O psiquismo dos seres humanos liga-se intimamente com o psiquismo dos seus cuidadores, sendo por eles fortemente determinado. É no seio de uma relação íntima com os seus cuidadores que o ser humano irá desenvolver a sua personalidade; mas para que exista um desenvolvimento harmonioso da mesma será indispensável a aquisição de um sólido sentimento de valor próprio e competência (é o chamado amor-próprio). Actualmente já sabemos (por exemplo, Altman et al., 2010; Coimbra de Matos, 2011) com bastante certeza que esse sentimento de valor e competência pessoal desenvolve-se mediante a prestação de cuidados que respeitem e satisfaçam adequadamente as necessidades emocionais da criança. Caso esses cuidados não sejam proporcionados da forma correcta, a auto-estima da criança desenvolver-se-á deficitariamente com as consequências nefastas que sabemos.
Através de um caso clínico que seguimos em análise (Susana), pretendemos evidenciar a causalidade existente entre as atitudes relacionais dos pais da paciente na sua infância e juventude (e também presente) e os seus efeitos no psiquismo desta, procurando destacar algumas estratégias de sobrevivência psicológica que a mesma utiliza para fazer face a um sentimento de profunda desvalorização pessoal que transporta dentro de si.
No desenvolvimento psicológico humano, devido à existência de mecanismos identificativos e introjectivos (vide Coimbra de Matos, 2002a), a aquisição de uma imagem positiva de si próprio (e dos outros) está impreterivelmente dependente da qualidade da relaçãoI que a criança recebe dos pais. “O Homem é essencialmente um animal narcísico – que se admira e precisa de ser admirado” (Coimbra de Matos, 2001, p. 239) e como tal necessita de uma relação em que sinta que recebe apreço e afecto para se sentir reconhecido e valorizado por parte de quem dele cuida. Consoante se sente importante aos olhos dos seus cuidadores, assim a criança se vai sentir internamente, mediante a interiorização dessa relação externa valorizante. Daí a extrema importância de se sentir amada pelos pais para a sua auto-estima e equilíbrio psicológico. Se as necessidades narcísicas da criança/jovem (necessidades de amor, empatia, valorização, reconhecimento, estímulo) não são respeitadas, a criança fica triste, deprimida, ansiosa, insegura e revoltada (Kohut, 1962).
Com a expressão “figuras parentais” referimo-nos genericamente aos cuidadores que são responsáveis pela existência e desenvolvimento da criança, com os quais ela estabelece vínculos emocionais fortes (porque íntimos e prolongados no tempo) e dos quais depende emocionalmente. Caso os cuidadores sejam psicologicamente doentes (presença de psicopatologia num ou nos dois elementos do casal), irão comportar-se de forma desadequada (de forma agressiva, ambivalente, depressivante) para com a criança e não irão responder adequadamente às necessidades psicológicas/emocionais/narcísicas dela, fragilizando-a psicologicamente.
À semelhança de outros autores no seio da psicanálise contemporânea (Coimbra de Matos, 2011; Pedro, 2012), eu próprio tenho vindo a interessar-me e reflectir sobre a natureza profundamente relacional das motivações humanas enquanto factor determinante do seu bem-estar psicológico (Balrôa, 2015), com especial foco no impacto das relações parentais na constituição do psiquismo dos indivíduos.
Não são os genes, nem as fantasias, nem os impulsos libidinais (Eros e Thanatos como em tempos Freud julgou [Freud, 1996b]) que determinam a motivação e o comportamento do sujeito, mas sim o ambiente relacional (i.e., a personalidade dos pais) no seio do qual o indivíduo vive e se desenvolve psicologicamente. Desta forma, a perturbação psicológica do indivíduo resulta directamente do tipo de ambiente humano ao qual foi exposto. E mediante o conhecimento dos sintomas e dos comportamentos actuais do paciente podemos deduzir o tipo de relações (saudáveis ou patológicas) às quais o indivíduo esteve(/está) exposto. O objectivo último desta constatação não é culpar as figuras parentais, mas sim reconhecer o papel desempenhado pelas mesmas na estruturação do psiquismo do sujeito, sublinhando a extrema importância do funcionamento psicológico dos cuidadores como factor condicionante do funcionamento psicológico dos filhos (promotor da saúde ou doença psicológica dos filhos). Em sentido complementar, também podemos reconhecer que a forma como os pais se relacionam com os filhos é um factor preditivo da evolução psicológica destes últimos, uma vez que “(...) o carácter forma-se na interacção relacional com o/s objecto/s de relação privilegiada da infância (...).” (Coimbra de Matos, 2002b, p. 211). “Senão é fácil, ou é mesmo impossível, definir uma patologia específica dos pais que determine patologia específica dos filhos, podemos porém afirmar, hoje em dia, que as perturbações mentais de um determinado indivíduo são provocadas pelas perturbações mentais do meio humano em que a sua personalidade se desenvolveu – concepção ambiental da psicopatologia” (Coimbra de Matos, 2002b, p. 363). Os pais, enquanto figuras de bondingII e vinculação, através do seu comportamento serão o modelo de relação que será interiorizado, através do qual a criança adquirirá estratégias de regulação do seu afecto e comportamento (Schore, 2001), desenvolvendo os seus esquemas relacionais.
