Comecei a trabalhar com a Maria (nome fictício) a 19 de Novembro de 2008. Esta mulher com ar de menina tinha na altura 33 anos, engenheira de formação, trabalhava numa empresa multinacional numa função burocrática pouco apelativa para a paciente. Logo na primeira sessão, Maria quis relatar-me em catadupa os principais traumas da sua história como que os vomitando de uma só vez, talvez para evitar o terror que os mesmos continham quando investigados em maior detalhe. Maria era filha única e o pai tinha-se suicidado quando a paciente tinha 13 anos, cerca de alguns meses após a mulher lhe confessar ter interesse por outro homem e desejar a separação. Os pais desde logo puseram a paciente ao corrente da situação, sendo esta vítima das queixas e manipulação de ambos. As ameaças de suicídio do pai vieram a concretizar-se quando numa saída da ponte 25 de Abril parou o carro e atirou-se para o vale de Alcântara. A paciente foi chamada a identificar o carro e a sofrer as represálias da família do pai que acusou a mãe da morte do pai. A mãe procurou apoio no amante com quem passou a viver ao fim de alguns meses e que viria a abusar sexual e psicologicamente da paciente dos 14 aos 19 anos. O abuso sexual aconteceu diariamente durante alguns anos para além do controlo paranóide dos movimentos da paciente, das suas (poucas) amizades, do seu diário e das suas gavetas, com o receio de que alguma coisa pudesse comprometer o agressor. Só o primeiro namoro de Maria e a entrada na idade adulta poriam fim ao terrível abuso, mas não ao pesadelo que se arrastou durante a vida da paciente.
Aos 21 anos, Maria procurou um psiquiatra para tratar a depressão de que sofria, voltando a ser vítima de abuso sexual por parte do médico em várias consultas. Numa das sessões nas quais explorámos os detalhes desta relação, Maria recordou com ironia que a mãe lhe teria referido o médico, que ela própria já havia consultado, como alguém mulherengo e “atiradiço”. A despreocupação da mãe em entregar a filha às mãos dum homem com estas características levanta a questão que nos ocupou inúmeras sessões: o suposto desconhecimento da mãe sobre o que se passava debaixo dos seus olhos e a incapacidade desta não só para ver e sentir a filha como para protegê-la do padrasto abusador.
Maria não tinha revelado à mãe o que havia sucedido quer com o padrasto, quer com o médico psiquiatra. A razão principal que justificava guardar o segredo era a mãe continuar a viver com o padrasto e a paciente temer o desenlace desta revelação, não só para a vida da mãe, como para si própria. Maria cortou relações com o padrasto e recusou continuar a vê-lo alguns anos após sair de casa para ir viver com Joaquim (nome fictício), a sua relação mais duradoura (5 anos) e significativa antes do actual companheiro. Ao longo dos anos, Maria viria a desenvolver uma relação hostil e distante com a mãe, que não compreendia o carácter instável da filha e os ataques e críticas que fazia à mãe, a qual se vitimizava e se sentia incompreendida. Mãe e filha fizeram algumas sessões de terapia familiar com o intuito de resolver o impasse na relação – Maria tinha a expectativa de que mãe pudesse finalmente compreender as razões da sua raiva e fosse revelado o teor do abuso, o que não viria a acontecer, em parte por recusa da mãe em continuar o processo terapêutico.
A expectativa de reconquistar a mãe seria outro aspecto fundamental da estrutura da paciente, a que não seria alheio a culpa sentida por Maria relativamente aos abusos cometidos. Maria sentia-se duplamente culpada: por ter tido curiosidade e vontade inicial de ter tido sexo com o padrasto e por sentir que havia algo de errado consigo por não estar a ter prazer quando tinha sexo com este; a paciente também sentia culpa por estar a trair a mãe. Foi somente durante as sessões de terapia familiar que Maria tomou consciência de que tinha sido abusada, quando lhe foi verbalizado pela terapeuta numa das sessões individuais. Na sequência desta experiência terapêutica, Maria voltou a procurar apoio psicológico com vários profissionais numa série de tentativas frustradas que a trouxeram ao meu consultório.
