Num mundo sem lei, não há outros recursos senão
fingir, se submeter ou se revoltar.
(Laplanche, 1992, p. 164).
Zygmunt Bauman, sociólogo polaco e grande pensador da atualidade, introduziu o conceito de adiaforização da conduta humana para falar e compreender o fenómeno da perda de sensibilidade da “modernidade líquida”. Adiaphoron (plural adiaphora) em grego significa algo “sem importância”, mas Zygumunt Bauman vai falar de adiaforização como “os estratagemas voltados para colocar (...) certas categorias de seres humanos fora do eixo moral-imoral – ou seja, fora do “universo das obrigações morais” e do reino dos fenómenos sujeitos à avaliação moral; estratagemas para declarar tais ações ou inações, de maneira implícita ou explícita, “moralmente neutras” e impedir que as escolhas entre elas sejam submetidas a um julgamento ético “ (Bauman, Z. & Donskis, L., 2013., p 39). Por isso, o termo “adiafórico” em Bauman não significa “sem importância”, mas “irrelevante” ou, melhor ainda, “indiferente”.
Pegando neste conceito, podemos entender que a adiaforização do abuso sexual emerge na “modernidade líquida” pela insensibilidade crescente face ao Outro em geral, e ao seu sofrimento em particular. A forma como as várias personagens dentro do cenário de abuso sexual atuam ilustra esta imoralidade latente cuja lógica não se inscreve no universo da moralidade humana: a criança-vítima é obrigada a aceitar o abuso como afeto e, ao mesmo tempo, assimilar o “síndrome do segredo” como forma de proteger-se a ela e aos outros face a algo sentido como destruidor. O pai-abusador despersonaliza o ato sexual e desumaniza a criança-objeto do seu desejo. A família-cúmplice “ignora” o trauma pela passividade, agindo inconscientemente o abuso. O sistema-sociedade “vira a cara”, negando e desacreditando o testemunho de um crime. As várias ações e inações dentro do abuso sexual, não sendo moralmente neutras, põem em causa os julgamentos éticos praticados e a forma como cada um individualmente compromete a moralidade final da percepção da revelação da criança que, como vítima desacreditada, passa a ser vista como agressora.
“As crianças ou adolescentes vítimas de abuso sexual são os únicos tipos de vítimas de maus‐tratos que têm que provar não ter “provocado” o seu agressor por meio de sedução nem terem mentido, quando o reportaram (...) Porque o abuso é sexual, as vítimas estão sujeitas ao mesmo sexismo de onde resulta a culpabilização da vítima ou da pessoa que culpa o agressor.” (Young‐Bruehl, E., 2012, p. 165).
Esta tríade desmoralizadora (abusador/cúmplice/sistema) dá ênfase ao conceito de Hanna Arendt (1906‐1975) da “banalidade do mal” pela capacidade de superação e domínio da “piedade animal e instintiva que todo o homem normal sente quando se encontra diante do sofrimento físico” (Arendt, H., 1964, p. 169).
Esta “banalidade do mal” descrita por Hanna Arendt emerge num sistema burocrático, cuja racionalização das práticas institucionais permite afastar a ação da consequência e, assim, afastar moralmente o burocrata da vítima.
Zygmunt Bauman reforça esta ideia de “desumanização do sistema” quando diz que a “rotina da organização” se sobrepõe “ao zelo individual (...) e a disciplina (...) à dedicação ideológica (1988, p. 27)”
São os “crimes de secretária” que, tal como diz Max Weber, permitem “ (...) de acordo com considerações puramente objetivas (...) um desempenho segundo regras mensuráveis e“sem consideração com pessoas” (Gerth, H.; Mills, W., 1970, pp. 214‐215).
Aceitar que uma criança foi abusada sexualmente e ninguém fez nada para a proteger, é incompatível com a moralidade, por isso, é mais fácil, dizer que não se sabia, porque, de forma objetiva e distanciada, não se viu, não se ouviu e não se tomou consciência. Pelo contrário, os que viram, os que ouviram, e insistem em passar a mensagem, são considerados imorais pelo confronto que provocam no outro e no sistema. Perante uma mensagem destas, a única coisa moral a fazer é “matar o mensageiro”I, caso contrário, ter-nos-íamos que nos confrontar com o momento a partir do qual cada um de nós assumiu a sua imoralidade numa ação concreta e precisa. Qual foi o degrau naquela escada para a violência, em que ao subi-lo a minha ação se tornou imoral, mesmo que antes não o fosse?
Aceitar a imoralidade vai contra a própria essência humana que se define pelo seu livre arbítrio, pelo que, após subir o primeiro degrau e até ao último, só em abstrato se consegue assumir a responsabilidade de um ato isolado.
O todo visto como mau é um conjunto de bocados inofensivos e inconsequentes, cada um deles desligado do produto final. Quanto maior for a equipa de intervenção, por quantos mais técnicos e avaliações a criança passar, mais serão as defesas de cada um dos protagonistas para um desfecho “inconclusivo” e da responsabilidade de ninguém. Um “inconclusivo” que não pesa nem persegue a consciência de nenhum dos intervenientes no processo.
