Revista | Vol 6, N. 1, Junho 2015

Sentimento de culpa e amadurecimento

Desde finais dos anos 80 e princípios dos anos 90 do século passado, com o aparecimento das ecografias, fui-me interessando cada vez mais pelos estudos do feto e do bebé e constatando que os adultos que tinha no divã, os adolescentes que recebia e as crianças com quem me relacionava eram todos pessoas que tinham alguma coisa de bebé que precisava de ser cuidada. Desde então, só trato de bebés que passaram por várias vicissitudes e que tenho de cuidar de formas diferentes, consoante as suas “necessidades”. 

A partir de 2007, regressei às minhas origens e voltei a trabalhar com crianças e jovens, agora chamados em risco, em que o risco maior foi não terem sido nem serem compreendidos, aceites e investidos pelos outros que os circundavam. 

Com estas crianças e jovens acontece frequentemente depararmo-nos com um estilo relacional que parece não comportar um sentimento de solidariedade, piedade, compaixão e em que parece, por isso, não haver qualquer sentimento subjacente de culpa. 

Em 1956, Winnicott fez uma conferência na comemoração do centenário do nascimento de Freud, publicada em 1958, com o título Psicanálise do Sentimento de Culpa, em que mostra que esse sentimento é um resultado do amadurecimento da vida psíquica do bebé. A sua inibição é um fenómeno posterior que se constitui como defesa ou como uma fixação num estádio muito precoce do desenvolvimento, que não permitiu a expressão do “gesto espontâneo”, neste caso entenda-se agressivo, do bebé. 

A este propósito, parece-me fundamental o trabalho da Profa. Doutora Elsa Oliveira Dias intitulado Winnicott: Agressividade e teoria do Amadurecimento, publicado em 2000, que desenvolve este tema de uma forma muito completa, o que nós estamos impedidos de fazer nesta comunicação. 

Com efeito, como diz Winnicott, a possibilidade de consciencialização e expressão de sentimentos agressivos, recebidos como alguma coisa de natural no bebé, vai permitir que ele sinta a indestrutibilidade da mãe que os aceita como algo que está ligado ao prazer e ao amor que ela lhe proporciona. Se esses sentimentos agressivos são sentidos pela mãe como algo de mau, então o bebé sente-se impedido de os exprimir de forma directa, passando a utilizar outros comportamentos que vão desde a inibição da relação, até um estilo relacional que, com a continuação, se pode caracterizar por agressões violentas provenientes das frustrações acumuladas. 

É importante frisar que esta agressividade do bebé não é intencional e que decorre natural e espontaneamente do imperativo de satisfazer as suas “necessidades” de sobrevivência. É por isso que, enquanto Klein (1946) pensava que o ataque ao corpo da mãe tinha um objectivo agressivo, Winnicott (1958) prefere chamar-lhe, em minha opinião muito bem, impulso amoroso primitivo. É que o impulso amoroso primitivo comporta agressividade, o que implica imediatamente pôr de parte a ideia muitas vezes expressa socialmente de que a agressividade é um sentimento e/ou um comportamento negativo. 

A agressividade não é boa nem má. Simplesmente é. O que pode ser bom ou mau são as circunstâncias e a forma como ela se manifesta. 

Pouco a pouco, o bebé vai consciencializando que essa relação com a mãe, que lhe dá prazer e conforto, também contém elementos agressivos e não é preciso esperar muito tempo para podermos observar que o bebé se interessa e preocupa com os resultados do seu amor pela mãe. Ao seu nível de maturação, o bebé vai elaborando e integrando estes dados e vai desenvolvendo capacidades de reparação, como se se tratasse de um pedido de desculpas, quer pelos diversos sorrisos que faz, quer pelos ruídos que emite, quer ainda pelas carícias desajeitadas que faz à mãe. 