Na primeira sessão, Maria apresentou o que viria a ser a sua queixa fundamental ao longo do tratamento, a dificuldade nas relações sexuais com o actual parceiro. Maria tinha desejo e prazer nos preliminares mas quando passava ao sexo oral ou ao coito genital, a paciente sofria duma clivagem profunda, ficava sem prazer, por vezes com sintomas de despersonalização, sentindo uma grande angústia e um bloqueio que a levava a interromper o sexo com João (nome fictício), o companheiro com quem já estava em relação há cerca de um ano. João tinha então 25 anos, oito anos mais novo que a paciente e era extremamente carinhoso e atencioso com esta. Maria tinha finalmente encontrado alguém capaz de a conter e de a aceitar mas mais uma vez sentia-se culpada por não poder corresponder sexualmente ao empenho do companheiro.
Ann Salter, uma das mais reputadas especialistas na área de abuso sexual, refere como os encontros sexuais são os factores que mais commumente despoletam flashbacks afectivos (affective flashbacks) nas vítimas de abuso sexual na infância (Salter, 1995). Os flashbacks afectivos definidos por esta autora como um reviver da experiência de abuso estão incluídos nos critérios de diagnóstico para Perturbação Pós-Stress Traumático do DSM-IV (2002) e constituem um aspecto fulcral do quadro de ansiedade e depressão associado às vítimas de abuso sexual que pode continuar durante décadas após o abuso ter terminado (Salter, 1995). Outras causas de problemas sexuais nos sobreviventes adultos estão relacionadas com a dissociação ocorrida durante o abuso sexual, defesa que surge como forma de prevenir a dor durante o acto sexual mas que acaba por prevenir também o prazer, o que leva os sobreviventes a evitar os encontros sexuais, como no caso de Maria, ou a terem o desejo diminuído. A paciente apresentava outro mecanismo de defesa de cariz psicossomático comum aos sobreviventes de abuso sexual: deixar de ter sensibilidade em diferentes partes do corpo como se estivessem anestesiadas, nomeadamente em posições ou práticas sexuais associadas ao abuso.
Para além desta queixa, Maria tinha-se sempre sentido diferente e inferior aos outros, apesar de ter sido uma excelente e dedicada aluna. Durante os anos escolares, Maria isolava-se e não tinha praticamente amigos em grande medida pela vergonha e confusão geradas pela relação abusiva e ambivalente com o padrasto, que numa fase inicial era o mentor e tutor escolar da paciente, passando posteriormente a abusador e controlador de todos os seus passos, com receio que Maria o pudesse denunciar. Este ambiente descrito pela paciente como terror psicológico afectou largamente a sua auto-estima e auto-confiança, bem como a capacidade para se aproximar e confiar no outro. A paciente ainda hoje se descreve como “um bicho-do-mato” que se sente mais à vontade com animais do que com pessoas. Maria sofria de ansiedade social fruto de relações primárias abandónicas e traumáticas. O suicídio do pai, a única pessoa com quem tinha estabelecido alguma proximidade, o carácter histriónico e incapacitante da mãe em proteger e cuidar da paciente e a relação abusiva com o padrasto só poderiam deixar o mundo interno de Maria repleto de objectos punitivos e ameaçadores que se reflectiam no receio de proximidade com o outro e em momentos de evacuação da raiva e agressão contra o outro (sadismo mais fantasiado do que concretizado) e especialmente contra si própria sob a forma de depressão, auto-mutilação, sentimentos de inferioridade, de vergonha e de culpa. A internalização destes objectos malignos deixava Maria, enquanto adulta, num desamparo interno difícil de tolerar.