“O aumento da distância física e/ou psíquica entre o ato e suas consequências produz mais do que a suspensão da inibição moral; anula o significado moral do ato e todo conflito entre o padrão pessoal de decência moral e a imoralidade das (suas) consequências sociais (...) os dilemas morais saem de vista e se tornam cada vez mais raras as oportunidades para um exame mais cuidadoso e uma opção moral consciente.” (Bauman, Z., 1988, p. 31)
Este afastamento por detrás da burocracia e racionalidade das ações, permite ao sistema “virar a cara” à possibilidade de um crime na assunção de o que não é objetivo não faz prova, e se não faz prova não existe enquanto tal. A violência passa assim a ser permitida e autorizada pelo sistema. Àqueles que não conseguem “virar a cara”, e de acordo com as palavras de Laplanche (1992, p. 164), já não podem fingir nem se submeter, só lhes resta revoltarem-se.
Elisabeth Young‐Bruehl (2012) utiliza o termo “Childism” num paralelismo ao anti-semitismo, racismo e sexismo, considerando estar a criança vítima de abuso sexual, maus-tratos ou negligência, sujeita à mesma discriminação e desproteção. O descrédito da vítima assume o mesmo papel que a xenofobia, num “etnocentrismo” onde a infância, e os abusos contra ela cometidos, são uma cultura à parte, face à qual operam os mesmo preconceitos e ideias infundadas do que qualquer outro “ismo” inscrito na história da(s) sociedade(s).
(...) é encaminhada à consulta de Psicologia num Hospital Central de Lisboa, pela escola, por imaturidade e desadequação no discurso. Apresenta uma malformação congénita, afetando o seu desenvolvimento motor e conferindo-lhe uma aparência indefesa e frágil.
Os pais não apresentavam nenhuma preocupação concreta, tendo aderido à consulta de psicologia por aceitação passiva da sugestão que lhes havia sido dada. Esta passividade dos pais manteve-se ao longo de todo o apoio e as sessões com eles eram marcadas por um vazio de informação e de afeto, sentido pela psicoterapeuta como se algo não estivesse a ser dito, e pelos pais como não tendo nada para dizer.
No setting terapêutico a criança apresentou-se como um bebé pequeno, com uma inibição acentuada da fala, apontando para as coisas e balbuciando palavras soltas. O seu desenho era pouco investido e fragmentado, onde as partes não tinham ligação entre si. Não havia história e parecia não haver espaço para a simbolização. Na relação sentia-se esta falta de ligação entre o pensamento e a ação, como se a ação inibida não fosse concordante com um pensamento vazio, mas antes povoado de conteúdos interditos e não acessíveis à mentalização.
Rapidamente este mutismo desapareceu para dar lugar a um mundo interno recheado de fantasmas aterradores e medos inomináveis. Naquele primeiro encontro entre a criança e a psicoterapeuta, parecia haver um apelo à capacidade de rêverie da psicoterapeuta, de forma a digerir e nomear os elementos tóxicos (elementos beta), permitindo uma crescente narratividade (elementos alfa), favorecendo a simbolização (discurso, desenho, histórias). A angústia de base não era uma angústia de fragmentação, mas uma angústia persecutória que bloqueava o pensamento intrapsíquico na relação intersubjetiva.
A mensagem da sua angústia era clara, e logo no segundo encontro com a psicoterapeuta, a criança desenha uma casa sem portas nem janelas, rodeada de fogo e neve, onde “vive o pai, a mãe, a mana e eu. Não tem janelas nem portas. Vivem lá fechados”, refletindo esta ideia de “sem saída” que nos remete para a sua a ficção, como se fosse morrer queimada juntamente com a sua família, sem hipótese de fuga ou salvação e, ao mesmo tempo, “presa” num ambiente afetivo gelado sem limites nem contenção.
No jogo, o relato de abuso vai sendo construído, primeiro de uma forma difusa e vaga, mais tarde de forma desorganizada mas dirigida e sistemática, e por fim de forma clara e inequívoca.
Começa por dizer que “tem medo do pai... não, do amigo (corrige) porque fazia cambalhotas” e pegando num boneco coloca-o junto a um outro boneco que diz ser o mau “este é que é o mau, o menino, e a menina não é namorada dele”.
Começam a aparecer monstros “é um monstro dentro de água... um homem apareceu aí e matou... um homem dentro da torneira”. Mais tarde o monstro aparece na forma de “um Robot mas com dentes reais e com bicos para picar tudo, trinca tudo o que aparecer”.
Há zonas na casa que estão proibidas – o sótão – e o monstro passa a ser desenhado do lado de fora, procurando-se alguma contenção. O sótão poderá levar-nos para a ideia de pensamento interdito e não acessível à consciência, pelo seu lado proibitivo, e a clivagem, colocando o monstro do lado de fora da casa, como o único mecanismo de defesa possível para lidar com o trauma. Mas mesmo assim, recalcando e clivando, “os monstros” continuam a ser assustadores.
Este monstro desenhado no papel vai dando conta da ambivalência que a criança projeta nele e, embora os dentes afiados e agressivos se mantenham, na aparência ele vai assumindo formas mais apaziguadoras. Umas vezes é o pai, outras nomeia como um monstro. A criança pede para ver os desenhos que faz em sessões anteriores, e ao revê-los as nomeações alteram-se e a ambivalência manifesta-se – ora pai, ora monstro. Esta é a experiência alienante e fragmentada que está na base do abuso e que o torna numa experiência psicológica limite. Um monstro não pode ser um pai, nem um pai pode ser um monstro.