O sentimento de culpa começa então a aparecer como resultado de um processo reflexivo incipiente na relação dual, muito anterior à relação triangular. Como já Freud (1923) disse, o sentimento de culpa deriva da intenção inconsciente e não do acto, tem mais a ver com uma ética do que com uma moral, isto é, faz parte do processo de desenvolvimento e surge naturalmente no ser humano, num ambiente suficientemente propício para isso. Quando contactamos com pessoas que parecem não ter sentimentos de culpa, teremos por isso de pensar onde, na sua história pessoal, se deu uma falha que não permitiu o aparecimento ou o desenvolvimento desses sentimentos, tornando-as violentas e anti-sociais, espalhando a agressividade indiscriminadamente e manifestando uma impulsividade não controlada que frequentemente as conduz à delinquência. Essa falha, se não aconteceu logo na relação primária, apareceu no ambiente em que a criança foi crescendo, que foi altamente frustrante e intolerante perante as formas de manifestação da sua agressividade. Frequentemente, a falha começa na relação primária e é repetida e reforçada pelo meio ambiente. Compreender e aceitar é também uma forma de amor que pode permitir recuperar os movimentos suspensos no processo de desenvolvimento e possibilitar um recomeço. Era a isto que se referia M. Ballint (1968) quando falava do new beggining. É também essa a proposta de Winnicott. 

Contudo, não é uma tarefa fácil e, sobretudo, nem sempre é possível. 

Em 1947, no seu trabalho O ódio na contratransferência, Winnicott refere o caso de uma criança de 9 anos de idade, institucionalizada em Londres por absentismo escolar e por realização de fugas de casa desde os 6 anos. Numa das fugas da instituição em que estava, foi apanhado pela polícia e levado para uma esquadra perto da casa de Winnicott, tendo ele e a sua mulher resolvido acolher a criança em sua casa, onde permaneceu durante uns meses. Winnicott refere que foram 3 meses terríveis e que muitas vezes teve de recorrer a atitudes de tipo comportamental, como pô-lo fora de casa até ele se acalmar. Nesse momento, porém, exprimia-lhe verbalmente a raiva que sentira, numa tentativa de controlar a sua própria agressividade e que a criança sentisse o risco que corria, se não com ele, na relação com os outros. 

Esta criança foi posteriormente para um reformatório e Winnicott diz que ainda conseguia manter com ele uma relação ocasional estável, ainda que distante. 

Em 1954, no seu artigo Os aspectos metapsicológicos e clínicos da regressão no setting analítico diz muito claramente que os desejos dos pacientes mais perturbados representam “necessidades do eu” e não desejos pulsionais. Ao contrário da teoria clássica, eles devem ser atendidos, gratificados de uma maneira ou de outra, antes que alguma mudança possa acontecer. 

Stephen Mitchell (1991) em Wishes, Needs and Interpersonal Negotiations pensa que as decisões acerca de como responder aos desejos dos pacientes são feitas essencialmente na contratransferência, entendida amplamente, por uma reacção intuitiva relativamente às exigências do paciente. Umas vezes isto parecerá correcto, outras não. A questão é de como avaliar se foi correcto ou não. Mas, como diz Mitchell (Ibidem), estas decisões, em princípio, não são tomadas impulsivamente e resultam de um processo de reflexão contínuo que assenta mais na experiência subjectiva do terapeuta, do que na discriminação ilusoriamente objectiva de algo interno do paciente. 

Esta perspectiva constitui um desenvolvimento da posição teórica e clínica de Winnicott, já que distingue entre desejo e necessidade, o que, apesar de tudo, parece ser uma distinção fundamental que permite uma clarificação da diferença entre o ponto de vista pulsional e o ponto de vista relacional. Mais, centra e caracteriza a relação como alguma coisa de intersubjectivo, onde a empatia só é possível num espaço íntimo em que várias histórias se cruzam e estão presentes em cada um dos intervenientes, permitindo, nesse cruzamento, construir uma nova história. 

Isto implica, como diz Owen Renik no seu trabalho intitulado Intersubjectivity, erapeutic Action and Analytic Technique, publicado em 2007, que, ao aceitarmos a intersubjectividade, tenhamos presente que toda a nossa participação na relação contém, em maior ou menor grau, mais ou menos explicitamente, elementos contratransferenciais que têm de ser levados em linha de conta. 

