A reflexão sobre a relação do indivíduo com o trabalho tem vindo a ser desenvolvida em áreas das ciências humanas como a sociologia e a psicologia social, mas também, ainda que menos tradicionalmente, em psicologia clínica de orientação dinâmica.
A investigação sobre as organizações laborais ou sobre a saúde do capital humano numa organização, com o objectivo de melhor conhecer os factores de optimização da performance na perspectiva do aumento da produtividade, tem dado lugar ao estudo da relação do indivíduo com o seu trabalho na perspetiva do desenvolvimento do adulto, abrindo-se um novo campo de investigação para a melhor compreensão do significado do trabalho zelosamente investido na construção da identidade e da saúde mental do indivíduo, preconizado por uma disciplina algo recente, a Psicodinâmica do Trabalho.
A aplicação dos conceitos psicanalíticos em contextos externos ao setting clínico tradicional, vem contribuindo de forma fulcral, por exemplo, para a compreensão da comunicação em sistemas complexos, como no contexto organizacional, possibilitando a compreensão da dinâmica inconsciente, do conflito intrapsíquico e interpessoal, bem como a análise da transferência que se considera ser da maior relevância, como defendem Aron, (2000 e 2012), Fonagy (2002), Wallerstein (2008), Kerneberg (1988), Achille & Thomas (1985), Kächelle, (2002).
A Psicodinâmica do Trabalho propõe duas grandes áreas de aplicação da psicodinâmica: a primeira é a organização do contexto de trabalho; condições de trabalho, relações de trabalho. E a segunda grande área de estudo é a mobilização subjectiva do trabalhador, cujo foco são as vivências intrapsíquicas, de prazer/sofrimento, mecanismos de defesa, e espaço de relação. Isto é, a Psicodinâmica do Trabalho procura pensar o indivíduo no seu contexto de trabalho e pensar o indivíduo na construção de si mesmo pela realização do seu trabalho. O objectivo final da Psicodinâmica do Trabalho é produzir o conhecimento capaz de repensar as organizações e as dinâmicas sociais no sentido da promoção de desenvolvimento e de equilíbrio psíquico (Lancman & Uchida, 2003).
Os estudos em Psicodinâmica do Trabalho visam a compreensão das relações de prazer-sofrimento-trabalho e o estudo do “enigma da normalidade” (Dejours, Abdoucheli & Jayet, 1994), considerando a normalidade como o estado de equilíbrio entre o prazer e o sofrimento com recurso às defesas do sujeito. Para Dejours, (1996), não há neutralidade do trabalho em relação à saúde mental; para este autor, o trabalho, tal como a sexualidade, é um aspecto central na psicologia humana.
Enquanto na sexualidade a construção da identidade se processa através da relação com o outro, a construção da identidade através do trabalho implica, para além da relação com o outro, a relação com o real em sentido mais lato. O trabalho consiste na instrumentalização do acesso ao real, que o sujeito procura fazer reconhecido e sente como necessário para o social e para si mesmo (Dejours, 1999).
Para Dejours, o laço social mais relevante é o trabalho e não o amor como Freud defendeu; não vamos tão longe, mas acredita-se que o Self está mais imbuído e é transformado pelo trabalho mais profundamente do que foi postulado por Freud. Contudo, a valorização do trabalho na construção da identidade defendida na teoria dejouriana só aparentemente se afasta da teoria freudiana. Freud não rejeitou a relevância que o trabalho investido tem na vida e na saúde mental do indivíduo:
“Perguntaram a Freud o que deveria uma pessoa comum fazer bem. O entrevistador provavelmente esperava uma resposta longa, mas Freud disse simplesmente: “Lieben und arbeiten” (amar e trabalhar). É importante ponderar sobre esta simples formula, ela aprofunda‐se à medida que se pensa nela.” (citado por Erikson, 1968, p. 136).
Erikson adicionou a esta fórmula “criar”, e elaborou a própria noção de desenvolvimento a partir das ideias da sua analista Anna Freud, que traçara as linhas de desenvolvimento desde a latência até ao trabalho adulto (Axelrod,1997). A teoria da personalidade de Erick Erikson (1968) atribui uma forte relevância ao papel do trabalho na vida do adulto (Clot, 2006).
Na teoria sobre o desenvolvimento humano, Erikson enfatizou que se atinge o auge do desenvolvimento atingindo o equilíbrio entre amor, jogo/criação e trabalho.
Para Clot (2006), as escolhas pessoais e profissionais estão imbuídas de expectativas quanto ao sucesso na carreira, quanto à relevância social que será alcançada por intermédio da profissão, e mesmo pela forma como o indivíduo se sente no desempenho de um papel profissional. A maior parte do tempo de vida do indivíduo adulto é gasto com o trabalho, as relações que da sua realização se estabelecem, os problemas e prazer que o trabalho acarreta influenciam profundamente a existência humana. Trabalhar não é somente um factor de sobrevivência física, desempenha um papel fundamental na vida humana; é sobretudo um factor fundamental à constituição do sujeito e do ‘corpo’ social.