Já dispomos de suficientes evidências científicas (Coimbra de Matos, 2001, 2011) para podermos conceber a saúde mental e a psicopatologia como situando-se num continuum entre dois pólos relacionais. O predomínio de cada pólo acarretará diferentes consequências psicológicas para o narcisismo do indivíduo:
Pólo narcisante (alta preocupação com a afectividade do sujeito e pouca imposição do narcisismo do objecto): irá promover a saúde mental do indivíduo;
Pólo desnarcisante (baixa preocupação com a afectividade do sujeito e alta imposição do narcisismo [compensatório] do objecto): irá promover a psicopatologia do indivíduo.
Em função do tipo de cuidados parentais característicos de cada um dos pólos, assim as consequências serão ao nível da constituição de uma boa auto-estima ou baixa auto-estima. As figuras parentais através do tipo específico de relação que estabelecem com o sujeito irão ser a matriz que moldará a percepção de si e dos outros. No fundo, a falha narcísica resulta sempre de relações parentais falhadas (porque desnarcisantes) que, devido às características das mesmas, não possibilitaram que o sujeito se sentisse valorizado e amado e assim adquirindo (interiorizando através dos mecanismo introjectivos) um sólido e estável sentimento de segurança afectiva (i.e., um objecto interno securizante).
Seguidamente descreveremos um caso clínico que seguimos em análise que permitirá evidenciar as consequências de relações parentais desnarcisantes.
O caso clínico que apresentarei é um caso que sigo em análise há 9 meses, em sessões semanais. A Susana (nome fictício) tem 35 anos, é casada e tem 2 filhos. Trabalha na área da justiça.
Na consulta inicial chegou bastante deprimida: muito triste, abatida e chorosa, com pouca esperança. A sua fisionomia transmitia também o seu abatimento profundo: corpo magro, cara muito magra, com olheiras profundas e voz muito rouca e arrastada. Sobre os motivos que a levaram a procurar terapia, refere que a sua vida corria bem até que se apaixonou loucamente por um colega de trabalho e que, por este não lhe ter correspondido, entrou num estado de profunda tristeza, sentindo-se perdida, sem saber o que fazer à sua vida... E não sabe o porquê de ter ficado nesse estado, culpando-se muito por se ter deixado chegar a esse ponto. Admira-se de se ter apaixonado pelo colega, pois considera que não tinham relação suficiente que justificasse esse grande estado de paixão e obsessão que passou a sentir por ele. Explica que começaram aos poucos a partilhar aspectos das suas vidas e que uma relação de confidência foi-se criando entre os dois (a Susana sentiu que tinham muitos gostos e interesses semelhantes), e quando se apercebeu, estava perdidamente apaixonada por ele. Um dia ele resolve surpreendê-la: sem a avisar, vai à cidade onde ela vive (ele vive numa cidade localizada a várias horas de distância) e liga-lhe para ela ir ter com ele. A Susana não consegue ir, mas refere que esse gesto foi algo que a marcou muito, pois sentiu que ele, ao fazer uma distância tão grande para a ver, certamente gostaria muito dela. Com este colega esperava viver uma verdadeira história de amor... Mas, para evitar que ela destruísse o casamento (ao ter uma relação extraconjugal com ele), ele (o colega de trabalho) decide afastar-se. A Susana fica desconsolada. Nas suas palavras: “Eu fiquei muito mal. Ele seguiu em frente e eu não consegui. Eu não consigo conceber que ele não esteja a sentir exatamente aquilo que eu sinto por ele. Mas a verdade é que não está e isso custa-me a aceitar! Se ele me dissesse, eu acho que deixava tudo! Divorciava-me! Uma pessoa que eu não conheço! Isto é uma ilusão, eu sei: eu tenho noção disso! Eu acho que isto é uma ilusão porque eu apaixonei-me por uma pessoa, ou o que quer que eu sinta por ela, que não é real... que não existe... não há lugar para ele na minha vida, mas por alguma coisa isto aconteceu, não é?! Acho que também gostava de perceber isso! Alguma coisa não está aqui a correr bem comigo. (...) Eu sou mesmo tola e estúpida! Eu sempre fui de amores assolapados. Sou muito dada a esse tipo de exageros... Eu agora sinto-me como se tivesse 16 anos, pois fico num estado de paixão e loucura por ele... (...) Não gostava de ser tanto assim. Eu no fundo sou uma romântica! (...) Eu sou assim: insatisfeita. Sempre senti que faltava alguma coisa... Ou sempre andei a perseguir alguma coisa que eu não sei o que é... alguma coisa extraordinária... e se calhar foi isso que vi no Eduardo. Vi assim o vislumbre de algo extraordinário... o que se calhar não é, ou então para mim foi em certo momento... Eu sempre tive muita fome de sentir e viver as coisas ao máximo (...). Eu fiquei completamente deslumbrada!...”.
