Revista | Vol 6, N. 1, Junho 2015

A menina, mulher de cor de rosa

Primeira Parte 

Quando começou este processo psicoterapêutico, a Luísa tinha 10 anos e 8 meses. Com esta idade apresentou-se como sendo vaidosa e afirmava que a chamavam de “bicha Channel” na escola, porque gostava muito de cor de rosa. Gostava de ser considerada mais velha, de ter 18 anos e de ser a diretora da escola, pois gostava de “pôr certos”. Revelava ter medo de fazer mal aos outros e, consequentemente, um forte medo do castigo. Os seus maiores desejos eram poder juntar os pais, ser rica e não ser disléxica. 

Após quase três anos de afastamento, regressa e está a três meses de fazer 18 anos. Continua vaidosa, não é diretora da escola, mas por pouco não ganhou as eleições para ser a Presidente da Associação de estudantes da sua escola.Tornou-se uma praticante ferrenha da religião católica, embora comece a queixar-se e a questionar-se, pois não quer “ser quadrada”. E cada vez mais, sonha acordada com o dia em que vai fazer 18 anos, para não ter de aturar mais a sua mãe. 

Ao longo destes anos, a Luísa foi cando cada vez mais consciente da patologia das suas figuras parentais, extremamente idealizadas no início. Muitas das sessões iniciais eram passadas a fazer presentes para levar para os pais, corações, etc., em especial para o pai. Começou a zangar-se com eles quando eles arranjaram os seus respectivos namorados. 

Enquanto criança, nas brincadeiras iniciais, ela fazia quase sempre de mãe e de professora da analista, figuras estas sempre muito autoritárias, más e pouco contentoras. Os conteúdos sexuais apareciam muitas vezes e contava-me que tinha feito um acordo com os pais de que “eles não levariam os namorados lá para casa, para que não deslizassem e não fizessem sexo”. 

Um dia estava a brincar às casinhas com a analista e ela começa a fazer de bebé, o que não era habitual. Pede comida e a terapeuta vai cozinhando. Ela vai dizendo que a comida não presta e reclama por leite, diz que a analista é uma “ama seca” e que “se não lhe é dado leite, ela vai para a cova”. Depois vem devagarinho para perto de terapeuta, é embalada e começa a beber o leite, pede a maminha que se tinha feito em plasticina em sessões anteriores. 

“Porque é que és tu a dar-me colo e não os meus pais?”; “Porque como tu já me tinhas dito, a reclamar, ninguém é perfeito e os pais também não são!”; “E tu, és perfeita?”; “Não!”; “Então?”; “Tento apenas fazer o melhor que consigo!”; “Já chega, já não preciso de mais colo. (...) Vamos arrumar a casinha”. Sempre que cava muito ansiosa, Luísa perdia imenso tempo a arrumar a casinha de bonecas, como se este comportamento da linha obsessiva a ajudasse a arrumar a confusão da sua cabeça. 

Tal como a meio do processo terapêutico (nos 12/13 anos da Luísa), a propósito de uma mudança de gabinete, a Luísa manifestou uma ansiedade primária pré-edipiana, manifestada através do espreitar dos armários, abrindo as portas todas e confirmando que as coisas e os materiais eram os mesmos. 

As defesas maníacas e obsessivas, com todas as suas características de manipulação, omnipotência, controlo, desvalorização desdenhosa e negação da realidade interna, bem como a coexistência de amor, voracidade e ódio nos relacionamentos entre objetos internos, foi sempre estando presente ao longo de todo o processo de desenvolvimento da Luísa. E torna-se precioso ter o devido respeito pelo valor positivo destas defesas, enquanto luta contra as ansiedades depressivas, tal como Winnicott (1958a/2000) nos aconselha. 

Winnicott chega mesmo a citar a Srta. Searl (1929, in Winnicott, 1958a/2000), que escreve: “...numa situação de perigo, (a criança) deseja manter sempre consigo os pais idealmente amorosos e amados, sem medo de uma separação. Ao mesmo tempo, deseja destruir através do ódio os pais malvados e severos que a deixam exposta aos terríveis perigos das tensões libidinais insatisfeitas. Ou seja, na fantasia omnipotente ela devora tanto os pais amorosos quanto os pais severos...” (p. 200). Boas são as figuras parentais que resistem a estas investidas. 