Começam a aparecer na sessão o que a criança denomina como “Relatórios de Polícia” que servem por um lado para identificar o mal e separar o agressor da vítima, e por outro como forma de, ao pôr em palavras, ir organizando o pensamento face àquela angústia persecutória que domina as sessões. No primeiro “relatório” a criança dita a seguinte declaração: “o tubarão obriga a foca a entrar na barriga dele até à cauda. A foca não queria entrar na barriga dele, mas ele mandou-a. Depois prendeu a foca e ia matá-la (...) A foca teve que pedir ajuda para o tubarão não a obrigar a entrar na barriga dele... Pediu ajuda ao Castor, o Castor vai dentro da barriga do tubarão e manda um pouco de água. A foca agora já não vai à barriga do tubarão. O tubarão vai ser preso para não fazer mal às crianças... as mães são boas, não sabem nada do tubarão e da barriga”. Acrescenta ao depoimento um desenho, com máquinas de mandar “xixi amarelo” e, fingindo que atira o líquido à cara da psicoterapeuta, diz: “agora estás toda molhada, vais assim para casa, ficas em gelo e depois morres, depois ficas a tremer, depois morres bué”. A agressividade passa a ser dirigida à psicoterapeuta que não a ajuda, por identificação projetiva, enquanto aquela que não se constituiu como polícia para a proteger. Todas as sessões são iniciadas pela frase “não dormi nada esta noite... o meu pai acordou‐me... para ir para a escola”. Os “Relatórios de Polícia” continuam: “Não dorme de noite, o pai aparece com as calças para baixo, faz um buraco na barriga com uma faca, o pai queria namorar às escondidas e depois sujou o vestido todo com aquelas porcarias, bichos, doninhas fedorentas e cobra, sujam a cabeça toda, a cobra sujava o cabelo, ia-se esfregar à lama e sujava a prima. A cobra era do homem, era o homem que era velho, o velho sujava tudo, temos que mandar prender o velho e levá-lo à prisão, os velhos não namoram com crianças, a mãe da menina (que tem 14 anos) sabe, a mãe viu e a menina contou, a menina contou que estava um homem no quarto”.
Uma das tramas possíveis, em que resulta um novo trauma no abuso sexual, é que o que é dito pela criança é visto como concreto e objetivo, e o simbólico que, não só é próprio da criança pequena, como a ajuda a representar (deslocamento e condensação) os conteúdos aberrantes que relata, são anulados na lógica pseudo-científica, onde o subjetivo não tem valor.
Conteúdos como “a menina da história tem 14 anos” são lidos como não sendo dela que está a falar, “o lobo mau é velho” então não é o pai, “a mãe da menina sabe”, então está a mentir. Pelo contrário, conteúdos mais simbólicos e metafóricos como “máquinas de atirar xixi amarelo” ou “cobras que esfregam a lama na cabeça” são afastados na sua importância interpretativa, pois são vistos como fruto da fantasia ou imaginação.
Ambos os conteúdos são representações psíquicas, mas no primeiro caso são lidos no concreto, no segundo pelo abstrato.
Este discurso ambíguo e clivado, não é mais do que uma identificação projetiva do abuso em si, que, por ser tão aberrante e contra-natura, provoca na vítima (e pelos vistos em quem a ouve) uma clivagem do pai bom e do pai mau, como duas entidades distintas e separadas. Por isso, aquele pai “mau” existe apenas na fantasia. Como é difícil integrar e adquirir a ambivalência mais evoluída do bom e do mau como partes de um objeto mais totalizado, a conclusão apaziguadora para todos é a de que a criança mentiu!
A “violência do sistema” reside no facto de exigirmos que um crime psicológico desta natureza seja tratado enquanto fenómeno jurídico puro, sem ter em consideração a natureza e meandros da mente humana. Os protocolos forenses são um exemplo dessa violência, quando sugerem uma abordagem à criança do tipo “conta-me tudo o que aconteceu desde o início até ao fim” (Peixoto, C.E.; Ribeiro, C.; Alberto, I. 2013, p. 206), esperando que ela lhe devolva informação objetiva, concreta e detalhada, sem recurso à imaginação, e onde o discurso simbólico ou material projetivo (como o recurso ao desenho ou brinquedos) deve ser evitado, como nos diz Brown (2009), para não deteriorar o material da investigação.
Segundo Freud, a natureza das representações, e deste modo a natureza da realidade, faz-se a partir da ligação da experiência sensorial em signos ou símbolos, que, transformando a experiência da representação-coisa (processo primário) em representação-palavra (processo secundário) (Freud, 1915), permitem uma inscrição da realidade na memória constitutiva do sujeito (Perez, D. O.; Bocca, F. V.; Bocchi, J. C., 2014). Estas representações dizem tanto respeito ao mundo externo como ao interno, e surgem na interação e reorganização da realidade intrapsíquica e intersubjetividade numa única linguagem – o pensamento. A construção deste pensamento não é natural e sim um processo evolutivo do desenvolvimento, que parte de uma indiferenciação para uma progressiva discriminação dentro e fora, eu e outro, grandes e pequenos, meninos e meninas. Tal como Freud refere “o ego é continuado para dentro, sem qualquer delimitação nítida” (Freud, S., 1929 (1997), p. 11). Por tudo isto, não é possível pedir à criança pequena que faça referência às suas experiências, exteriores ou interiores, de forma precisa e concreta como se pode esperar de um adulto. Mesmo assim, muitas vezes, tal como no sonho, o adulto, já portador de um “aparelho para pensar pensamentos” (Bion, 1962, 1965), utiliza no seu discurso manifesto os conteúdos latentes das metáforas e metonímias para expressar de forma condensada e deslocada, sensações ou vivências de continuidade/descontinuidade provenientes de experiências internas e/ou externas.