A Susana fica ainda mais triste quando toma conhecimento que ele, entretanto, inicia uma relação com uma colega sua: uma colega da faculdade que a Susana sempre admirou pela sua beleza e elegância... A Susana diz-me que esta situação de amor não correspondido é uma repetição do que sempre aconteceu no seu passado com as suas relações amorosas, que sempre foram muito conturbadas (“Já não é a primeira vez que me acontece este tipo de obsessões”): desde o início da adolescência, que sempre que gostava de algum rapaz, apaixonava-se perdidamente e depois ou era rejeitada ou não era correspondida na mesma medida em que desejava (i.e., da mesma forma intensa), ficando depois a sofrer muito: ficava muito desiludida e triste por não ser correspondida. E insistia nessas relações para que eles gostassem de si, quase implorando. No que diz respeito às relações, refere que se ilude e desilude-se muito facilmente e que estas suas dificuldades já são anteriores a esta sua paixão: “Antes do envolvimento psicológico eu já tinha esta ânsia de algo mais e esta fome de emoções, fome de qualquer coisa nova na minha vida (...). Mas também tenho sentido necessidade de fuga: de estar sozinha, mas mais nos últimos anos”. De referir que a sua enorme carência afectiva implicou grande insegurança, instabilidade e indecisão nas relações íntimas (juntamente com a procura de uma relação altamente idealizada) levou-a ter alguns envolvimentos extraconjugais, dos quais se arrepende profundamente.
Em relação ao marido, gosta muito dele, pois “(...) ele é uma pessoa extraordinária, sinto-me bem e segura com ele”: sente-se culpada por “isto” que lhe aconteceu (ter-se apaixonado por outro homem), hesitando várias vezes em revelar a verdade ao marido, mas não o faz porque ele perderia toda a confiança que sempre depositou nela. Devido a questões profissionais, o marido só está em casa aos fins-de-semanas – facto que a Susana associa a sentir-se muito sozinha com os filhos: “(...) Quando ele se vai embora, as coisas ficam piores... voltam os fantasmas. Quando estou com o meu marido e com os miúdos, o fantasma está lá mas de uma forma muito mais incipiente do que quando eu fico sozinha... (...) Só que o apelo da emoção e da aventura e da... O Sr. Dr. saberá tão bem como eu quando uma pessoa se apaixona, não é?! É tudo cor-de-rosa, é tudo bonito, tudo brilha. As coisas ganham uma beleza!... e ele [colega por quem se apaixonou] tirou- -me o tapete de baixo dos pés!”.
Ao descrever o ambiente familiar na sua infância começamos a entender melhor as bases do seu passado afectivo. A Susana refere que os pais tinham uma relação muito conturbada: discutiam e gritavam constantemente um com o outro, tendo chegado por várias vezes a presenciar violência física (“O meu pai gritava à minha mãe. A minha mãe não gostava que ele lhe falasse daquela maneira e respondia, e depois gerava-se uma discussão”). Diz que não foi uma criança particularmente feliz no meio “daquilo tudo”: “Eu em miúda era muito reservada e muito fechada em mim mesma... lia muito... era um bocado anti-social, se é que isso se pode dizer: tinha poucos amigos, mas depois de ir viver para outra cidade mudei muito: sentia-me lá melhor; tinha lá familiares e acabei por desabrochar um bocado e tive uma adolescência muito feliz nessa cidade, com muitos amigos”.
Ao fim de algumas sessões esta visão da adolescência feliz muda, pois recorda-se que a partir do início da adolescência os pais delegaram nela a tarefa de cuidar do irmão (3 anos mais novo), pois consideravam-na bem-comportada e ajuizada (o inverso do que pensavam sobre o irmão), e que zelaria para que ele não se metesse em problemas fora de casa, pois era muito “problemático”.
Diz-me que o irmão teve um percurso de vida complicado com comportamentos desajustados e dependência de drogas; mas que nos últimos anos não consome. Refere que teve que ser “mãe do irmão” para cuidar dele e ver se ele não consumia drogas nem se metia em problemas. Diz que essa fase foi muito desgastante: “Levei muitas noites sem dormir. Eu não dormia enquanto o meu irmão não chegasse e aquela parte em que ele consumia, eu sentia aquele sentimento de impotência: “O que é que eu posso fazer para o ajudar, como o posso salvar?. Mas tem que ser ele a salvar-se a ele próprio, não é? Eu controlava-o, andava atrás dele: onde é que ele estava, com quem é que ele estava...? Com quem estava a falar? Será que sim? Será que não? Foram também momentos muito desgastantes para mim!... Essa parte de ser irmã, mas ao mesmo tempo mãe também me desgastou um bocadinho” (de referir que os pais lhe impuseram essa tarefa...).
Se o irmão foi(/é) toxicodependente, a Susana durante a sua vida adulta anterior e no presente também tinha/tem um padrão de consumo excessivo de álcool (ia a bares ou organizava festas nas quais se alcoolizava frequentemente): estes comportamentos reflectem claramente condutas anti-depressivas de cariz hipomaníaco nas quais se refugiava para fugir à depressão e a sentimentos de profunda desvalorização.
Acerca dos pais, descreve-os como pessoas que sempre foram muito ocupados com o trabalho e muito preocupados com o dinheiro. Se nas primeiras sessões descreve a sua relação como os pais como sendo genericamente boa, ao longo das sessões seguintes passa a descrevê-los como hiper-presentes, que nunca a valorizaram: “Eles são o tipo de pais que vivem muito em função dos filhos: vivem muito para mim e para o meu irmão. Não são assim muito virados um para o outro”.