A centralidade do trabalho na vida do indivíduo visa não a objectividade do sucesso da acção segundo o mundo social, mas a subjectividade da coesão e da coerência entre acção, objectivos e realidade intrapsíquicos do sujeito, fundamentais para este conservar o seu equilíbrio psíquico, a sua saúde psicossomática.
Destaca-se também, da Psicodinâmica do Trabalho, a adopção da noção de experiência vivenciada, isto é, o estado mental que implica um movimento reflexivo da pessoa sobre o seu “estar no mundo”, aplicado à condição de trabalhador.
Antes do trabalho existe um sujeito à espera de evolução, pois a compulsão para a evolução/desenvolvimento está inerente à natureza humana, o trabalho constitui o/um advento capaz de veicular a mudança interna, o desenvolvimento. O trabalho acarretando sacrifício/sofrimento é ao mesmo tempo propensão dirigida para o mundo, em busca de novas ocasiões para pôr o sujeito à prova: à prova do mundo e à prova de si mesmo (Billiard, 2011).
Ao considerar a criatividade como normativa dos nossos comportamentos (Delgado, 2011), pode compreender‐se que o trabalho, por ser um produto directo da actividade humana, é um veículo privilegiado para a aplicação quotidiana da criatividade.
Na actividade laboral zelosamente investida, o indivíduo é sistematicamente confrontado com a necessidade de encontrar uma solução original (pelo menos para si próprio), adaptada a cada circunstância, isto é, o indivíduo é impelido à actividade criativa quando executa trabalho de forma investida e zelosa (Dejours, 1996). Para este autor, ninguém se sabe criativo ou considera a sua produção criativa sem que haja alguma forma de confirmação externa a si mesmo. É na relação com o meio, que julga e reconhece o trabalho desenvolvido como criativo, que o sujeito se apropria da imagem do trabalho desenvolvido por si próprio. O julgamento do meio sobre a utilidade e beleza da obra feita é essencial ao indivíduo para a realização de si e para a construção da identidade; estas são condições consideradas essenciais para o desenvolvimento do indivíduo e para a manutenção do seu equilíbrio psíquico.
As três dimensões fundamentais que estão envolvidas no processo criativo – a simbolização/sublimação; a reparação e a função continente (Delgado, 2011) – são, de acordo com Dejours, (1998), as dimensões evocadas no que concerne ao trabalho zelosamente desenvolvido.
Aquando da contemplação dos resultados do trabalho realizado, anuncia‐se a transformação do sofrimento inicial em sentimento de satisfação e plenitude. Acredita‐se que o prazer no trabalho está consubstancialmente ligado ao sucesso do processo de subjectivação, de reforço da identidade, e/ ou ainda à auto‐realização que “o trabalhar” proporcionou.
Uma vez que a identidade constitui a base da saúde mental – toda a crise psicopatológica é centrada numa crise de identidade (Dejours, 2009) –, compreende-se que o trabalho possa ser um poderoso mediador da identidade e que o trabalho pode constituir uma oportunidade de atingir equilíbrio psíquico e saúde mental. Para Dejours, não há centralidade no trabalho se a actividade laboral não oferecer a possibilidade do reconhecimento do mérito e da utilidade da realização; só produzirá sofrimento e conduzirá o sujeito progressivamente para a descompensação.
Trabalhar entende-se como a mobilização do corpo e da inteligência, da pessoa/Self para uma produção que detenha valor de uso, quer se trate de uma actividade assalariada ou graciosa, doméstica ou pro ssional (Dejours, 1998). Considera-se “o trabalhar”, substantivado, uma experiência que é desde sempre consubstancial ao humano.
Do ponto de vista antropológico e das ciências humanas, é por via do trabalho que se consegue o ordenamento do mundo e a objectivação da inteligência. E, sob esta perspectiva, trabalhar reveste‐se de uma grande importância, pois é uma actividade de produção que promete a transformação do mundo com o m último de o tornar mais habitável; e o trabalho é também uma actividade de produção onde se concretizam e se objectivam a inteligência e o engenho humanos. Para Dejours (1998), sem trabalho, a inteligência e a criatividade humanas não seriam mais do que hipóteses.
A psicodsnãmica do trabalho está centrada na análise dos processos envolvidos na etiologia do sofrimento e das patologias, bem como do prazer e da saúde, relacionadas com o trabalho, conferindo ao trabalho o poder de fazer advir o sujeito: trabalhar é transformar o mundo, mas sobretudo transformar-se a si próprio, pois o trabalho constitui um processo de subjectivização.