É por esta razão que o discurso de uma criança vítima de abuso sexual deve ser visto como o relato de uma vivência inominável, cuja sensação interior se confunde com a exterior, provocando não só uma cisão no pensamento, como um discurso recheado de metáforas e metonímias capazes de simbolizar o que não pode ser processado nem mentalizado. Ao tentar objetivar um discurso desta natureza, parte-se do princípio que tudo o que diz é uma fantasia com muito poucos dados da realidade. Só que para Freud “mesmo quando o sujeito alucina o faz com o material anteriormente percebido, na repetição de processos e vivências do aparelho, sobretudo em parceria entre o mundo interior e exterior” (Perez , D. O.; Bocca, F. V.; Bocchi, J. C., 2014, p. 49 ).
Estes conteúdos inconscientes expressos numa linguagem onírica vão repetir-se ao longo das sessões, de uma forma cada vez mais evidente e cada vez mais angustiante, sinal de que a criança confia na relação continente terapêutica.
“Os chatos que aparecem à noite, querem-me chatear a cabeça, a bater-me à porta, picar-me, picam com o bico, o bico é grande, magoa na cabeça, pica. Os chatos são os homens e a Bruxa (...) a bruxa não tinha bico, assustava-a, o lobo mau gostava de assustar, picava com os meus dentes, o lobo mau foge para as saias da mãe. O Homem apareceu em casa feito gozão (...) sujou-me tudo, sujou-me a cauda, o soutien, sujou a prima, a prima é surda, mandou aquelas cobras, lama e isso tudo, a cobra mandava isso que eu não gostava, mandou a cobra, e a cobra foi buscar lama e depois sujou o vestido todo, atirou a lama para o meu vestido e sujou‐me” e imita com os bonecos o Homem a dizer “ai ai” e a menina a dizer “mau mau”. Depois pede à psicoterapeuta na brincadeira para ir matar “o velho das cobras” e acrescenta “a filha vai ao hospital e o médico vê que tem uma cobra na barriga... têm que tirar a cobra da barriga e prender o homem”.
Faz um desenho da princesa com o vestido sujo, a pensar no castelo e como se sentia presa e assustada, colocando ao lado da princesa uma prima para a salvar, mas a prima, tal como refere em desenhos anteriores é surda, não ouve o que lhe dizem. Embora a psicoterapeuta-prima a tenha ouvido, a inércia do sistema/instituição passa essa mensagem, em cuja impotência ambas estão aprisionadas.
Juntamente com este lado sujo expresso nos desenhos está a ideia de um “furacão” que “tem um buraco que nos leva para debaixo da terra”. Dentro do furacão onde ela está, coloca a psicoterapeuta que “ia ser apanhada por um furacão enorme, que ia levá-la para aí fora, para o rio, o furacão punha-a dentro do rio e ela afogava-se. Dentro do furacão era mau, era muito escuro, era... tinha medo, estava com muito, muito medo. Estava a tremer. (...) a menina foi para dentro de um furacão”.
Frente a conteúdos catastróficos desta natureza, é preciso que a psicoterapeuta (continente) se mantenha do lado de fora deste furacão e não se deixe afogar, mas ao mesmo tempo tire de lá a menina que se sente a ser sugada para debaixo da terra sem poder respirar. Em termos de contra-transferência, este é o maior e mais difícil desafio da clínica psicoterapêutica ao nível da problemática do trauma.
Anne Alvarez (1994) afirma: “as crianças que tiverem a mente e o corpo danificados por intrusões de abuso sexual, violência ou negligência (...) podem vivenciar um tipo de profundo desespero e ceticismo, (...) que requer um tratamento prolongado e põe à prova, ao máximo, a resistência do psicoterapeuta” (p. 3).
Ao final de 2 anos de apoio, a criança diz ao brincar com a boneca-menina e o boneco-menino “ele engana... diz que vai à casa de banho e não vai, vai ao baú dos brinquedos (...) tu conhece-lo” e diz retomando o faz-de-conta “ele deita leite para fazer bebés (...) ele só me quer tocar para deitar leite... mas eu não posso despir‐me (...) ele toca nas maminhas e nas cuecas, por dentro, mete lá a boca e pede-me para pôr a boca na dele... mas não digas que eu ponho porque se não a polícia mata-me”, diz assustada ao mesmo tempo que encena todo este relato com os bonecos, exemplificando os movimentos entre eles. Acrescenta ainda que é na “casa de banho... diz que vai para a cozinha mas esconde-se atrás da porta da casa de banho e fecha a porta à chave quando eu entro. Depois chama-me e depois diz que eu tenho que baixar o soutien e fazer tudo por ele (...) depois diz que me mata se eu não deixar (...) aparece leite na forma que ele aperta, (...) aperta com as mãos...daqui a nada aparece outra vez... Quando ele aperta diz ai tão bom!” Isto é “todas as noites... às 2 da manhã... nunca me deixa dormir... não me pode ver despir”, diz assustada.
O caso é denunciado aos serviços competentes de apoio à criança, e psicoterapeuta e criança vão juntas até lá para que se possam acionar as medidas de proteção.