A relação com a mãe é descrita inicialmente da seguinte forma: “Eu tenho uma relação muito profunda com a minha mãe: muito forte! Somos muito confidentes, partilhamos muitas coisas. Somos muito amigas. Ela faz parte da minha vida de uma forma muito intensa”.
Em relação ao seu pai, e apesar do comportamento violento dele na sua infância, desculpa-o um pouco, referindo o esforço de mudança que ele teve e o quanto evoluiu enquanto pessoa ao ter superado as muitas adversidades que teve na sua própria infância e juventude. Refere que gosta do pai e que ambos têm feitios parecidos e que por isso chocam.
Sobre o seu percurso profissional, diz que gosta muito da sua profissão, pois “sempre quis seguir Direito”... Recorda-se que nos tempos de faculdade teve uma postura muito passiva e depressiva, pois desinteressou-se das aulas e só lá ia fazer os exames, ficando muito dependente da relação com o seu namorado (futuro marido): “(...) Na faculdade nós fomos logo viver juntos e eu acabei por me refugiar um bocado nele e vivia a vida do Francisco”.
Após terminar o curso, regressa à cidade natal e realiza o estágio profissional, que não correu bem, pois sentiu que não foi devidamente acompanhada, tendo ficado entregue a si própria, facto que a fez desgostar da sua profissão. Algum tempo depois, vai viver para o Porto para continuar a sua formação, referindo que foi a melhor altura da sua vida: “Ir estudar para o Porto foi bom, pois os meus pais protegiam-me sempre muito e eu achava que não conseguia fazer as coisas sozinha. Assim, no Porto, desenrrasquei-me”.
Este sentimento de pouca autonomia e pensar que não conseguia fazer as coisas sozinha vão de encontro à imagem desvalorizada que tem de si própria, pois sente-se uma pessoa pouco inteligente e fisicamente feia: “Sinto-me feia. Sinto-me o patinho feio”. Sente-se muito abatida ansiosa, confusa e com dificuldade em saber que decisões tomar na sua vida, questionando-se e questiona-me: “Será que isto que tenho é depressão? Como fiquei assim?”.
Em linhas gerais foram estes os aspectos principais que a Susana referiu na consulta inicial sobre o que a fazia estar tão abatida, triste e confusa e o que a motivou a procurar ajuda. Nas sessões seguintes vão surgindo dados adicionais que evidenciam as vivências angustiantes que constantemente a inquietam e a origem familiar das mesmas. A imagem que tinha dos seus familiares mais próximos vai ganhando novas formas: sente que os pais foram sempre muito críticos e acusatórios. A imagem da mãe começa a revelar-se diferente da que descrevia no início da terapia, pois a mãe confidente e perfeita das sessões iniciais já não existe no seu discurso, começando a surgir referências frequentes ao lado extremamente crítico, culpabilizante, infantilizante e controlador da mãe e ao mal-estar que ela lhe provoca: a mãe está constantemente a criticá-la e a acusá-la de ser má mãe e de não dar atenção aos filhos (tal como na sua infância e juventude, as críticas da mãe eram no mesmo tom acusatório pois “Ela não valorizava nada do que fizesse” – não havia lugar para carinho e reconhecimento). As acusações que a mãe lhe faz não correspondem à realidade, pois, apesar de todos os conflitos e dificuldades que vivencia, a Susana é muito cuidadosa e atenciosa com os filhos, sendo muito presente e estando sempre preocupada com o bem-estar e felicidade deles: ao longo dos anos teve sempre dúvidas constantes sobre se eles eram (ou iriam ser no futuro) crianças com uma infância feliz. Refere que sempre viveu muito para a família, tendo passado os primeiros 5 anos desde que os lhos nasceram, “muito fechada em casa com eles” (ao contrário da sua mãe que privilegiou o trabalho face aos lhos).
No primeiro contacto que tive com a Susana, o sentimento que mais me impressionou foi a sua grande fragilidade, tristeza e apelo de que compreendessem a sua inocência... A sua postura triste revelava muita desistência, culpa e carência afectiva. Apresentava-se muito deprimida, masoquista, idealizante – em constante “hemorragia” narcísica. A forma como se descrevia era sempre em termos auto-desvalorizantes quer ao nível das suas capacidades intelectuais (“sou mesmo burra”) quer ao nível do seu aspecto físico (“sinto-me o patinho feio”); todos estes factos evidenciavam uma grande falha narcísica primária e secundária (falonarcísica). A sua imaturidade psicoafectiva limitava-a bastante, pois era pouco autónoma (muito focada no trabalho e família) e com dificuldades de relacionamento num registo mais adulto.
A análise de todos os sintomas que manifestava revelava claramente um mundo interno muito empobrecido e povoado de maus objectos críticos e desvalorizantes. Para fugir à depressão e aos sentimentos de profunda desvalorização, adoptava condutas anti-depressivas de tipo hipomaníaco (festas) com constantes passagens ao acto na forma de consumo excessivo de álcool e ocasionais envolvimentos extraconjugais. Tinha claras dificuldades em se controlar e manter uma postura serena e estável.
