazer, mas também a procura de uma homeostasia primordial, o prazer absoluto. Os desenhos são o seu mapa pictográfico dos registos protomentais, onde a forclusão e o ódio ao humano vão ser evidentes: “Só gosto de desenhar animais, nunca desenho pessoas, não gosto e não quero, nunca ficam bem”.

No seu desenhar pode prescindir completamente do Outro! O seu desenhar pode equivaler ao satisfazer alucinatoriamente os seus desejos! No seu desenhar, a sua concha que se encontra nas profundezas do mar tem defesas ultraprimitivas e pulsão de morte que não permitem à realidade e ao humano entrar. No seu desenhar a satisfação parece ser autística!

Com os lápis e com as canetas evacua no papel branco descargas motoras de impressões sensoriais que a invadem. Estou ao seu lado, observo‑a, sou apenas um “continente” que guarda os seus conteúdos, falta a intencionalidade para construir uma relação de consciência. Gradualmente, vou sendo sondado e incentivado transferencialmente para atribuir um sentido aos seus desenhos.

Nos silêncios do seu desenhar, por vezes a sessão inteira, sou apenas, como ela dizia, o “cabide das suas canetas”. No início de cada sessão escolhe as cores que quer usar e pede‑me que eu as segure. Vai pedindo as canetas por conveniência de cor e devolvendo‑mas novamente à medida que já não necessita mais. Na ausência da fala, emergem‑me pensamentos, memórias pessoais vividas, situações da minha infância em que fui cuidado, vinculado, em que brinquei. O primário parece estar a ser trabalhado! Joana evacua para dentro de mim algo que ela pôs de lado, que lhe faltou! Parece estar a aprender a usar o objeto humano de uma outra maneira!

Metaforicamente o seu desenhar foi evoluindo de uma forma evacuativa e obsessiva para uma forma assimilativa e espontânea, instalando‑se progressivamente uma consciência com energia pulsional para investir no imaginário e no simbólico. O desenhar deixa agora de ser só uma construção do sensorial para ser também digerido pela consciência, onde a atenção e a memória passam a ter funções de pesquisa e de registo com intencionalidade de sensações e de emoções no contato com a realidade.

As imagens da relação de união e separação, de nascimento e vínculo serão as representações mais abordadas nos seus desenhos, configurando uma interpretação cénica do seu mundo. O humano começará também aos poucos a ser possível no palco do seu desenhar, situações de família e da escola abrem uma possibilidade transacional para o falar e para organizar um reconhecer, um significar – um pensar.

No seu desenhar a presença e ausência serão interpretadas, onde a fantasia representará a mediação entre o sofrimento do corpo e a interpretação do Eu. A fantasia permitirá arrefecer o impacto do afeto negativo e metabolizar o sem sentido, modificando o seu temor perante a realidade.

Um ano depois Joana volta à escola! O seu sofrimento emocional e as suas dificuldades de socialização serão tidos em consideração. Durante um ano, aproximadamente, estará na escola sempre com a mesma professora e apenas com uma colega de sala, uma menina com graves dificuldades de aprendizagem. Apesar dos cuidados da escola e da professora, o temor da realidade continuará a obrigar o Ego a edificar um sistema paranóide. No recreio e no intervalo irá continuar a habitar o Adamastor, o monstro que afunda as caravelas do Ser. Dentro da sala, ouve para lá da porta os risos e o falar dos outros alunos: “Fico sempre a pensar que estão a gozar comigo” – diz. As somatizações vão impedi‑la muitas vezes de frequentar a escola, mas a intencionalidade da descarga motora começa a mudar permitindo a construção de um aparelho psicossomático de pensar as experiências e elaborar significados.

Com a transferência e a libidinização da relação a redirigirem a repre­sentação de vínculo, os movimentos regressivos “dão à costa”, Joana viaja agora a outros portos onde ficou ancorada e recupera memórias infantis sem amnésia. Aparecem as provas das falhas do recalcamento, as provas de experiências traumáticas que acarretaram danos precoces ao seu ego e ao seu narcisismo primário.