A psicoterapeuta diz em frente da Assistente Social, que é preciso contar aquele “segredo” para que nada mais aconteça. A criança diz: “vem aí a polícia e mata-me… eu não consigo dormir à noite porque o pai vai ao meu quarto para desligar a internet” e vira-se para a assistente social e diz baixinho “não quero mais aquilo”.
A mãe é chamada e, enquanto fala com a assistente social, psicoterapeuta e criança ficam de novo juntas, sozinhas à espera. A criança começa a bater na psicoterapeuta mas “a fingir” e depois diz “que queria partir tudo, vidros, cadeiras, até ferro partia” e vai dando pontapés a tudo que está à sua volta. Depois olha para a psicoterapeuta e diz-lhe: “queria ser uma fada pequenina para voar por ali...”, para fugir diz a psicoterapeuta, e ela continua “...fugir para a Serra da Estrela... e depois levava a minha gata e ficava sozinha abraçada a ela, e se aparecesse um lobo, levantasse a perna e fizesse xixi em cima de mim? Eu batia-lhe, dava-lhe pontapés”.
Decide-se internar a criança por um dia em Pediatria, mas deixam-na sair para almoçar com o pai e a mãe, após aqueles terem sido confrontados com o que ela tinha dito à sua psicoterapeuta. A decisão é retirar a criança da família provisoriamente, e ela é levada para casa de uns familiares.
Na sessão a seguir à revelação, quem a traz à consulta é o pai, que estava com ela sentada ao seu colo na sala de espera, com um ar desafiador.
Na sala, já sozinha com a psicoterapeuta, a criança pede para que o boneco-homem seja mantido no cimo de uma estante, longe dela, “esconde-o que eu não o quero ver”, e coloca-o dentro da boca do tubarão. Pega na boneca-menina e diz “eu também estou nervosa, bateram-me, ai não enganei-me, foi a minha gata que me arranhou, a minha cadela que me mordeu” e repete pouco depois “eu também estou nervosa, vem aí a minha mãe, ela gosta de ver os meus lábios, não lhe quero mostrar a minha cara”. Durante a brincadeira quer bater nos homens todos, e vê facas e cobras sempre que algum “homem” entra na brincadeira, mesmo sendo um polícia para a proteger. No final da sessão pega numa boneca – a Suzi Segredos, que ouve os segredos e os comenta em voz alta – e diz “esta vai nos dar problemas” e a psicoterapeuta diz que não, porque há segredos que precisam ser contados.
Nas sessões que se seguem, há uma necessidade de se certificar que o boneco-homem fica em cima do armário – afastado dela, e que a mãe a protege. Vai também mostrando a ambivalência face a tudo isto, e ao mesmo tempo a pressão de que é vítima para que desminta tudo e se cale para sempre. Então na brincadeira diz “a mãe quer que não bata mais em ninguém e deixe os porquinhos viverem com o pai” e põe a mãe a falar “não, eu é que sou parva... filhotes eu é que sou parva, não é?” O pai vai à policia e diz que “quer ficar com os filhotes para dormir todo o dia e lhes dar carinhos” e, dentro desta ambivalência, não aceita nenhuma ajuda para a filha pequena, e esta claramente ainda não se sente protegida. Então diz “eu gosto muito do pai, não quero que seja preso, ele pode ficar em casa”. A psicoterapeuta comenta que parece que todos desejavam que fosse mentira e que nada daquilo tivesse acontecido e ela responde: “era tudo mentira, não era o pai era a gata que não me deixava dormir”. Então vira-se para a filha pequena e diz: “estou raivosa” e põe a irmã mais velha e um polícia a protegê-la, acabando por atacar o polícia e soltar o pai da prisão.
Esta ambivalência faz parte do próprio abuso, mas quando é alimentada pela família e por todos aqueles que desmentem e encobrem, torna-se numa nova forma de abuso, um segundo trauma, maior e mais devastador que o primeiro.
“A descrença, o desmentido, agride o processo de simbolização, coloca em dúvida o sentido de realidade, a sustentação do ego, a percepção e a organização psíquica. O trauma acontece quando não é permitido sentir e saber, quando se impõe outra percepção que tenta negar a existência da própria.” (Uchitel, 2001, p. 117).
A noção de “desmentido” surge com Freud, num dos seus últimos trabalhos intitulado Die Ichspaltung im Abwehrvorgang (A cisão do eu nos processos de defesa) (1940e [1938], introduzindo este conceito como um mecanismo de defesa diferente do recalcamento, onde, no lugar de “esquecer”, ocorre a negação. Ferenczi vai também abordar este tema, associando-o à sedução sexual infantil enquanto valor patogénico do trauma, “em que um desmentido ocorre no ambiente próximo à criança” (Favero; A. B. & Rudge; A. M., 2009, p. 171).
Ao longo das sessões, nota-se, no entanto, que os seus desenhos estão mais organizados e as brincadeiras menos violentas.
Enquanto o boneco-homem “viver para sempre em cima do armário” e “não (...) tocar mais aqui em baixo”, a criança anda calma. Quer apenas que a psicoterapeuta repare a “cauda partida da sereia”II e que enquanto “mãe-terapeuta” lhe assegure que está protegida. A lei protetora e eficaz seria a única forma da terapeuta reparar a sua integridade física e psíquica, como criança e como menina.