Em relação aos seus pais, a Susana reconhece que as frustrações que sempre tiveram são em parte devidas à má relação conjugal: sempre canalizaram para os filhos as suas frustrações, desejos, necessidades, expectativas e ambivalências. A descrição que a Susana fez dos pais ao longo das sessões foi que eles não tiveram os comportamentos adequados que tivessem permitido que adquirisse uma imagem positiva e estável de si própria, com sentimento de valor e orgulho pessoal. Em vez disso ficou fragilizada, com má imagem de si e muito masoquista. Com poucos carinhos, os pais promoveram um culto de obediência, impondo a sua personalidade.
Devido à existência de profundos sentimentos de culpa (incutida pelos pais), medo, vergonha, a Susana recalcou a raiva e tristeza. A sua culpabilidade é muito grande: numa sessão, após criticar os comportamentos desadequados da mãe em relação a si, sente-se muito culpada por descrever as situações e refere: “Estou para aqui a destilar veneno”.
Nos intervalos das sessões, a Susana elabora muito: começa a reconhecer que é devido à relação com a mãe que está deprimida, ansiosa e insegura e com baixa auto-estima. No mesmo sentido podemos inferir que, devido aos seus pequenos ganhos e conquistas não terem sido positivamente registados/validados/elogiados, olha pouco para o futuro (muito focada no passado, no que não teve), com muitas incertezas e muito dependente de objectos externos (em especial do marido), por falta de segurança interna. Destacamos a sua pouca autonomia e forte ligação a um ambiente familiar muito pouco saudável, ao qual desde cedo se tem vindo a sentir profunda e ambivalentemente ligada, oscilando com comportamentos mais ou menos explícitos de obediência e desobediência face à submissão aos pais.
Nos seus relacionamentos extra-familiares reproduz o modelo relacional patológico assimilado na relação com os pais, o que conduz a que as relações sejam ambivalentemente vividas num registo de idealização, dependência, masoquismo, imaturidade, precipitação, inconstância e medo. No seu quotidiano de vivência com os outros procura relacionamentos altamente idealizados que rapidamente se tornam diferentes das suas expectativas, acabando sempre por ficar desiludida. Sem estar consciente disso, repete constantemente o abandono emocional que viveu no seu passado (e que está muito interiorizado no seu funcionamento psíquico), pois as relações são vividas de forma semelhante à relação vivida com o objecto primário: de forma narcísica, depressivante, com grande ambivalência e retirada emocional. Finalizando estas brevíssimas considerações constatamos que perante a sua enorme frustração interna e vazio, devido ao seu mundo interno extremamente empobrecido e povoado de maus objectos/introjectos, a Susana vive aquilo que Coimbra de Matos classifica como vicariância (comportamentos compensatórios, alternativos a outros modos de vivência interna e externa aos quais não conseguiu aceder): passagens ao acto na forma de comportamento sexual (ex: envolvimentos extraconjugais), bem como frequente abuso de álcool. A sua vida resume-se a um estado ininterrupto de instabilidade, oscilando continuamente entre depressão (tristeza, abatimento, vazio, futilidade, auto-desvalorização) e hipomania (fuga e negação da depressão, com procura frenética de atividades de tipo maníaco) – num estado de luto suspenso destas relações patológicas interiorizadas.
Para além da sua motivação inicial na vinda às sessões e em querer sentir-se melhor, cedo se começou a evidenciar uma grande ambivalência e descrença face a este novo “tratamento” (entenda-se: descrença na nova relação comigo e descrença em relação a si própria). Após as primeiras cinco sessões, começa a faltar sem me informar: eu contactava-a e remarcávamos uma nova sessão. Vem a algumas sessões, mas recomeça novamente a faltar.
Com as suas faltas e sem ter notícias suas, senti necessidade de lhe telefonar (novamente) para saber o que se passava com ela e para remarcarmos uma nova sessão: dizia-me que “estava em baixo” ou que tinham surgido “situações familiares ou profissionais” no seu dia-a-dia que a tinham impedido de vir... Numa dessas faltas liguei-lhe e explicou-me que teve de ir ao hospital, pois sentia-se “muito em baixo e com problemas físicos (vómitos)”.
Como vi que estava muito distanciada da análise receei que já não voltasse mais, imaginando que após uma expectativa inicial nas consultas perdera a esperança de que houvesse mudanças significativas a curto prazo no seu estado de tristeza. Nesse último telefonema falámos bastante tempo (cerca de 30 minutos): a Susana estava extremamente abatida e desmotivada, pelo que me esforcei para que sentisse que eu sabia exatamente o sofrimento e as dificuldades que ela estava a atravessar. Fui muito insistente, repetindo-lhe várias vezes as vantagens actuais e futuras que teria em vir às sessões e que, confiando na minha ajuda, o estado dela melhoraria seguramente. Disse-lhe que este era um trabalho de equipa e que dado o seu estado muito frágil gostaria que nos dias seguintes entre as sessões, caso se sentisse muito em baixo, poderia ligar-me para falarmos um pouco (isto enquanto não ficasse um pouco melhor). No fundo disse-lhe literalmente: “Susana, confie em mim. Sou o seu psicólogo e as suas melhoras não devem ficar só sob os seus ombros, uma vez que a Susana está com dificuldade em ver o que é melhor para si, por isso confie em mim pois este é um trabalho de equipa. Deixe que eu a possa ajudar e vai ver que nós os dois iremos conseguir que se sinta melhor”. Foi literalmente uma “injeção de esperança” e um reforçar de que o processo terapêutico passava por uma relação de comunicação e colaboração estreita entre nós os dois. Marcámos uma sessão, mas referiu que se não pudesse vir, que avisaria. Com esta nossa conversa telefónica, senti que a Susana ficou surpreendida pelo facto de eu estar tão preocupado e empenhado com o seu bem-estar, e achou que eu não era um “médico” (técnico) qualquer.