A teoria adjacente à Psicodinâmica do Trabalho, que tem sido desenvolvida por Chistophe Dejours (1996), sob a designação de “centralidade do trabalho para a subjectividade”, tem como ponto fulcral a assunção de que o trabalho pode ser um importante mediador da génese do prazer - da sublimação e, consequentemente, constitui um meio fundamental para a estruturação da identidade, sendo por excelência um mediador na construção da saúde mental do adulto na era actual.
O trabalho não pode ser neutro em relação à saúde mental: ou gera o melhor por intermédio da sublimação ou, pelo contrário, pode gerar o sofrimento, o desequilíbrio, a alienação, em limite pode conduzir ao desespero extremo e à frustração pessoal profunda inerentes à devastação da auto‐estima via sofrimento ético e falta de sentido para o Self.
Neste artigo, ao considerar-se a centralidade do trabalho na construção da identidade do adulto, concebe-se “identidade” numa perspectiva de desenvolvimento. Considera-se que a identidade/Self se estrutura e consolida através do reconhecimento de si mesmo (Winnicot, 1962) e que, no adulto, o saber-se a si mesmo passa pela realização e implica o investimento das capacidades do Self, a auto confirmação e a relação com o real. Isto é, a identidade está implicada e depende da realização e da relação, havendo transformação do Self pela realização através do trabalho investido de zelo.
Entende-se que o trabalho investido de zelo é todo o trabalho desenvolvido, remunerado ou não, em que o sujeito se implica totalmente aplicando o potencial máximo das suas capacidades físicas, intelectuais, e também amorosas. A experiência da realização de trabalho zelosamente investido implica, desenvolve/transforma o sujeito que o pratica. A atribuição de um significado afectivo/emocional positivo à obra feita e ao impacto que a sua obra tem no meio envolvente, tanto no contexto da relação com os pares, como na sociedade em sentido mais lato, é também uma condição fundamental na definição de trabalho zelosamente investido.
Atendendo à necessidade humana de desenvolver as suas capacidades ao longo da vida, pode atender-se a teorias psicanalíticas que traduziram esta pulsão de conhecimento do mundo que acompanha o ser humano desde o nascimento até à morte.
Ao longo da vida a pulsão para apreender o meio acompanha o Ser Humano: desde a infância, a criança explora o mundo e incorpora conhecimento encorajada pela mãe, existindo nela o que se pode designar como “sede de conhecimento”, como foi designada por Meltzer (1978/1987). Mas outros autores pressentiram esta compulsão pela apreensão sistemática do meio: Melanie Klein (1923/1996, 1930/1996) desenvolveu o conceito de “tendência epistemofílica”; Bion (1962) fala de vínculo K.
Também o adulto, tomando consciência de si através da relação com o real, e sentindo-se confiante das suas capacidades devido ao reforço do reconhecimento de valor no meio laboral, (pelos superiores e pelos pares), é impelido a implicar-se zelosamente na realização laboral, mobilizando as suas capacidades no sentido da melhor realização (zelo = inteligência + amor); aperfeiçoando-se e desenvolvendo-se intelectualmente; e, sobretudo, retirando prazer na aquisição de novos saberes, por via da aprendizagem e do aperfeiçoamento de competências através da experiência adquirida pelo seu trabalho.
A subjectividade inerente ao trabalho investido, ou seja: o caracter simbólico/sublimatório associado ao trabalho que é investido, bem como o papel reparador que o trabalho investido tem no psiquismo é, neste trabalho, considerado como podendo ser um processo em tudo idêntico ao postulado nos trabalhos sobre a criatividade de Delgado (2012), em que o autor considera a criatividade como um dinamismo normal, inerente à espécie humana.
Consideram-se dois vectores de análise no que concerne ao impacto do trabalho na coesão e reforço da identidade. O trabalho tem um papel sublimatório, mas também tem um papel reparador.
Através do seu trabalho, o indivíduo relaciona-se com o mundo. Nessa relação o indivíduo executa, produz, realiza, experiência e por isso sente-se útil e parte integrante de um contexto profissional; um todo colectivo com que se identifica ao rever-se no seu grupo profissional e/ ou no contexto laboral a que pertence. O trabalho é uma actividade essencialmente dirigida ao outro: em última análise, trabalha-se com e para alguém, em sentido mais estrito ou para a sociedade em sentido mais lato. Ao sentir-se reconhecido pelo outro, e estando em consonância consigo mesmo, o indivíduo assume-se em si mesmo e perante o mundo (Dejours, 2001). Desta forma, o trabalho pode ser um poderoso mediador da construção da identidade, na medida que veicula a reparação.