A criança diz: “o pai só pode voltar para casa se não voltar a fazer aquelas coisas à filha, temos que perguntar à assembleia, a assembleia é que decide”, embora ponha a mãe a decidir também, que ameaça o pai, mas diz “se voltar a fazer aquelas coisas à filha, a filha sai de casa” e depois corrige “ele sai de casa e vai para o mesmo sítio onde estava antes”. Encena uma situação de perigo onde o pai aparece à noite no quarto da filha, mas a mãe, que se confunde com a assembleia, vai em seu socorro, tornando-se ambos – mãe e assembleia – ágeis e eficazes na proteção. Acrescenta a este final feliz que o boneco, que está em cima do armário, “vai car em cima para sempre, nunca vai por os pés cá em baixo até tu seres velhinha”.
Nem o Serviço de Proteção da Criança do Hospital Central nem a Comissão de Proteção de Menores achava necessário partilhar informação com a psicoterapeuta, que continuava o apoio “às escuras”, também ela desprotegida. Um mês após a denúncia, a criança faz um desenho onde diz “tu andas a dormir... tu estavas a dormir, viste o rato e o gato que andavam a brincar, depois tinham ido passear. Foste ver-te ao espelho e estavas toda despenteada, tipo como estás, apanhaste um susto e desataste a correr e foste para a rua e ficaste lá um bocadinho de tempo”.
Neste dia ela tinha entrado de novo a falar à bebé, como na primeira sessão e, ao brincar com o boneco-menino (que tem que ficar em cima do armário), diz: “ele anda maluco atrás de peixe mas não consegue comer”.
Ao longo da brincadeira mostra-se desorganizada, com uma história confusa onde as personagens estavam sempre a mudar de papéis... a sereia era perseguida pelo tubarão “por causa da cauda, o tubarão escondia-se debaixo do mar” e acabava por aparecer de repente e pregar sustos. Para além de retomar as perseguições e ataques, também reaparece na sua brincadeira o tema das marcas no corpo, como se procurasse a prova de que tudo o que disse é verdade.
A psicoterapeuta preocupada liga para a Assistente Social que a informa que a criança tinha voltado para a sua casa, mas que o pai não estava lá a dormir. Ia só visitá-la de vez em quando.
É marcada uma reunião com todos os intervenientes no processo a pedido da psicoterapeuta. Entre psicólogos, pedopsiquiatras, assistentes sociais e pediatras, estavam ao todo oito pessoas sentadas numa mesa a falar sobre o caso desta criança. Só a psicoterapeuta da criança, via o abuso. Todos os outros não estavam certos disso. Uns diziam que as crianças mentem, outros alertavam para o facto de a psicoterapeuta estar demasiado envolvida e poder ter problemas por causa disso, outros relacionavam a crueza dos seus relatos ao facto de ter tido acesso a filmes pornográficos ou afins, outros ainda comentavam “isto não vai dar em nada, não há como provar”. Ao agir denunciando, parece fortalecer-se o abusador pela impunidade e enfraquecer-se a criança pelo seu descrédito e, como dizia Slavoj Zizek, “o risco não é a passividade, mas a pseudoatividade” ao darmos a máscara ao “nada do que se move” (2009, p. 204).
Nesta reunião é dito que as crianças mentem e que podem recriar estas histórias ou porque viram os pais a ter relações sexuais ou porque o viram num filme. E ainda que o comportamento desadequado dos pais, as contradições nos seus discursos podem dever-se ao impacto desta “bomba” na família e, por isso, ser perfeitamente normal. Este pai quando foi confrontado com a possibilidade da sua filha ter sido abusada, disse “ah, pensei que era algo muito mais grave, sei lá, que tinha partido a cabeça” e quando lhe foi apresentado o teor do relato da filha, diz que ela é mentirosa, porque por exemplo, um dia tinha dito que tinha dores de barriga para não ir à escola e não era verdade.
Para além de anularem o discurso da criança “que não vai dar em nada” e que muito provavelmente “é mentira”, dizem que a psicoterapeuta está “demasiado envolvida e que o envolvimento excessivo pode prejudicar a investigação, que não devia ter informação sobre o processo e sobre a investigação para ser o mais objetiva possível, e que além de poder inviabilizar a investigação, ainda pode ser questionado o seu interesse pessoal para tal envolvimento”.
Percebe-se na reunião que os relatórios que a psicoterapeuta é obrigada a enviar para o tribunal, e que descrevem as consultas com a criança, são relatados na íntegra aos pais. O terem acesso a tudo o que se passa dentro das sessões, coloca-nos frente a um outro trauma ético – o da privacidade/confidencialidade – da leitura crua e em equação simbólica da linguagem relacional psicodinâmica do par terapêutico. Incomodada com esta informação, a psicoterapeuta decide suspender os relatórios, e ninguém sequer volta a pedir que os envie, evidenciando a ideia de adiaforização, tal como nos fala Zigmunt Baumam (2013).
Os erros que se repetem em torno da compreensão e aceitação do discurso por detrás do abuso sexual esbarram na ânsia de não interpretar mas fazer prova.
Foram três os principais erros, de acordo com Young‐Bruehl (2012), que, na tentativa de defender as crianças vítimas de abuso sexual, enfraqueceram ainda mais a compreensão do seu discurso.