Quando iniciei o tratamento de Maria optei por colocar a ênfase nos aspectos positivos da história da paciente: a sua resiliência perante os cenários de adversidade; a forma como conseguiu estruturar a sua vida, sucedendo em termos escolares e profissionais e a oportunidade de poder reconstruir a sua sexualidade através duma relação com alguém muito empático e atencioso, o seu companheiro João. O enfoque positivo com que encarei a história da paciente e a instilação de esperança para poder ultrapassar os seus bloqueios encontraram ressonância e agrado em Maria. Prescrevi o exercício de terapia sexual “Tatear o Foco” (Sensate Focus) de Masters e Johnson (1970) para o casal explorar a sexualidade sem recorrer ao coito genital ou ao sexo oral.
Na segunda sessão, Maria relatou como fizeram o exercício e acabaram por não resistir a ter sexo, desta vez duma forma mais lúdica, em que a paciente não sentiu qualquer bloqueio. Maria esteve atenta às suas reacções, confessando o seu lado perfeccionista que recorda desde a infância. A menina que se sentiu tão pouco amada desenvolveu como defesa o perfeccionismo nos estudos e no trabalho para que alguém a pudesse reconhecer e amar, o que infelizmente só viria a acontecer na idade adulta. A paciente concentrou-se no namorado e no que este significava para si como estratégia para ultrapassar o bloqueio. Explorámos a questão de Maria não querer ficar em dívida para com o namorado e como estaria relacionada com o segredo mantido em casa durante tantos anos. Mesmo depois do abuso ter terminado, Maria era “perseguida” pelo padrasto, que lhe fazia cenas de ciúmes, insultava e diminuía a paciente, sem que a mãe estivesse ao corrente do que se passava. Maria sentia que o sexo era uma forma de apaziguar o padrasto. Julgo que este apaziguar se referia não só ao controlo das ameaças do padrasto como também ao apaziguar da culpa e vergonha que sentia. Maria aprendeu através do sexo a não sentir, a desligar-se e a evadir-se da agressão que sentia dentro e fora de si.
Salter (1995) considera que uma criança que é molestada por um cuidador apresenta uma experiência de invisibilidade emocional. Tal como no caso de Maria, o agressor não leva em conta os verdadeiros sentimentos da vítima, pelo contrário, interpreta as suas reacções de acordo com os seus objectivos, distorcendo e manipulando a realidade da vítima. Segundo Salter (1995), a criança desenvolve crenças sobre quem ela é e sobre o que sente a partir das projecções do agressor gerando vergonha, confusão e conflito – “esta falsa auto-imagem internalizada emerge durante o processo terapêutico como uma voz distinta, ou tensão, em que o sobrevivente é de forma consistente auto-punitivo e auto-crítico. A voz internalizada do agressor incorpora três crenças a ser desmontadas durante o tratamento: que a criança não tem valor, desfrutou do abuso e é responsável por este” (p. 117). O padrasto comparava de forma pejorativa Maria a outras mulheres com quem tinha relações sexuais extra-conjugais, acusando-a de incompetência e culpa por não ter prazer. Como resultado, Maria sentia-se humilhada, incompetente e responsável não só pelo abuso como por não ter prazer com o padrasto.
Durante parte substancial do tratamento Maria sentia inveja das outras raparigas em termos de imagem e chegou a acordar com o namorado que este a ajudasse a criar uma nova imagem. A paciente hesitava entre uma imagem apagada, discreta que evitasse o olhar dos outros homens talvez sentidos como potenciais abusadores e o desejo em ser apreciada e até conquistada por um homem herói, um macho alfa, um salvador. Inicialmente, Maria sentia-se insegura do amor de João por si e ficava muito reactiva quando este cultivava relações sociais e familiares, bem como actividades exteriores à relação consigo. Mais uma vez, Maria entrava em conflito entre deixar João investir noutros interesses e pessoas e participar nestes, já que se sentia muito condicionada socialmente.