No início da terapia era usual fazerem-se trabalhos plásticos para ela levar e dar ou mostrar aos pais, e em especial para o pai. Numa sessão quis fazer um Óscar para oferecer ao pai no dia do Pai e no meio da conversa em que vai fazendo várias perguntas pessoais (Os teus pais estão vivos? Qual é a tua data de nascimento?), pergunta como é que é um Óscar e a analista inconscientemente responde na transferência e vai de encontro ao seu sintoma: “Olha é assim uma figura sem sexo” e reforça o recalcamento. 

“Pois é, nunca tinha pensado nisso, não tem mamas, nem nada!”, diz. Ao fazer as pernas do Óscar, acrescenta: “E as pernas estão coladas. É como os siameses (...) Eu tive uma irmã siamesa, nascemos coladas de cima a baixo menos a cabeça, fomos operadas aos dois anos, não acreditas?” E a terapeuta responde: “Acredito, sim, que tens o sentimento de viver colada a alguém!”. E continua: “Ela ajudava-me e ia às aulas que eu não queria ir. Queres ser minha siamesa?”. A terapeuta inebriada pelo teor sufocante desta proposta rejeita a paciente, quando tinha uma das melhores oportunidades para dar a entender à Luísa que aceitaria receber todas as suas projeções mais primárias. Luísa em resposta à rejeição da analista: “Pois então és má, és bruxa!”. Entretanto vai falando e construindo um umbigo e umas mamas no Óscar e a analista comenta: “Sabias que os umbigos e as mamas são o que ligam as mães aos bebés no início?”. Ao que a Luísa responde: “Sim, pelo cordão umbilical. Mas as mamas? Ah, sim! Quando mamam? A minha mãe ficou ressequida, era eu numa mama e a Matilde noutra”. E assim, mais uma vez, a Luísa revela a sua falha narcísica mais grave e primária e dá a conhecer um dos seus perseguidores internos, ela destrói-se ou destrói a mãe, consequentemente os castigos são eminentes. Mas desta vez a analista extemporaneamente tenta oferecer-se como figura contentora: “Mas olha eu sou gordinha e não me parece que vá ressequir” e riram as duas. Perdeu-se uma boa oportunidade da analista se ter oferecido como recetáculo desta agressividade primária da Luísa, pois só assim se consegue oferecer um ambiente propício ao descongelamento desta situação da falha. No entanto, a Luísa foi encontrando outras formas de comunicar. 

E foram estas questões ligadas à ambivalência de sentimentos entre o amor e ódio para com as figuras parentais que foram estando sempre presentes, bem como a não resolução do Complexo de Édipo, que nos levou a colocar a hipótese de olhar para a Luísa como uma menina com dificuldades no desenvolvimento ao nível da integração da agressividade e dos sentimentos de culpa, com capacidade de reparação ou, como Winnicott (1990a/2004) nos ensinou, ao nível do concernimento. 

Ao seu ritmo, e não ao da terapeuta, acompanhada por um aumento da qualidade dos seus objetos internos, as defesas diminuíram de intensidade e por altura dos seus 12/13 anos acompanhei a Luísa durante a sua zanga para com o seu papá, que se assumiu como homossexual. Zanga esta extremamente difícil e penosa para a Luísa, pois foi no lugar que não teve junto da mãe que ela procurou o pai como figura predileta até esta idade. 

E como exemplo das várias formas como a Luísa aproveitou o pai para funções maternas e vice-versa, parecendo mesmo que havia uma «dislexia de identificações parentais», podemos ilustrar com o momento em que nos contou que foi ao pai que ela anunciou a sua menarca. O fantasma edipiano transpira, mas o recalcamento falha. 

Um dia estávamos a falar do medo da Luísa acerca das violações e ela própria fala que sabe do medo que a mãe tem que o pai lhe faça mal. Depois fomos brincar e ela chama-me travesti, ao que eu respondo: “Eu sei que às vezes parece que tens uns pais travestis, mas eu não sou”. Fez-se um grande silêncio de perplexidade e depois a Luísa diz: “Mas eles não são travestis verdadeiros!”, “Pois não, são travestis psicológicos, tu sabes que costumam ser a mães a dar os miminhos e a autoridade costuma vir mais do pai e contigo isso acontece ao contrário”; “Pois nisso tens razão! Tu também! Estou eu aqui a ter cuidado com o que digo e depois tenho um deslize e tu apanhas-me logo!” 