Esta perspectiva, que já Edmund Husserl, filósofo do século passado, havia assinalado quando dizia que era preciso ter sempre presente que o objecto de conhecimento era também sujeito, é agora levada para o plano relacional, pondo em causa os princípios da psicanálise clássica do anonimato e da neutralidade. 

Depois de expor o extenso caso clínico de Ellen, Owen Renik afirma: “Contudo, o mais fundamentalmente importante, em minha opinião, é que a perspectiva intersubjectiva patenteia claramente o problema metodológico da circularidade na investigação clínica - pelo facto de o analista ser um participante-observador - e a necessidade de remediar esse problema pela organização da situação clínica analítica, ainda que imperfeitamente, no sentido de testar hipóteses empíricas. Este remédio requer a identificação de uma variável dependente, desconectada das teorias dos analistas, para ser rastreada” (Renik, 2007, p. 1561). E, mais adiante, acrescenta: “De outra forma, as nossas controvérsias sobre a técnica permanecem no domínio da retórica e das preferências pessoais” (Ibidem, p. 1562). 

Tudo isto tem a ver com o facto de que quando não é visível o sentimento de culpa numa criança, num adolescente ou mesmo num adulto, não quer dizer que haja uma incapacidade de sentir a culpa. Houve, certamente, uma falha no desenvolvimento precoce e é aí que temos de a procurar. 

A punição e a recriminação, frequentemente praticadas nestes casos, só podem causar mais revolta pelo sentimento de injustiça e de incompreensão que a medida retaliativa provocou. 

Isto não quer dizer que não tenham de se estabelecer limites. Há que não confundir necessidades precoces que têm de ser satisfeitas, com desejos ou caprichos que constituem autênticas manipulações, ou com formas de agressão violenta e anti-social que, sobretudo em adolescentes e em adultos, não podem ser permitidas. 

Peter Fonagy, na linha de Bowlby e Winnicott, aponta como causas dos distúrbios de personalidade os vários estilos de vinculação (attachment) que deixam a criança incapaz de modular e interpretar os seus próprios sentimentos e os dos outros. 

Em Psychotherapy for borderline personality desorder: Mentalization-based treatment (2004), Peter Fonagy aponta como causa para a patologia borderline uma ausência de espelhamento contingente e marcado durante o desenvolvimento, com início no estilo de vinculação

Já em 2002, em Affect regulation, mentalization and the Development of the Self, Fonagy assinala que uma das consequências de uma vinculação de ciente se traduz numa falta de capacidade de mentalização, considerada como a capacidade de construir e utilizar representações dos estados emocionais próprios e dos outros. Neste contexto, a falta do sentimento de culpa teria a ver também com a relação muito precoce do bebé com as figuras parentais ou com o meio, na linha do pensamento de Winnicott. 

Em 16 de Fevereiro de 2013, relatei-vos o caso de um jovem delinquente de 21 anos que iria eventualmente ser posto em liberdade condicional dois dias depois. Assim aconteceu e, como não tinha mais ninguém, recebi-o num anexo da minha casa com a namorada, temporariamente. 

Apesar das dificuldades de relação, o jovem ia progredindo na sua inserção social e, um mês e meio depois, em Abril, acabei por lhe alugar uma casa perto de mim, onde ele pudesse viver com a namorada, com a responsabilidade de arranjarmos um emprego, mesmo precário, que lhe permitisse ir-se tornando independente. Conseguiram-se para ele subsídios de renda de casa e de reinserção social que lhe permitiam, juntamente com o ordenado da namorada, acorrer às despesas correntes. 

Conseguimos sucessivamente quatro empregos, em trabalhos de natureza diferente, mas ele não conseguiu mantê-los por mais de uma semana. Com paciência, fui-lhe mostrando que o seu estilo relacional provocava respostas emocionais desfavoráveis e que os seus desaires eram involuntariamente provocados por ele e pelas suas atitudes. A namorada que era professora primária e trabalhava a contratos, que era divorciada e tinha dois filhos pequenos, não conseguiu renovar o contrato e teve de regressar a casa dos pais onde estavam os filhos, e que é longe de Lisboa. Diga-se, em abono da verdade, que a relação entre eles era marcada, quase diariamente, por grandes discussões e contínuos mal-entendidos que nós tentávamos clarificar. 