Ao longo dos 5 anos do tratamento, Maria mostrou-se muito co-dependente de João, que funcionava como porto de abrigo e colo da paciente. As ausências do namorado levavam a paciente a sentir-se abandonada e angustiada, actualizando o abandono terrível a que tinha sido sujeita durante o crescimento. A paciente podia então tornar-se agressiva contra o namorado ou contra si própria, chegando a bater-se. Por vezes, essa agressividade e revolta eram expressas contra o mundo em geral, alternando com momentos de isolamento e tristeza, em que se fechava em casa, recusando sair para o trabalho, aninhando-se com os gatos, refugiando-se dum mundo sentido como hostil. Estas mudanças de humor eram por vezes justificadas com o ciclo menstrual. Maria procurava frequentemente explicações biológicas para os seus estados de humor e, em particular, para as oscilações do desejo. Um desejo regulado pelo corpo e não pela mente já que as associações que o desejo lhe trazia eram demasiado penosas para serem toleradas.
No seu Diário Clínico (Dupont, 1995), Ferenczi apontou as principais defesas da adaptação psicológica e resultante psicopatologia dos sobreviventes de abuso sexual na infância que se aplicam ao caso de Maria – dissociação, clivagem do ego, identificação com o agressor, somatização das memórias do abuso e elementos masoquistas na constituição da personalidade. Para Ferenczi (1932), a dissociação era mais abrangente que uma série de memórias traumáticas – a pessoa como um todo entrava num estado de dissociação, surgindo a criança e as suas feridas reactivadas pelo setting terapêutico. Maria reactivava a sua criança na relação com João e na relação comigo, quando chegava ao consultório acabrunhada, procurando compreensão, contenção do seu afecto, alimento emocional (e racional) para enfrentar de novo a realidade adulta. Davies e Frawley (1991) enunciam a dinâmica inerente ao processo interno dissociativo destes pacientes:
Muitos sobreviventes de abuso na infância são confrontados com o dilema de terem de negociar os mundos externos e interpessoais de amizade, escola, autoridade, carreira, etc. apesar de relativamente cedo terem-se sentido traídos pela pessoa com quem tinham uma das suas mais íntimas relações das suas vidas. É notável observar o grau com que muitos destes sobreviventes puderam escrupulosamente erguer o que seria semelhante a um eu funcional, adaptativo e relacional, tendo na sua base uma criança abandonada e ferida. Este self adulto tem duas funções; permite ao indivíduo mover-se através do mundo dos outros com relativo sucesso e ao mesmo tempo preservar e proteger a criança abusada que procura reconhecimento, validação e compensação (p. 281).
Davies e Frawley (1991) sublinham a dicotomia com que os sobreviventes de abuso sexual na infância procuram tratamento para o adulto que deseja suceder, relacionar-se, obter aceitação e, em última análise, esquecer o passado e a criança, a qual, à medida que o tratamento evolui, encontra a sua voz, através da qual expressa as sua raiva e indignação perante o mundo. Inicialmente, Maria tinha despejado a sua história traumática para se poder livrar desta e focar-se na sua relação actual e no tal adulto que procura suceder e ser aceite pelos outros. Contudo, à medida que o tratamento avançava, a criança abusada e ferida vinha à superfície e expressava a sua culpa, vergonha, angústia e raiva dilacerantes.
Neste contexto, teve particular relevância para o tratamento a procura dum psiquiatra que pudesse não só estabelecer uma relação terapêutica de confiança com a paciente como prescrever a medicação adequada para a poder estabilizar. Tal ocorreu ao fim de dois anos e depois de várias tentativas com vários médicos e vários medicamentos intercalada com períodos em que Maria se sentia melhor e deixava de tomar a medicação. A adulta que desejava suceder, procurava um fim rápido para o tratamento, reflectindo o desejo sempre presente de ser uma mulher como as outras, já que não podia ter sido uma menina como as outras. Este desejo legítimo de “normalidade” e de largar a medicação era sempre comprometido pela criança abusada que irrompia à superfície através de sentimentos de raiva, ódio, tristeza, dor, muitas das vezes impossíveis de controlar pela paciente. Gradualmente, Maria ia fazendo um trabalho de aceitação de si própria e das suas vulnerabilidades e numa sessão comentou como tinha ficado surpreendida com a forma corajosa e confiante como uma pessoa com deficiência física encarava a realidade, estabelecendo um paralelo consigo mesma.