Por um lado, a afirmação proferida por Roland Summit, psicólogo infantil, que as crianças “nunca mentem ou fantasiam acerca do abuso sexual (...) nem mesmo quando se tentam acomodar às sugestões dos seus entrevistadores”, muito embora bem-intencionada, fez com que se espere das crianças um discurso sem contradições nem incoerências. O autor ainda diz que o discurso delas é fragmentado e confuso, e as histórias são contadas “aos poucos e em pedaços” com “variações, retratações e exageros”, tal como “reféns que se acomodaram àquele que as tomou por refém” (Young‐Bruehl, E., 2012, p. 187). Mas esta outra verdade já não fazia sentido perante a primeira e o que se passou a defender é que a criança não é sugestionada, e nada do exterior a fará deixar de contar toda a verdade do que se passou.
Por outro lado, o debate criado em torno das teorias edipianas, acusando Freud de negar a conotação incestuosa nas relações pais-filhos, com base em fantasias inconscientes, levou Alice Miller (1981, 1984, 1990) a cometer o mesmo erro e a “negar” o inconsciente de forma que este não obscurecesse o trauma inscrito na realidade. Este debate entre fantasia inconsciente e trauma é um debate pertinente, mas conduzido de forma precipitada, enfraquece ainda mais a compreensão da criança abusada (Young-Bruehl, E., 2012). Suprimir o inconsciente é suprimir o simbólico e a linguagem onírica, o que, na ausência destes, impõe relatos crus e realistas, demasiado difíceis de encontrar num “refém acomodado ao seu raptor”. Será importante discutir o que permite distinguir a fantasia (desejo) de um trauma (repúdio) e cabe à saúde mental fazer essa distinção, e não aos tribunais ou instituições policiais.
Por último, a visão dos criminologistas, no sentido de melhor descrever o abusador, e por isso de o tornar mais visível e detetável, acabaram por o esconder ainda mais numa aparente normalidade incompatível com a bizarria do crime de que eram acusados. Comparando-os aos sociopatas pervertidos e ligando aquelas manifestações patológicas à “identidade” possível do abusador de menores, contribuíram para que a incompreensão fosse ainda maior quando o abusador era visto como socialmente adaptado e funcional (Young-Bruehl, E., 2012).
Tudo isto é verdade: as crianças não mentem em relação ao abuso, os seus relatos não correspondem a fantasias inconscientes e os abusadores são uns pervertidos, mas nada disto corresponde a um quadro compreensível e facilmente detetável, pelo que fazer prova será obrigatoriamente interpretar. O discurso tem de ser legendado via simbólico e o abusador pervertido tem de ser visto como suficientemente pervertido para conseguir enganar.
As crianças no período pré-escolar dão informações falsas apenas em 7% dos casos. As mais velhas em 4%. Acima da idade dos 10 anos, as informações são sempre verdadeiras (Eisen, 2006).
Durante os seis meses seguintes, vai-se assistindo de novo ao aumento da insegurança da criança e os conteúdos persecutórios regressam às sessões, igualmente angustiantes e igualmente aterradores. Agora o que a criança repete sistematicamente na brincadeira é a pressão que todos exercem sobre ela para que se cale. Volta a transferir para a psicoterapeuta a agressividade e quer bater-lhe nas sessões com um taco. A força que emprega no taco é forte, mas toda a sua agressividade é vivida em silêncio. Olha para o boneco-homem em cima do armário e diz: “ele não volta a pôr os pés cá em baixo, se pudesse já eu estava em cima dele a dar-lhe com o taco”. A sua angústia aumenta de sessão para sessão “cala-te… o homem já não está aqui na caixa, está lá em cima... a polícia vai-te matar, chora para aí e cala-te”. Na brincadeira todos a mandam calar, mãe, polícias, tio e tia. A sua boneca-menina decide então “fugir para outro mundo”, mas mesmo assim é perseguida pelo pai do polícia que a quer ir buscar. O único que acredita nela é um porquinho, que insiste em protegê-la, mas ela agride-o também e diz: “eu sei que a verdade é que é tudo mentira” acabando na brincadeira por trocar de papéis, ora assumindo o de agressor que a manda calar, ora de vítima que se sente culpada. Enquanto agressor diz: “ou páras de chorar ou eu mando aqui a polícia para te prender... estás a mentir”.
Com o aumento da agressividade, a criança pede na brincadeira para ficar na família da psicoterapeuta, afastando-se da dela. Foge para “um outro mundo” mas neste mundo as coisas não são muito diferentes “as camas são feitas de algodão, mas o leão também ataca lá”. Quando a psicoterapeuta insiste em a proteger contra todas as ameaças, permanentes e inevitáveis ela diz: “não vale a pena esforçares-te, não o consegues vencer”. Por muito que se prenda o leão, ele é sempre solto por um urso-polícia qualquer. Diz que o “leão sente o cheiro dela... sabe que ela está nervosa” e vai tentando evitar as agressões do leão.
Esta ideia de impunidade e ao mesmo tempo de resignação é a própria figuração da “banalidade do mal” como resultado da falha do sistema, e como dizia Hanna Arendt: “o castigo é necessário para defender a honra e a autoridade daquele que foi lesado pelo crime, a fim de que a ausência de castigo não cause a sua degradação” (1964, p. 368).
Um dia, ao final de 6 meses, a criança no jogo faz referência à possibilidade do pai voltar para casa e a necessidade de se trancar no quarto. A psicoterapeuta volta a entrar em contacto com a assistente social, que lhe confirma essa possibilidade. Na sessão seguinte a criança diz que o pai voltou para casa. Vem mais nervosa e agressiva, insultando a psicoterapeuta e dizendo repetidas vezes: “tu não percebes nada do que eu digo”.