Recupera lembranças muito precoces, uma aranha que lhe sobe as pernas enquanto espera que o pai a vá buscar ao jardim‑de‑infância, de cair do colo da irmã, dos brinquedos que desapareceram sem saber porquê, ou de estar fechada numa tenda da Barbie.

Joana começa a construir e talvez a inventar uma história que dê um sentido à sua existência. Encontra causas sensatas e aceitáveis para que o seu frágil Ego tolere as exigências das duras realidades com as quais teve que coabitar. O Eu ocupa agora o lugar de historiador que atribui significado ao mundo, à relação com os outros e às próprias vivências. Joana deteta o abandono e a perseguição: “A minha irmã não queria que eu tivesse nascido, ela deixou‑me cair de propósito queria que eu morresse. Fechava‑me na tenda para me sufocar”. Joana tenta encontrar nomes e imagens para o seu perseguidor, mas também para quem não a protegeu.

 

Quarto ponto de referência cartográfico: o psicoterapeuta

 

Nesta quarta referência cartográfica começa a ensaiar a construção de um julgamento crítico da realidade: “Ricardo, ontem na escola chamaram‑me de baleia e hipopótamo, o que faço?”. Joana quer proteger‑se, quer dar conta da realidade. As transformações corporais começam também a ser abordadas, quer fazer dieta e começar a emagrecer. As problemáticas edipianas vão ser novamente reequacionadas!

Aqui, a transferência é direta/anaclítica, instalando‑se uma dependência “quase absoluta” do objeto. Os processos de separação e de individuação ainda não estão consistentes e o medo do esmagamento ainda paira. Sou solicitado a sair do consultório, Joana quer que eu esteja ao seu lado. Telefona‑me porque desmarquei uma sessão e tem medo que eu não queira voltar a estar mais com ela. Telefona‑me porque tem medo de voltar a ter medo e deixar de ir à escola. Telefona‑me porque tem medo dos intervalos, do recreio, das raparigas, dos rapazes, descobre que não aprendeu a falar de si. O vento da realidade é ainda muito forte para o navegar! Telefona‑me porque tem medo que o seu peito não cresça e está muito assustada. Oiço o som da falta de identificações e do desdobramento do Ego, da Barbie e não Barbie. Escuto o reconhecimento e a aspiração do feminino, tento significar os medos da menina boneca.

Mais humana e emocional, agora chora perante as suas dificuldades. Já consegue gritar e sonhar a sua desumanização: “Ontem sonhei que tinha feito uma excursão a um museu sobre o corpo humano. No final, eu e a minha turma fomos à loja do museu para comprar lembranças, mas eu não conseguia escolher nenhuma. Ao balcão estava uma ovelha com muita lã e uma cobra. Comecei a ficar muito nervosa, queria acordar, sabia que estava a sonhar. Depois, ainda foi pior. Apareceram duas mulheres, ataram‑me à maca e disseram‑me que eu ia ficar boa. Uma delas estava sempre a bater com uma faca num ferro e ria‑se. Pareciam estar a gostar de me estar ver com medo. Perguntaram‑me se eu sabia o que ia acontecer? Respondi que não! Disseram‑me que me iam tirar os órgãos para os vender”.

Vestida com roupas de cor preta e com o rosto pintado com uma maquiagem de tonalidade escura, Joana enluta‑se na posição depressiva! O desenhar deixa de ser o mediador! Substitui o desenho pelo falar! Fala de si e do que fez na semana, traz dúvidas da realidade para serem pensadas e sonhos da sua interioridade para serem ouvidos e interpretados. O terapeuta já a pode escutar e guardar, está “autorizado” a subjetivar. A transformação da representação de vínculo altera em definitivo a rota do seu Ser! A identificação e o Ego Ideal passam a ser mantimentos imprescindíveis para a sua navegação.

O secundário instala‑se, o princípio da realidade impõe‑se pelo falar, Joana abraça o seu pensar. Pensa e reconhece a invasão e a confusão no seu espírito, pensa nas consequências da passividade da mãe e na ausência do pai. Fala dos episódios de bullying que sofreu na antiga escola, mas também dos que sofreu por parte da irmã. Fala da sua camuflagem de menina pequenina para esconder o seu crescer. Fala da estranheza que sentiu quando foi brincar para o chão comigo pela primeira vez: “Eu brinquei sempre sozinha e a minha irmã dizia‑me que era muito perigoso estar contigo de porta fechada”. Fala dos seus pais infantis, fala que sempre quis fugir da casa assombrada das portas sempre abertas, onde habitava a anarquia do sem lei das mulheres que deambulam nuas sem roupa.