O psiquiatra supramencionado prescreveu um antidepressivo já quase em desuso (Anafranil), mas que funcionou em pleno para os aspectos depressivos e as insónias da paciente a que posteriormente foi acrescentado o Triticum para estimular o desejo. A experiência e idade avançada do médico possivelmente afastou qualquer receio de erotização ou perigo para Maria. O namorado também não correspondia à imagem fantasiada pela paciente do macho viril que a possuiria de forma arrebatadora. Pelo contrário, João parecia um bebé grande, um indivíduo com excesso de peso, carinhoso, inteligente, mas também com alguma insegurança resultante da sua imagem e história familiar. Eu completava este círculo de homens próximos nos quais a paciente confiava.
Apesar de Maria desde o início da terapia demonstrar uma total rejeição do padrasto, a paciente sentia-se atraída pela imagem do macho arrebatador, o que poderia ser entendido como resultado duma idealização inconsciente do padrasto segundo a teoria do self de Heinz Kohut. Este autor considera como parte fundamental do desenvolvimento do self o desejo de fusão com um objecto parental idealizado através do qual a criança adquire as qualidades e capacidades idealizadas dos cuidadores. Numa segunda fase do desenvolvimento, a proximidade com o objecto parental idealizado torna-se uma fonte de segurança, conforto e tranquilidade, funções que são progressivamente internalizadas na formação do self (Baker & Baker, 1987). Segundo Kohut (1971), a ocorrência de trauma durante este processo impede a internalização das funções e traços associados ao objecto idealizado (internalização transmutadora) que regulam os instintos agressivos e sexuais, mas o objecto permanece idealizado com o propósito de manter a homeostase narcísica.
A relação com a mãe também deixava transparecer uma idealização primitiva inconsciente da paciente. As críticas de Maria à mãe por vezes alternavam com situações em que a paciente se revia no comportamento desta. Durante a maior parte do tratamento Maria esperava pelo dia em que a mãe se separaria do padrasto e lhe poderia contar a verdade e assim recuperar o objecto idealizado (e perdido). A clivagem na relação com a mãe acabava por ser mais complexa do que na relação com o padrasto, que foi idealizado numa fase inicial mas rapidamente passou a ser sentido como alguém hostil e ameaçador. A mãe era crítica e distante e foi incapaz de proteger a filha, pactuando involuntariamente com o abuso, aspecto fundamental do tratamento para libertar a paciente da idealização inconsciente do objecto materno. Contudo, a mãe, muito dedicada ao trabalho, era a fonte principal de rendimento da família, tratando o padrasto e a filha como iguais ou como dois filhos. Poderíamos especular até que ponto a mãe criou espaço para que o abuso ocorresse ao negligenciar o seu papel tanto de mãe como de esposa. Maria referia frequentemente como a mãe estava centrada nela própria e era incapaz de a ver tanto a si como aos outros. Após o suicídio do pai, a família deste culpabilizou a mãe pelo sucedido e ostracizou a mãe e a paciente. Esta situação deu origem a uma aliança entre a mãe e a filha que poderá ter tido relevância na internalização de alguns dos traços da mãe por parte de Maria. Segundo Kohut, a idealização do objecto primário é gradualmente modificada através da experiência que a criança adquire das limitações dos pais (1971). Kohut nomeou este processo como “passagem através do objecto”, caracterizado pela diminuição da idealização e pela internalização de qualidades específicas das atitudes emocionais e respostas emocionais dos pais (Siegel, 1996). Este processo é diferente da internalização transmutadora, processo semelhante ao descrito por Freud em Luto e Melancolia (1915), em que a libido investida no objecto perdido é internalizada sob a forma de uma memória inconsciente – o objecto perdido é retido na memória e as suas qualidades tornam-se parte da personalidade.