Entretanto muito duvidosa das mudanças positivas que as sessões lhe poderiam trazer, regressa embora chegando sempre com atrasos... As faltas seguintes às sessões – muito esporádicas – já eram de natureza diferente: ligava-me em cima da hora a pedir desculpas por não conseguir vir, pois queria vir mas haviam surgido “compromissos profissionais” que a impediam ou então que tinha “confundido o dia e a hora da sessão” e pedia-me para remarcar nova sessão logo para os dias seguintes, à qual comparecia.
E com o passar das sessões, foi ficando um pouco melhor: menos abatida e com um pouco mais de esperança em poder (num futuro mais ou menos incerto) resolver os seus problemas. Aos poucos, a Susana começa a habituar-se a esta situação nova que é poder falar à-vontade de si própria e do seu mundo e ter alguém que a ouve atentamente, lhe responde e com quem pode partilhar e pensar sobre “os seus dramas”, sem críticas.
As primeiras sessões foram ocupadas com as suas queixas, tristezas e dúvidas sobre o que faria em relação ao colega pelo qual se tinha apaixonado: mantinha contacto com ele ou não (deveria cortar relações ou não? Deveria responder às mensagens deles? Como se comportar face a ele? Deveria contactar com ele ou não?). Perante mim, a Susana colocava-se num papel infantil em que não tinha capacidade para tomar decisões sobre o que fazer com a sua vida afectiva e em que eu supostamente teria o papel adulto e mais capaz de decidir o que ela faria. Não agi o papel que a Susana tentava que eu desempenhasse e no qual ela (tal como o padrão de relação que a mãe tinha com ela) era a criança que não conseguia ser suficientemente capaz de tomar decisões: sujeitando-se a correr o risco de que essas decisões fossem eventualmente erradas. Respondia-lhe que era uma decisão dela, mas que a ajudaria a pensar nos prós e contras de qualquer decisão que ponderasse sobre a sua vida. O meu receio era que ela fizesse algo que a prejudicasse e que depois a fizesse sentir ainda mais culpada. Eu imaginava que depois se culparia e sentiria muito arrasada.
Constantemente fazia-me sentir que abandonaria a terapia: falava nos planos profissionais do marido para países distantes e em que estaria disposta a recomeçar a vida nesses sítios. À mínima notícia de uma qualquer perspectiva profissional do marido, imagina-se logo nesses países a passear e a fazer lá a vida (longe dos pais...).
Com o decorrer das sessões, o tema que inicialmente ocupava o seu discurso e pensamento (o amor não correspondido pelo colega e o que a Susana deveria fazer em relação a isso) vai deixando de ser abordado e vão surgindo temas ligados à sua infância complicada, à sua vida familiar e profissional.
Em termos transferenciais, inicialmente na relação comigo tinha muito medo que eu a julgasse e criticasse (tal como os pais fizeram com ela) e tenho verificado que esse receio (de crítica) tem vindo a reduzir-se. Da relação primária estabelecida com a mãe narcísica e exigente, a Susana assimilou/estruturou um superego muito crítico. Esse aspecto é confirmado uma vez que, quando ocasionalmente se deixa levar pelo entusiasmo e é espontânea, rapidamente se sente desconfortável pelo seu à-vontade comigo (como se isso não lhe fosse permitido) e pede desculpa do seu comportamento: “O pá! Ups!!!! Desculpe dizer isto!”.