Belo, M. R. (2012) tinha introduzido a nuance de que “existe um meio” para além da mãe e que esse “meio” não é invasor para o bebé. Ele está lá, disponível para ser tocado pelo bebé no momento do seu gesto espontâneo (Winnicott 1988a/1990, cit. por Belo, 2013). Este meio, com pessoas como o pai, deixa “uma semente de diferença (ou de diversidade) “não intrusiva” que “germinará em tempo próprio” (Belo, 2013, p. 7), proporcionando uma maior riqueza no mundo interno do bebé. A Luísa foi prova de que “a criança sabe que quando uma coisa não corre bem com a mãe poderá eventualmente correr bem com o pai” (Coimbra de Matos, 2007, p. 73). “Há alguma vantagem que a relação com a mãe seja privilegiada, mas é importante a outra relação... é mau ter um objeto único...” (Coimbra de Matos, 2007, p. 75). E Luísa cedo percebeu que tinha muitas vantagens em recorrer da diversidade dos objetos à sua volta. E assim, quando nem o pai ou a mãe lhe eram su cientes, ela decide recorrer à terapeuta. 

Ao longo de muitos anos foram bastante claros os traços histéricos por um lado e controladores por outro, bem como uma adultomor a muito marcada. A Luísa reconhecia claramente o lugar onde era posta como adulta. A mãe dizia-lhe: “Só tu podes tomar conta do teu pai, que é louco” e ela confirmava “O meu pai não ouve ninguém sem ser a mim”, deixando-se ser empurrada para um destino histérico de excessos, identificando-se também a esta mãe confabuladora. 

Na consulta falava como um adulto de tudo menos do que interessava, falava muito para não dizer nada e estava demasiado atenta ao processo entre mim e ela. Por vezes, eu incorria no erro de dizer “aqui podes ser criança”, mas ela não o queria, porque sabia que isso ia pô-la triste. Com doze anos e meio Luísa dizia: “Eu nunca tive uma família com pai e mãe. Quando se deram bem, eu até tive ciúmes, mas eu queria assim. Fui sempre sozinha com pai ou com mãe”; “Foste sempre adulta ao lado do pai e adulta ao lado da mãe”; “Sim, nunca fui criança.”; “Podes ser aqui”; “Não, não quero car triste! Prefiro que essas coisas quem lá em baixo tapadas, car triste não resolve”. 

A propósito de eu lhe pedir para ela me falar das suas feridas, ela explica, depois de um grande silêncio e arrumando as cartas e os materiais com que estávamos a brincar: “A primeira situação foi quando tinha quatro anos e a minha mãe disse-me que se iam divorciar. Deviam pensar em mim primeiro, quando tiver um lho nunca me vou separar.”; “Na segunda situação, o meu pai disse que ia para o Brasil viver” (na altura o pai arranjou uma namorada rica e foi para o Brasil viver com ela). 

Luísa sabia explicar verbalmente muito bem os seus problemas e não foi um processo fácil abri-la ao espaço do jogo e da brincadeira livre, para que houvesse uma regressão não verbal propícia à retoma do crescimento, pois foi importantíssimo criar um ambiente facilitador que antecedesse a interpretação, tal como Winnicott (1958a/2000) nos ensinou. 

Foi precioso para a analista entender que “não pode existir uma simples reversão do progresso. Para que esse progresso seja revertido, é preciso que haja no indivíduo uma organização que possibilite o acontecimento de uma regressão” (Winnicott, 1958a/2000, p. 377). E essa organização tem uma característica que a distingue das outras, contém em si uma nova oportunidade de descongelar a situação congelada e uma oportunidade também para o ambiente se adaptar mais adequadamente (Winnicott, 1958a/2000). 

Várias vezes ao longo de todo o processo, Luísa dizia à analista que devia de ir mais devagar: “Tu também às vezes vais logo muito rápido ao ponto fraco, devias de ir mais devagar... e estes panos, como tu dizes, não fui eu que pus, puseram-mos”. Depois quer ir jogar ao UNO (uma de nós vai car sem as cartas na mão. Ou ela se deprime ou ela me tira as cartas a mim). 

Segundo Winnicott (1971a/1975), uma interpretação não pode ser “prematura” nem pode “conceder a resposta completa”, pois “aniquila a criatividade do paciente” (p. 161) e “é traumática no sentido de ser contrária ao processo de maturação” (p. 163). 