Nestas circunstâncias, este jovem entrou em descontrolo total, deixou de procurar emprego e os subsídios que recebia passaram a ser gastos no próprio dia porque deixou de me falar do assunto e zangava-se comigo sempre que eu tentava abordar o tema. Deixou de pagar as rendas, mas ocultava-me o facto e passou a mentir descaradamente com histórias que ninguém no seu perfeito juízo podia aceitar. Quando lhe chamávamos a atenção para o facto de que essas histórias não podiam ser bem assim, comecei a perceber que, mais do que tomar consciência de que estava a fazer mal a si próprio, ficava muito irritado. A tentativa de utilizar a mentalização não resultava. 

Um dia, já em Janeiro de 2014, 11 meses depois de ter saído em liberdade condicional, numa dessas nossas conversas, foi de tal modo violento que recorreu à ameaça física e eu tive de me impor, dizendo-lhe que não lhe admitia aquela linguagem, que saísse imediatamente de minha casa, mas que, apesar de tudo, podia sempre contar connosco, que não lhe queríamos mal, que continuaríamos a fazer tudo o que estivesse ao nosso alcance para o ajudar e que, quando precisasse, telefonasse. Assim aconteceu e telefonou ou apareceu umas três ou quatro vezes. Soube que saiu da casa que eu lhe tinha alugado porque o senhorio, conhecido meu desde há muitos anos, me veio pedir as rendas em atraso, e que tinha ido para uma casa, também perto da minha, que uma instituição pública lhe tinha conseguido. Desde há dois meses não sei nada dele. Certamente, logo que necessitar, voltará a contactar, mas só voltará por necessidades de segurança ou de dinheiro. 

Na expressão de Meltzer (1975), o espaço interno deste jovem é sobretudo bidimensional. Só existe o “dentro dele” e o “fora dele”, tornando a relação muito difícil e a mentalização e a reflexão impossíveis. 

Note-se que nunca foi meu paciente, nem eu nunca quis ser seu terapeuta. Apenas por amizade, ingenuamente pensei que poderíamos ajudá-lo na sua integração social pelo afecto, a proximidade e a mentalização. 

Tenho, no entanto, de reconhecer que quando não se tem em consideração o espaço interno do outro, deixa de ser possível a intersubjectividade e compromete-se a relação. A mentalização constitui um processo muito útil e necessário, mas muitas vezes não é possível, como nos disse, em 1993 Peter Fonagy. 

A diferença entre este caso e o de Winnicott é que aqui não se trata de uma criança de 9 anos que, para além de disparates, rebeldias e provocações, não constituía um perigo social e familiar, ainda que já fosse de prognóstico muito reservado. Aqui, trata-se de uma criança com idade cronológica de adulto, socialmente não integrada, inteligente, mas que recusa ou é incapaz de acesso à subjectividade do outro. Não consegue perceber e sentir as suas necessidades, que outros poderiam satisfazer, porque só consegue funcionar ao nível dos desejos, exigindo uma satisfação imediata. Aqui aparecem os disparates associados à arrogância e à falta de resistência à frustração - as características que Bion (1955) atribuía ao funcionamento psicótico. 

É este, infelizmente, o caminho que frequentemente seguem as pessoas que, por falta de sentimento de culpa, se tornam anti-sociais. Quando estes casos não são trabalhados muito precocemente, ainda durante a primeira infância, a sua recuperação mais tarde é praticamente impossível. 

O tempo de que dispunha para esta comunicação não me permitiu aprofundar suficientemente estes temas tão complexos e, por isso, simplifiquei propositadamente muitas questões importantes, aqui apenas apontadas. Espero, contudo, ter conseguido que as pessoas que tiveram a paciência e a amabilidade de me ouvir se sintam estimuladas a continuar a pensar e a investigar estes temas.

 

Referências Bibliográficas 

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Title

Guilt and maturation. 


Abstract 

Based on the work with children and young people at risk in the last few years, the author makes a revision of Winnicott ́s ideas on feeling of guilt and its origin, confronting and completing them with contemporary authors like Stephen Mitchell, Peter Fonagy and Owen Renik.