Dos momentos das sessões que considero decisivos no fortalecer da nossa relação terapêutica nesta fase inicial da análise, destaco 4 sessões (quase seguidas) nas quais a Susana partilhou sonhos e fantasias, tendo a sua postura (na análise e face à análise) adquirido uma outra dinâmica mais positiva, passando a estar mais tranquila. Senti e julgo que a Susana também sentiu que foram “momentos de encontro emocional” em que se experienciou emocionalmente mais próxima de mim:
1. Numa sessão, ao descrever as relações conturbadas em que se apaixona perdidamente (que idealiza muito e vive intensamente), diz-me: “Sabe, eu com estas relações estou sempre a arranjar lenha para me queimar”. Digo-lhe então: “Lenha para se aquecer do frio da sua infância...”. Fica então muito silenciosa no divã e após alguns momentos em silêncio, diz-me “Pois. Sim... Acho que é isso...”;
2. No início da sessão seguinte deita-se no divã e após um silêncio prolongado diz: “Sabe Dr.... estive a semana toda a pensar na frase que me disse: “Lenha para me aquecer do frio da minha infância”... Achei a frase poética... e pensei a semana toda na minha infância. [silêncio]. Pensei no facto da minha mãe cantar fado: é por isso que me emociono sempre que ouço fado [silêncio]. Sabe, a minha mãe toma Sertralina... e teve uma infância complicada, apesar de não ter tido problemas económicos: a mãe dela morreu quando ela tinha 19 anos e depois apoiou-se numa madrinha [silêncio]. Sabe, comecei a sonhar: deve ser aqui da Psicanálise. Tive 2 sonhos: no 1o sonho tive um bebé: ele era um pouco feio e com ar de indiano. Mas ao amamentá-lo, olhei e achei que não era assim tão feio. No 2o sonho sonhei com seres tipo extraterrestres” (não lhe interpretei os sonhos, mas refleti sobre os seus vários significados);
3. Na sessão seguinte comunica outro sonho que teve durante a semana (3o sonho). Vai ao casamento de uma amiga. E está também vestida com um vestido de noiva. Ausenta-se durante o casamento e depois ao regressar olha para todo o lado tentando procurar o noivo com o olhar mas não o encontra e não sabe quem é o noivo. Mas antes de ir para o casamento vai a um funeral de 2 irmãos que matou. Interpreto somente o “vestido de noiva” como sendo as suas qualidades; embora pense nos vários significados possíveis do sonho: no facto de estar sozinha, na tonalidade emocional do sonho, a ansiedade de procurar algo e não encontrar, no facto de estar num casamento que não é o seu, no funeral dos 2 irmãos que matou, e muitos mais pensamentos que tive. Penso que ao sonhar com o noivo está a transmitir-me o seu desejo de ter relações em que se sinta valorizada; penso também no significado transferencial. Imagino que só pode ter o seu casamento (liberdade/vida feliz) após se libertar primeiro dos seus pais críticos e controladores (funeral dos 2 irmãos que matou). Imagino também que os dois irmãos mortos representam também as dificuldades pelas quais a Susana e o irmão passaram. Após partilhar esse sonho refere que desde muito nova tem tido pensamentos suicidas. Seguidamente lembra-se que numa noite recente imaginou-se numa piscina com os pulsos cortados e a água a transformar-se em vermelho (devido ao sangue): “Era uma cena muito linda...”. Fiquei impressionado com esta sua descrição e imaginei o quanto o seu mundo interno tinha de agressividade, tristeza e zanga reprimida, fruto certamente de muita frustração, falta de carinho, de reconhecimento e culpa, que a menina bem-comportada do passado (e presente) teve que “engolir” (i.e., recalcar) e o quanto esse seu mundo interno não estava habitado de objetos e relações positivas.
Algumas sessões depois, revela-me que desde de pequena imagina o seu funeral: está morta e imagina os outros que vão ao seu funeral.
Até ao momento a Susana aderiu à análise, mas ainda temos um longo percurso pela frente, pois a Susana tem ainda muitas dificuldades por elaborar, uma vez que a sua auto-estima foi muito arrasada. Considero que a análise tem sido muito importante, pois tem-lhe permitido encontrar um ambiente confiável no qual deposita esperança de um futuro diferente do passado e em poder reconstituir-se de uma forma melhor: numa relação de segurança que irá gradualmente interiorizar e assim enriquecer o seu mundo interno.
Recordo uma frase que disse na sua primeira sessão no divã: “Isso é uma experiência completamente nova para mim e estou disposta a aceitar o que quer que descubra sobre mim”. E “Tenho aqui algumas coisas que tenho que descobrir e tentar resolver... em mim, porque eu acho que tenho andado a tentar procurar fora de mim as respostas... algum alívio para a dor e para o sofrimento... seja saídas, viagens, compras. Tenho andado a fugir um bocado”.
Esta paciente (à semelhança de muitos outros pacientes) transporta dentro de si a vivência traumática do desencontro emocional com os seus objetos significativos. O tratamento analítico consistirá, entre muitos outros aspectos importantes, numa nova relação externa que será gradualmente interiorizada e permitirá a reparação do bom objecto interno – condição necessária para que a paciente possa superar o sentimento de traição e desilusão sentida na relação com o objecto primário.
O desmantelamento da relação patogénica interiorizada através da “nova relação” (Coimbra de Matos, 2011) será o âmago do labor terapêutico com vista à retoma do desenvolvimento suspenso da paciente e à instauração de uma espontaneidade e liberdade afectiva. Somente através da internalização desta nova relação transformadora (“o vislumbre de algo extraordinário”, nas palavras da paciente) – verdadeira postura terapêutica optimista e activadora do self – é que a paciente pode começar a sentir a força/confiança/optimismo suficiente para começar a trilhar novos caminhos relacionais, procurando novas relações construtivas e actividades mais satisfatórias.
A sua análise constitui desde o primeiro momento um espaço afectivo em que possa crescer, tendo agora novas condições em que o seu Eu possa retomar o desenvolvimento abortado por um ambiente humano que no passado (pelas suas características relacionais) não propiciou que adquirisse um sentimento de si como alguém competente, inteligente, bonita (uma auto-imagem positiva). Para isso terá também que ir adquirindo uma maior capacidade de auto-análise e simultaneamente consolidando-se um mundo interno mais securizante. Só com um bom objecto interno poderá ser autónoma e corajosa para assim se a rmar e aproveitar a vida.