Joana ganha energia interior para se separar, para proteger mais o seu espaço, para reprojetar menos na realidade o terror da irmã! Explora álbuns com fotografias da sua família, tem mais curiosidade sobre o seu pai, que conhecê‑lo. Recorda e ri: “Estou a lembrar‑me da altura que tu tinhas cara de ornitorrinco, a minha mãe de coala, a minha irmã de ocapi e o meu pai de capivara. Só não sei explicar a do meu pai, a tua é por causa do bico do ornitorrinco, achava‑o fofinho. A minha mãe porque achava que os coalas eram passivos e a da minha irmã por ser esquisita, uma cara de girafa num corpo de zebra. O meu pai… esse não sei, conheço‑o mal, ainda hoje acho que tem cara de Índio”.

 

Conclusão

 

Agora, seu quarto pintado de verde e rosa Joana reconhece, compreende e significa o seu familiar. Pensa e sonha em aprender a nadar em alto mar! Explora uma nova rota, a do “EU” subjetivo, separado e individual onde é possível a projeção no mundo sem a ameaça de se afogar na diluição e na fusão. Já não está tão assustada! Está deslumbrada com a realidade! Olha para o horizonte, imagina‑se casada e com quatro filhos. Sonha com o dar de mamar, com o colo e com o brincar. Pensa na decoração que quer dar aos quartos. Está apaixonada pelas cores da polis! Observa as pessoas à sua volta com roupas de todas as cores das montras da cidade. Tudo agora parece brilhar, quer agarrar, quer morder, quer ter, quer assimilar, quer viver: “Já decidi aonde vou fazer a festa dos meus 18 anos! Vou fazer uma direta na praia com os meus amigos, quero passar a meia‑noite a ver as estrelas e a ouvir o som do mar”.

No seu quarto pintado de verde e rosa, hoje navegamos os dois pelos mares da adaptação e da patologia da dependência, onde as correntes do necessário ainda teimam em confundir‑se com as do desejo!

Referências bibliográficas

Amaral Dias, C. (2005). Freud para Além de Freud – Vol. II. Lisboa: Climepsi Editores.

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Salomão, J. (1969‑80). Edição Electrónica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud. Imago Editora.

Freud, S. (1905). A Sexualidade Infantil – O Descaso para com o Infantil. Volume VII – Um caso de histeria: Teoria da sexualidade e Outros trabalhos.

Freud, S. (1911). Formulação sobre os dois princípios do funcionamento mental. Volume XII – O caso Schereber, artigos sobre técnica e outros trabalhos.

Freud, S. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. Volume XIV – A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e Outros trabalhos.

Freud, S. (1920). Além do princípio do prazer. Volume XVIII – Além do princípio do prazer, psicologia do grupo e Outros trabalhos.

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Freud, S. (1923). O ego e o id. Volume XIX – O ego e o id e Outros trabalhos.

Freud, S. (1924). A dissolução do complexo de Édipo. Volume XIX – O ego e o id e Outros trabalhos

Title

From Horror to Reality: The Hologram, the Platypus, the Cartoon, and the psychotherapist.

Abstract

Psychosis was the starting point, the start of the psychoanalytic journey I am speaking of today, where the vitalization and rehabilitation of the bonding representation were, and still are, the guiding light to building a Thinking Being within the “ship” of clinical practice. During this journey, I marked on the map of the Being for crucial reference points in azimuth for opening of the conscience and of a thought of the existential history: the Hologram, the Platypus, the Cartoon and the Psychotherapist. Following the guidelines of these four map references registered in the practice of a clinical case and also following the theoretical references passed on to us, my aim with this communication is to make a humanizing journey about the world of psychosis, sailing over the horror of the Uninhabited Being and its inability to keep in touch with reality.

Keywords

Helplessness • ego • psychosis • psychotherapy • trauma.