Seguindo o paradigma teórico de Kohut, as falhas dos objectos do self de Maria não foram só ao nível do objecto idealizado, mas também ao nível do espelhamento das necessidades emocionais da criança, o self-objecto especular que promove um sentimento de valor intrínseco, aspecto decisivo no desenvolvimento da auto-estima, assertividade e ambição. Nem a mãe, nem o pai de Maria eram empáticos e capazes de atender os desejos genuínos e pessoais da criança. A paciente não se recorda dos pais brincarem consigo e uma das poucas imagens da sua infância é a de os pais a largarem em Belém numa pista para andar de bicicleta sem qualquer tipo de acompanhamento. Apesar de maior proximidade com o pai, Maria recordava que era ela que tinha de ir ao seu encontro, por exemplo no gosto que este tinha por carros e por conduzir. Maria respondeu a este abandono emocional com um lado perfeccionista nos estudos e no comportamento, procurando conquistar os pais abandónicos, cuja crise no casamento foi exposta à filha de forma crua e traumática. Ambos os pais tentaram manipular a paciente e puxá-la para o seu lado, expondo-a às constantes ameaças do pai de suicídio perante a iminência da separação da mãe. Este cenário de grande desamparo que seria agravado com a morte do pai deixou a paciente ainda mais exposta à aproximação sedutora do padrasto.
As falhas dos objectos primários resultaram assim em deficiências profundas nas funções do self de regulação da ansiedade, auto-estima e auto-confiança e produziram uma intensa “fome objectal”: procurar alguém não pelo que o objecto representa em termos de atributos próprios, mas objectos que possam substituir os segmentos do aparelho psíquico que estão em falta (Kohut, 1971). Maria estaria enquadrada no que Kohut denominou as “personalidades famintas de fusão”, pessoas com o self muito debilitado que tendem a controlar o objecto de forma a que este substitua as partes em falta (1971). Estas pessoas têm dificuldade em tolerar a independência dos objectos e necessitam da presença constante dos mesmos. Maria queixava-se frequentemente das ausências de João sentidas como um verdadeiro abandono que a remetia naturalmente para o abandono a que foi sujeita pelos pais e padrasto.
O “buraco objectal” que Maria transportava foi astutamente explorado pelo padrasto quando entrou na vida da paciente. Salter (1995) refere como os perpetuadores de abuso sexual planeiam os seus “assaltos” às crianças, aproveitando-se nomeadamente de filhos a cargo de mães, os quais procuram uma figura parental masculina. Crianças cujos défices resultantes das falhas ou vazios dos objectos primários são aproveitados pelo agressor para seduzir a criança, dando-lhe a atenção que ela tanto procura.