Seis meses depois, a Comissão de Proteção de Menores arquiva o processo por falta de provas, e tudo volta a ser como era antes. Ao mesmo tempo, sugere que a criança seja “transferida para uma equipa especializada em abusos sexuais” e dizem à psicoterapeuta que até aí a seguiu e denunciou o caso que não a pode ajudar porque está “excessivamente envolvida” e que o processo psicoterapêutico será interrompido.
Na última sessão, criança e psicoterapeuta brincam já não com uma família de animais, mas apenas com a Coelhinha Sem Nome (a criança) e a Porca Maria (a psicoterapeuta) que têm que se despedir para uma viagem. Cada uma escreve uma carta de despedida à outra.
“Querida Coelha: Está tudo bem por aqui. Quero que saibas que podes confiar na outra porquinha igual a mim, e que lhe podes contar a ela todos os segredos que um dia me contaste a mim. Sê forte, corajosa e lembra-te sempre que eu acredito em ti. Um beijo da tua amiga Porca Maria”.
A Coelha responde, “Queria Porca: Hoje vou aí com um cavalo preto. Gosto muito de ti. Parabéns, gosto muito de você. E que tenhas muitos amigos. Tenho saudades de ti. Beijinho da Coelha”.
Depois pega num leão que volta a perseguir a Coelhinha.
A criança fica sem nome, sem alteridade e intersubjetividade não podendo nomear a sua realidade: anónima. A psicoterapeuta Porca Maria representa a “porcaria” do cinismo e hipocrisia do sistema.
Slavoj Zizek, filósofo e cientista social esloveno, chama de “ato suspensivo de eficácia simbólica” ao processo cognitivo que se rege da seguinte forma: “Sei, mas não quero saber o que sei, e por isso não sei. Sei, mas recuso-me a assumir inteiramente as consequências desse saber, pelo que posso continuar a agir como se o não soubesse” (2009, p. 222). Como a criança dizia à sua psicoterapeuta depois de silenciada e arquivada pelo sistema “a verdade é que é tudo mentira” e assim a mentira de não ser verdade é reforçada e a verdade do acontecido pervertida. Mas como dizia Freud, o inconsciente não conhece a negação (Freud, 1925). Pelo menos aí, a verdade persiste.
Em termos psicanalíticos, tal como muito bem descreve Zizek, a abstenção dos observadores – do sistema, é uma forclusão psicótica e não um recalcamento. O recalcamento implica um reconhecimento que é negado em si próprio, a forclusão rejeita a sua inscrição simbólica como tal, e por isso anula a sua existência intra-psíquica, desvirtuando a realidade, que perde o seu efeito por não ser registada no tempo certo.
“E se (...) essa cegueira, esse violento gesto de exclusão que recusa ver, esse repúdio à realidade, (...) fosse o elemento constituinte íntimo de toda a escolha ética?” (Zizek, S. 2009, pp. 66‐67). Zygmunt Bauman (1988) defende que a “avaliação moral é algo externo à ação em si e decide-se por critérios outros, que não aqueles que guiam e moldam a própria ação” (1988, p. 26). Para aquele autor, a imoralidade ou o que ele chama de “formato invisível da maldade na modernidade líquida” revela-se “quando deixamos de reagir ao sofrimento de outra pessoa, quando nos recusamos a compreender os outros, quando somos insensíveis e evitamos o olhar ético silencioso” e por isso “a verdade mais desagradável e chocante hoje é que o mal é fraco e invisível (...) O mal é débil e amplamente disperso. A triste verdade é que ele está à espreita em cada ser humano normal e saudável.” (Bauman, Z. & Donskis, L., 2013, pp. 11‐12).
Como refere Hanna Arendt, perante o mal “a maior parte das pessoas sujeitar-se-á, mas alguns não o farão (...) pode acontecer em quase todos os lugares, mas não acontecerá em todos. Humanamente falando, nada mais é exigido e nada mais pode ser razoavelmente pedido, para que este planeta permaneça um lugar adequado para a habitação humana” (1964, p. 309).
Tal como foi escrito a propósito do Holocausto, e aqui aplicado ao abuso sexual e sua revelação: “É do nosso interesse que a grande questão (...) – como isso pôde acontecer? – preserve todo o seu peso, toda a sua crueza e desolação, todo o seu horror” (Gershom Scholem, cit. Bauman, Z., 1988) para que nessa “triste verdade” a imoralidade da questão não seja banalizada.
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“How did this happen?” Between abused and abusing: the violence of the “system”.
Concepts such as Bauman’s “Adiaphorization”, Hanna Arendt’s “Banality of Evil” or Max Weber’s “Crimes of the Secretary” serve as the basis for the discussion of Sexual Abuse and the violence of the System that chooses to “look away” to the possibility of a crime, treating it as a pure legal phenomenon, without taking into consideration the nature and meanders of the human mind. is article reports on a clinical case that supports this discussion, highlighting the nature of the child’s discourse, where symbolization helps to represent the unrepresentable, as an account of an unnameable experience, whose inner sensation is confused with the outside, resulting in a discourse full of metaphors and metonymies, which translate the psychic material that could not be processed or mentalized. To deny his report corresponds to a second trauma, bigger and more devastating than the first. It is up to mental health, not courts or police institutions, to distinguish between fantasy (desire) and trauma (repudiation), and to make proof must be, necessarily, interpret its content. “How could this happen?” Is the question that must be asked, so that the immorality of the question is not trivialized.