Luísa explicava que as defesas são vestes que fazem parte dela e do seu ego. Não dão para ser arrancadas; podiam sim ser transformadas. Tem medo da dor interna. Mesmo junto de mim faz o papel daquela que emenda, que é o mesmo papel que faz com a mãe. 

Freud considerava a transferência o motor da cura e da resistência. Do mesmo modo, Luísa inconscientemente repete: «Então esta quer que eu me ponha na posição da miúda que é cuidada?! Eu até percebo, mas eu é que lhe ensino como deve fazer». Ou seja, adere ao que eu sugiro aparentemente, mas depois puxa-me o tapete e põem-me no lugar onde ela está na vida. 

Ela ca a pensar de uma sessão para a outra, mas conta as sessões ao pai e não guarda segredo. Sente-se culpada de estar a viver algo com alguém que não os pais. Conta para descontar na culpa. Passa a ser menos preciosa, mais partilhada e menos minha. 

A ideia de uma intimidade partilhada é vivida com sentimentos de culpa, por estar a receber um cuidado especial. “Se eu destapar as feridas e tu mas curares, eu depois tenho de me ir embora!?”. É assim que Luísa manifesta o medo da perda da nossa relação e esse foi durante bastante tempo o seu lado mais regressivo, de quem experimentou pela primeira vez ser cuidada. Quando em criança se quis “encostar à mãe”, a mãe chamou-a de sanguessuga. Não pode regredir junto da mãe e sentiu-se rejeitada. 

Recordo-me agora quando Winnicott (1958a/2000) nos diz que “a palavra “ m” não poderia ser mencionada em nenhum contexto da análise, e a análise como um todo poderia ser descrita como uma análise do m da análise” (p. 215). E mais uma vez a Luísa me ensina o seu significado, quando assustada me pergunta: “Se eu destapar as feridas e tu mas curares, eu depois tenho de me ir embora?”. 

No entanto, a mãe da Luísa decide intoxicar esta relação promotora do crescimento e da separação mãe – lha e consegue convencer a Luísa de que estava na hora da separação, sim, mas da analista. Perante o pedido verbalizado pela própria Luísa para nos deixarmos de ver, a terapeuta teve de se remeter à mera esperança de que a semente do nosso trabalho viesse a sobreviver, permitindo uma retoma do desenvolvimento. 

segunda Parte 

Após uma interrupção, aos 15 anos, Luísa decidiu regressar com quase 18 anos, para poder ser acompanhada durante a sua zanga com uma mãe extremamente tóxica, controladora e sufocante. Uma mãe, acima de tudo, como ela bem se lembrou, “de vidro”, muito frágil, que se auto pune (“com chapadas”) à frente da lha e a deixa só, com a culpa de apenas querer crescer. 

É inebriante o fedor da toxicidade desta figura materna, que no início do processo terapêutico contamina a mente da analista com uma desconfiança de que o pai abusaria sexualmente da menina. Mais tarde, temos a confirmação plena do seu grau de incapacidade, pois, no calor de uma discussão com a lha adolescente que legitimamente se quer separar, a mãe lhe diz: “Quando olho para ti só me lembro do teu pai a ir-me ao cu”. 

Foi esta cena que despoletou na Luísa uma enorme zanga e a necessidade de regressar ao seu espaço contentor para se permitir questionar: “Se eu fui educada para cuidar da minha mãe e ser assim quadrada, porque é que eu não quero ser assim? Era mais fácil se eu aceitasse car assim, mas eu não me identifico nem com o meu pai nem com a minha mãe, quero ser diferente”. 

Winnicott já tinha alertado que a adolescência é uma passagem que se faz às custas de identificações positivas com adultos e desidentificações com as identificações patológicas da infância, havendo uma passagem do ego ideal para o ideal de ego (com maior simbolização e destrinça entre o eu e o outro e logo menor grau de narcisismo), com uma organização superegóica mais definida e logo menos punitiva (Afrânio de Matos Ferreira, 2007). 