No artigo “Confusão de línguas entre o adulto e a criança”, Ferenczi (1933) descreve o carácter nefasto e paradoxal para a criança do encontro com o adulto que é sentido e fantasiado através duma concepção simbólica edipiana e a invasão do desejo perverso desse adulto, inundando o corpo e o psiquismo da criança duma excitação excessiva e inesperada. Aos 14 anos Maria estaria carente de pai e simultaneamente a começar a descobrir a sua sexualidade, o que torna esta “confusão de línguas” ainda mais complexa mas que não deixa de estar enquadrada na descrição de Ferenczi (1933) – as fantasias edipianas da criança, em particular a sedução do pai, facilitam o caminho para o adulto perverso se aproximar desta, mas quando a sexualidade genital deste impõe uma excitação excessiva, as fantasias inconscientes de sedução tendem a confundir-se com a realidade, provocando na criança um forte sentimento de culpa por se sentir responsável por ter provocado o desejo no adulto e de merecer as suas consequências. Para Ferenczi (1933), a contenção desta excitação massiva e da angústia resultante de emoções contraditórias levam à constituição de defesas que procuram evitar o desprazer através da identificação com o agressor que é transformado em agente intrapsíquico e da clivagem do ego. Ao tentar manter a vivência traumática isolada no psiquismo, sem assimilação relativamente ao restante dos conteúdos psíquicos, consegue-se controlar a angústia, mas decorre dessa atitude um desligamento (de extensão variável) entre o ego e a realidade que pode encontrar expressão na repetição perversa do abuso (Mendes & França, 2012). Esta estratégia em que o ego se submete às ordens do agressor para se tentar libertar da sua tirania e perseguição implacável representa o caminho da repetição compulsiva do trauma; outra configuração resultante da identificação com o agressor dá-se quando a parte frágil do ego que representa a criança abusada é projectada no exterior e torna-se alvo dos ataques e agressões do sobrevivente do abuso (Mendes & França, 2012).
Segundo Davies e Frawley (1991), o mundo interno dos pacientes que foram vítimas de abuso sexual na infância organiza-se em torno de três representações fundamentais: a vítima, o agressor e o salvador omnipotente idealizado. Maria projectava no namorado estas representações tal como ela as encarnava, quer na relação com este, quer com o anterior namorado, Joaquim. Durante inúmeras sessões, Maria tentava gerir o conflito que sentia relativamente a Joaquim, denunciando como esperava que este tivesse sido capaz de a compreender e apoiar. Por outro lado, reconhecia como tinha sido agressiva com este e como era compreensível que a relação não tivesse funcionado. Por último, tinha uma enorme dificuldade em aceitar que Joaquim a tivesse deixado e, ainda pior, que tivesse escolhido outra pessoa, o que era sentido como uma traição. No caso da relação com João, a paciente encontrou neste o colo tão desejado, mas tal reconhecimento não a impedia de por vezes de atacar o namorado, criticando as suas vulnerabilidades e, sobretudo, queixando-se dos momentos em que este a deixava só (entregue ao seu desamparo interno).
Em todas as relações significativas descritas por Maria, quer com o psiquiatra que a voltaria a abusar, quer com Joaquim que a “abandonaria e trocaria por outra”, quer com o actual companheiro, Maria procura repetir um cenário através dum processo psíquico descrito por Freud em Além do princípio do prazer (1920) por compulsão à repetição. Segundo Freud, a compulsão à repetição serviria para o aparelho psíquico dominar uma situação cujo grau de excitação seria impossível de conter pelos mecanismos protectores do aparelho mental. Partindo da observação da importância da repetição de elementos simbólicos nos jogos das crianças e nos sonhos traumáticos em que o paciente revivia o cenário do trauma, Freud chegou à hipótese da explicação da função da compulsão à repetição através do trauma.
Dominar a ansiedade e o desprazer causados pelo evento traumático pressuporia transpor a excitação do estado livre para um estado ligado, submetendo-a a outro regime de funcionamento e circulação. Só após essa ligação ser estabelecida é que o princípio do prazer poderia passar a vigorar. A compulsão à repetição seria uma forma de adquirir controlo sobre representações internas “indomáveis”, demasiado excitatórias, que o aparelho mental repetidamente tentaria dominar através duma tentativa de ligação (Caropreso e Simanke, 2006). No caso de Maria, esta ligação terá sido concretizada através das defesas da clivagem, idealização e identificação com o agressor e as suas diversas configurações. Estes mecanismos de defesa foram resultado não só da relação com o padrasto abusador, mas também da relação com a mãe crítica e distante ou o pai deprimido e suicida. Na tentativa de criar novas ligações, evitar o desprazer e controlar a angústia, Maria representava os vários papeis introjectados, vítima, agressor ou salvador, projectando partes ou o todo nos objectos externos.