Por outro lado, o papel que o indivíduo assume no contexto laboral particular, mas também o papel que assume na sociedade, por intermédio da sua profissão, bem como o reconhecimento do esforço e mérito profissional do indivíduo, pelos superiores e pelos pares, apresenta-se como fundamental para o reforço narcísico e logo para o reforço, manutenção ou mesmo estruturação da identidade, (considerando que a identidade se revela e se constrói ao longo da vida).
A questão do trabalho acarreta a relação do indivíduo consigo próprio, isto é, a necessidade de elaborar a sua fragilidade narcísica através da concretização – da execução do seu trabalho que o sujeito sente como necessário ao mundo, podendo ser apreciado pelos outros.
Na medida em que o trabalho é um veículo privilegiado de relação com o mundo, o trabalho, no seu contexto social, proporciona a possibilidade do indivíduo representar/reviver/recriar o trauma na relação com o mundo exterior, possibilitando reparação da relação com o objecto. Isto é, a implicação zelosa das capacidades do eu no seu papel profissional, na execução do seu trabalho, permite a exorcização dos fantasmas inconscientes inerentes à relação primordial; a reparação do objecto defendida por Segal, (1974/1990).
Reparando-se em relação ao objecto através do trabalho – que é acção sobre o meio –, o indivíduo repara-se também em relação a si mesmo/ Self por estar implicado zelosamente na concretização do seu trabalho, por conseguir executá-lo e pelo papel que representa na sociedade pela profissão que enverga e os saberes a ela associados. Este conceito de reparação do Self é introduzido por Chasselet‐Smirgel (1984), a propósito da obra criativa.
Por outro lado, considera-se o impacto do trabalho ao nível do prazer/ desprazer que o indivíduo retira da sua experiência laboral; fala-se de sublimação, conforme a teoria da centralidade do trabalho para a subjectividade, desenvolvida por Dejours (2001).
Em todo este processo, está implicada a tomada de consciência de si próprio, isto é, a função continente do aparelho psíquico, no sentido bioniano: através da realização do seu trabalho e da relação com o meio inerente à actividade profissional, o indivíduo toma consciência de si próprio. O pré-consciente permite a afluência do inconsciente que se revela nas opções profissionais do sujeito, mas também nas características e originalidade da forma como executa o seu trabalho que, desta forma, adquirem uma carga simbólica fundamental à manutenção da integração do Self, o que está de acordo com o afirmado por Delgado (2011) a respeito da função continente e simbolização.
Considera-se que o trabalho é um veículo privilegiado de relação do indivíduo com o mundo e consigo próprio.
O trabalho zelosamente investido é todo o trabalho remunerado ou realizado de forma graciosa, em que para a sua realização o indivíduo se implica profundamente aplicando o máximo potencial das suas capacidades físicas e intelectuais, assim como atribui um significado afectivo/emocional positivo e ético à obra feita e ao impacto que a sua obra tem no meio envolvente, tanto no contexto da relação com os pares, como na sociedade em sentido mais lato. A experiência da realização de trabalho zelosamente investido implica desenvolvimento/transformação do sujeito que o pratica.
O trabalho zelosamente investido é um veículo de subjectivação, a produção investida mobiliza o simbólico, o sublimatório, e tem igualmente um papel reparador do psiquismo. Consideram‐se dois vectores de análise no que concerne ao impacto do trabalho na coesão e reforço da identidade. O trabalho tem um papel sublimatório, mas também tem um papel reparador.
Assim, o trabalho investido de zelo afigura‐se um processo imbuído do acto de criar, indo ao encontro do postulado nos trabalhos sobre a criatividade de Delgado (2012), em que o autor considera a criatividade como um dinamismo normal, inerente à espécie humana.
Atendendo ao estado da arte sobre os trabalhos de investigação de carácter psicodinâmico sobre a criatividade, bem como ao simbolismo que acarreta o fenómeno do trabalhar e da realização pessoal pelo trabalho realizado de forma investida, considera‐se que o trabalho zelosamente investido é um factor inerente à realização do Self no adulto e, portanto, é potenciador de saúde mental, contribuindo para a estruturação e reforço da identidade e para o equilíbrio psíquico do indivíduo.
The meaning of work zealously invested in the construction of adult identity.
The importance of work in the adult life become an increasingly more frequently studied subject in the area of human sciences. Investigation on the psychodynamics of the work includes two perspectives on the study of work phenomenon: the dynamics of organisational functioning as a context and a reflexion on the subjective meaning of one`s work by the individual who performs it. It is believed that zealously invested work, in which the individual is profoundly and affectively involved, utilising the maximum exponential of his own capacities and creativity is fundamental for the construction of his identity as an adult, and consequently his mental health.