É da própria natureza da adolescência a experiência da morte, da morte da criança, a tentativa da morte do pai e da mãe da infância, e a experiência de renascimento. Segundo Winnicott: “Não é que eles quem mal porque perdem o pai da infância; não, não matam a mãe e o pai da infância. É a sobrevivência dos pais que permite seguir adiante”. O que quer dizer que enquanto terapeuta desta adolescente tive de saber lidar com as várias tentativas de assassinato da minha função de cuidadora e ter uma grande capacidade de sobreviver (Afrânio de Matos Ferreira, 2007). Como por exemplo, quando decidia falar de tudo (verborreia) menos do que interessava. Quando decidia faltar sem avisar, ou chegar muito atrasada e depois não queria sair. Quando era pequena chamava-me de “bruxa” quando não lhe correspondia às expetativas, enquanto adolescente no início dizia-me claramente que não a entendia, que não era assim como eu estava a dizer, etc.. 

Nesta segunda fase da terapia, a Luísa acrescentou mais duas situações que sinaliza como muito difíceis: quando a mãe lhe disse que o pai era homossexual e logo de seguida descobre que o pai já vivia com um homem, a quem não mandou embora para car com ela. Luísa toma aqui as dores da mãe e defende a mãe em tribunal contra o pai. Em segundo lugar, a mãe ca desempregada, deprime ainda mais, “gruda” nela, não a deixa fazer coisas sozinha e ainda lhe diz que olhar para ela lhe faz lembrar as relações sexuais que tinha com o pai. 

Por esta altura, é o pai da Luísa que a traz à terapeuta e ela explica muito bem a sua ambivalência e insegurança: “Na fase em que me zanguei com o meu pai, eu achei que era a minha mãe que me dava mais estabilidade e mais segurança, porque estava lá sempre para mim, mas agora que eu precisava que ela me apoiasse nisto de querer fazer sozinha coisas importantes para mim, ela falhou. Tenho medo de escolher o meu pai e ele também me vir a falhar e depois não tenho nem um nem o outro.” 

E com esta frase da Luísa pensamos que ca claro o que Winnicott nos quis explicar com a importância do desenvolvimento da capacidade de concernimento. Numa situação mais favorável ao seu desenvolvimento, a Luísa teria uma figura materna confiável que pudesse receber os seus gestos mais agressivos e espontâneos e depois estivesse lá para receber também os gestos de reparação por forma a que a culpa se tornasse tolerável. Caso contrário, a perda da capacidade de concernimento leva à sua substituição por formas primitivas de culpa e ansiedade (Winnicott 1990a/2004). 

Assim, muitas vezes a Luísa tinha dificuldades no manejo da agressividade e, devido à sua luta antidepressiva, dizia-me que não queria destapar as feridas e que eu fosse “mais devagar”, pois “ficar triste não resolve”. 

A única cura para a adolescência é o amadurecimento e esse “processo não pode ser acelerado... mas pode ser interrompido e destruído por uma condução inepta, ou pode definhar” perante doença mental (Winnicott, 1984a/2002, p. 163). 

No início da adolescência, as confusões de papéis da Luísa manifestaram-se também através da “vampiromania”, ao falar-me vezes sem conta sobre a série do “Crepúsculo”. Uma das características comuns a quase todos os vampiros é a bissexualidade e esta preferência por homens com um lado feminino mais evidente pode mesmo ser sintomática de uma revolução sexual em que os papéis sexuais rígidos estão cada vez mais deixados de lado. 

No entanto, apesar destas questões da sexualidade que fomos trabalhando em paralelo com as paixões platónicas que ela ia tendo, não me poderei esquecer que nunca se pode esperar o amor de vampiros, pois os seus instintos passionais são narcisistas, objetivando pura e simplesmente alimentar-se. A sua função é absorver, por isso a sua imagem não se re etc no espelho. E neste aspeto, os vampiros assemelham-se bastante tanto ao funcionamento do objeto materno como ao objeto paterno da Luísa. 

Com quase 18 anos, já é ela que retrata a mãe como sanguessuga, que não a deixa viver com o seu self mais espontâneo e genuíno: “Toda a gente espera que eu seja quadrada e bem comportada e eu não quero mais ser assim”. 

Luísa revive, assim, a sua falha depressiva e não basta à analista dizer que está disponível ou proferir bonitas interpretações, ela vai ter de ser uma mãe su cientemente boa que proporciona, através do setting analítico, as provisões parentais em falta (Winnicott, 1958a/2000). E é com grande pesar que atualmente Luísa reconhece,” é muito triste para mim assumir que só a minha psicóloga é que me conhece, nem os meus pais, nem ninguém” e chora. 