O processo terapêutico de Maria foi necessariamente um processo de preenchimento do vazio objectal de que a paciente sofria. O encontro com o terapeuta foi essencialmente o encontro com alguém que finalmente estava disponível para a ver, consolar, compreender e aceitar, instilando constante esperança num futuro mais risonho. Para além de atender às necessidades emocionais da paciente não preenchidas durante o crescimento, a relação terapêutica foi também a relação com um objecto completo, não clivado. Apesar da necessária idealização numa fase inicial do tratamento foi fundamental que Maria olhasse para mim como alguém de alguma maneira semelhante a ela, com vulnerabilidades e capacidades que a reasseguravam de ser possível a sua recuperação através duma identificação com o objecto/terapeuta e no qual pudesse confiar.
Para além da identificação com o terapeuta como objecto inteiro e da introjecção deste como objecto afectivamente bom, foi decisivo que Maria também me sentisse como objecto de comutação (Matos, 2001) – “objecto tolerante, aberto e estimulante: que aprecia e mesmo solicita o desenvolvimento e realização livres e específicas do próprio” (p. 42), com vista a alcançar a desejável autonomia emocional.
Quando Maria se mostrou preparada (ao fim de três anos), foi possível investigar o abuso nos seus detalhes mais sórdidos e libertá-la em grande medida da culpa e vergonha associadas a este, que perpassavam de forma recorrente nos sonhos da paciente. A compreensão do lugar da criança Maria no quadrilátero adverso das relações com o pai, mãe e padrasto permitiu à paciente encontrar maior liberdade para se aceitar a si própria enquanto adulta e ganhar maior autonomia na relação com o namorado e com os outros em geral.
A separação entre a mãe e o padrasto no último ano da terapia permitiu-nos preparar o terreno para Maria poder finalmente revelar à mãe o abuso e compreender que, apesar do choro e raiva expressos pela mãe, esta não deixou de se rever no papel de vítima, chegando mais tarde a comentar como a filha tinha tido mais tempo do que ela para processar o abuso. Esta falta arrepiante de empatia para com a paciente ajudaria paradoxalmente Maria a desligar-se da mãe e a não perdoar as falhas terríveis dos seus cuidadores (o perdão implicaria a assunção de culpa ou responsabilidade por estas falhas). A libertação da expectativa de transformar a mãe (ou recuperar o objecto materno idealizado) tornou Maria mais livre para percorrer o seu caminho e escolher em quem desejava confiar e adoptar, nomeadamente João com quem já vive há 6 anos e a família deste por quem desenvolveu laços afectivos.
O reforço da auto-estima da paciente, a aceitação e valorização das suas características relativamente ao que observava com inveja na normalidade dos outros contribuíram de forma decisiva para que Maria construísse uma imagem positiva de si própria, que nunca passou por uma transformação do seu visual mas por uma aceitação da sua história revista numa outra perspectiva, libertadora da culpa e dos sentimentos de inferioridade. Na fase final do tratamento, Maria sentia que tinha até vantagens sobre os outros, valorizava o seu apreço pelos animais, a defesa da ecologia e de uma sociedade mais justa. As suas posições políticas e sociais reflectiam a necessidade de reparar a injustiça de que tinha sido vítima e foram simultaneamente resultado e motor do eu reconstruído ao longo do processo.
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Siegel, A. M. (1996). Heinz Kohut and the psychology of the self. New York: Brunner-Routledge.
A case of abuse, history and clinical analysis.
Presentation of a clinical case of prolonged sexual abuse in adolescence whose dimensions and main defenses of psychological adaptation are examined according to theoretical formulations by Salter, Ferenczi, Davies and Frawley, Kohut and Freud. e author sought to establish relationships between the various theories allowing identification of the fundamental axes in treating survivors of sexual abuse in childhood and adolescence.
sexual abuse • trauma • dissociation • repetition compulsion