A função do terapeuta afigura-se como Arquimedes: saber o local (momento) certo para colocar as alavancas (palavras, intervenções, silêncios, etc.) para levantar o mundo (provocar mudanças positivas nos pacientes). O que tenho para oferecer à Susana? Unicamente uma relação na qual o seu self verdadeiro possa ganhar voz e desenvolver-se: uma relação na qual sinta liberdade para pensar, sentir e ser e onde possam haver momentos de verdadeiros encontros, os quais nutrirão a transformação do seu mundo interior. Como muito bem refere Patrícia Câmara, “No solo infértil do desencontro emocional não se cultiva nada, a não ser o desconsolo...” (Câmara, 2010, p. 127). Desconsolo esse que desde tenra idade a Susana sentiu e continua a sentir, resultante dos inúmeros desencontros relacionais repetidos entre o seu olhar (afectividade) e o olhar desapaixonado dos seus pais: relação árida e espinhosa que impossibilitando-a de viver esse “romance extraordinário” (que no presente tanto procura e do qual resulta a argamassa afectiva que constitui um narcisismo sólido), a fez sentir-se arruinada narcisicamente (feia e defeituosa). E desta forma, sentindo-se permanentemente sem valor, procura nos relacionamentos altamente idealizados uma reconstituição/ renascimento narcísico na esperança (totalmente ilusória!) que sua falha narcísica hemorrágica estanque. Desconsolo este que coexiste com uma enorme agressividade (reactiva) amordaçada e recalcada, inflectida sobre si própria (o sonho em que mata os 2 irmãos, a recordação da fantasia infantil do seu funeral e os pensamentos suicidas na piscina são disso prova evidente), que alimentou e alimentará (se não for compreendida e elaborada), a sua baixa auto-estima, as dependências patológicas que a escravizam, os auto-enganos, as passagens ao acto, o sofrimento, num ciclo mortífero ininterrupto de compulsão à repetição, cujo resultado não é outro senão o desespero, a solidão, o insucesso relacional e a ausência de crescimento, conhecimento, criatividade e autonomia.
Vive um futuro eternamente adiado até que possa ir crescendo dentro de si a semente daquilo (um grande “amor”) que lhe facilitará transformar a sua baixa auto-estima, para que o “patinho feio” dependente possa sentir-se um cisne orgulhoso, autónomo e criativo.
Quantas possíveis Susanas naufragaram no desencontro afectivo com os seus objetos parentais? Muitas seguramente, tendo poucas sobrevivido. Mas sabemos que dentro dela, muitas outras podem renascer e florir...
O caso de Susana parece-me paradigmático no que respeita à relação entre o seu quadro psicopatológico e os factores relacionais que o originaram. A origem, desenvolvimento, eclosão e manifestação dos seus sintomas é indissociável das atitudes nefastas das suas figuras parentais. Na clínica psicanalítica, dos vários aspectos que constituem uma prioridade para o terapeuta, o processo de mudança do estilo relacional dos pacientes revela-se um dos mais importantes e cruciais a ter em conta para levar a bom porto o processo psicoterapêutico (embora saibamos que em todos o percursos terapêuticos ocorrem numerosas dificuldades e retrocessos que devem ser superados e resolvidos). A vivência do passado foi traumática precisamente porque teve impacto negativo no desenvolvimento harmonioso da personalidade e dos seus recursos.
No presente caso pensamos que existiram inúmeros acontecimentos relacionais negativos (os quais podemos considerar como autênticos traumas cumulativos [Khan, 1963]) na forma de comportamentos desnarcisantes e abandono emocional ao qual a paciente foi votada, uma vez que não teve a possibilidade de estabelecer uma relação duradoura com um adulto empático que lhe permitisse adquirir uma imagem positiva de si própria.
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1 – Comunicação apresentada nas Jornadas da AP, associadas ao II Congresso Luso-Brasileiro sobre o pensamento de Donald W. Winnicott, 22 de junho de 2014, Lisboa.
2 – Psicólogo clínico (licenciado pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada – ISPA); Membro efectivo da Ordem dos Psicólogos; Membro Fundador Associado da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica. Exerce clínica privada.
I – Relação de atenção, carinho e reconhecimento: de amor, no m de contas, pois trata-se de uma fortíssima relação emocional de que a criança necessita para “encher o seu reservatório” de amor-próprio.
II – “Bonding” (ligação, abraço, envolvimento) é o comportamento materno (e paterno – parental) complementar do attachment (vinculação, apego). O bonding foi o termo escolhido por Marshall Klaus e John Kennell em 1972 (Bonding – Klaus et al.) para designar o comportamento materno de enlace do/a filho/a recém-nascido/a. Consideramos o vínculo ou relação parental-filial uma relação objectal especifica, diferente da relação libidinal ou erótica. Esta relação progenitores-cria, recíproca e complementar, cujo protótipo é a relação mãe/recém-nascido, tem duas vertentes: (1) o attachment (apego) – Bowlby – e (2) o bonding (abraço) – Klaus. Consideramos o bonding primário e primacial. É importante notar que Bowlby estudou a vinculação infantil à figura materna – que designou por attachment. É Klaus quem estuda a vinculação materna ao lho – que designou por bonding (...)” (Coimbra de Matos, 2011, p. 138).