Conclusão 

Ao longo de 5 anos de terapia (entre os 10 e os 15 anos de idade), a Luísa ficou cada vez mais consciente da patologia das suas figuras parentais, extremamente idealizadas no início. 

Ao seu ritmo, acompanhada por um aumento da qualidade dos seus objetos internos, a defesa diminuiu de intensidade e por altura dos seus 12/13 anos foi possível a sua primeira zanga para com o seu “papá”. 

A Luísa recorreu muitas vezes ao pai na ausência de uma “mãe su cientemente boa”. Era na pessoa do pai que ela reconhecia qualidades maternais como “contar segredos” ou partilhar as suas intimidades até mais femininas como ir às compras de roupa, contar as quezílias de amigas e de namorados, etc. Depois dela descobrir a homossexualidade do pai, decidiu afastar-se dele durante bastante tempo. Quando quis reatar a relação, o pai não retaliou, como era hábito da mãe. Mais, o pai foi aceitando uma reaproximação lenta, mas mais madura e menos idealizada. 

Assim, depois a Luísa também se permitiu a outra reaproximação e após uma interrupção de três anos, decidiu regressar ao espaço terapêutico, com quase 18 anos, para ser ajudada durante a sua zanga para com uma mãe extremamente tóxica e “frágil”. 

Apesar da Luísa ter desenvolvido um eu diferenciado, as questões ligadas à ambivalência de sentimentos entre o amor e o ódio para com as figuras parentais, foram estando sempre presentes, bem como a não resolução do Complexo de Édipo. O que nos fez olhar para a Luísa como uma menina com dificuldades no desenvolvimento ao nível da integração da agressividade e dos sentimentos de culpa, com capacidade de reparação ou, como Winnicott (1990a/2004) nos ensinou, ao nível do concernimento. 

Na consulta falava como um adulto de tudo menos do que interessava e estava demasiado atenta ao processo entre a analista e ela. Assim, abri-la ao espaço da espontaneidade foi fundamental para que houvesse uma regressão não verbal propícia à retoma do crescimento, pois um ambiente facilitador antecede a interpretação, tal como Winnicott (1958a/2000) nos explicou. 

A paciente reviveu a sua falha depressiva, invertendo os papéis de cuidada e de cuidadora e não bastou à analista dizer que estava disponível ou proferir bonitas interpretações, ela teve de ser uma mãe su cientemente boa que proporcionou, através do setting analítico, as provisões parentais em falta no sentido de um ego mais autêntico (Winnicott, 1958a/2000), o que tem ajudado a Luísa a procurar ser mais genuína. E isso, neste caso, passou claramente pela terapeuta ter desempenhado um papel de objeto cuidador constante, estável e não retaliador, que se deixou destruir e reconstruir ao sabor da espontaneidade da Luísa. Atualmente, apesar do grande sofrimento associado a este processo, tem sido de uma realização extrema sentir a Luísa a brotar, ou melhor, a renascer do meio da cinzas. Luísa tem-me pedido para revisitarmos «cinzas»/conteúdos elaborados na infância (caixa com figuras construídas na infância), e com os olhos a brilhar tem expressão lindas do género “agora tudo faz sentido”. Assim, depois de ter a confirmação de que apesar do afastamento ela ficou guardada dentro de mim, enquanto ser especial e único, o crescimento tem sido sempre no sentido do des orar de uma or muito bonita. 

Referência Bibliográfica 

Afrânio de Matos Ferreira, J. O. et al. (2007). Espaço Potencial Winnicott Diversidade e Interlocução. São Paulo: Landy. 

Belo, M. R. (2012). Winnicott e-prints. vol. 7 no2. Acedido em Junho, 3 de 2014 http:// pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1679-432X2012000200006&script=sci_arttext 

Coimbra de Matos, A. (2007). Vária. Existo porque fui amado. Lisboa: Climepsi

Winnicott, D. W. (1975). O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1971a).

Winnicott, D.W. (2000). Da Pediatria à Psicanálise. Obras Escolhidas. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1958a).

Winnicott, D. W. (2002). Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1984; respeitando-se a classificação de HJulmand, temos 1984a). 

Winnicott, D. W. (2004). O desenvolvimento da capacidade de concernimento. (Trabalho original publicado em 1990; respeitando-se a classificação de HJulmand, temos 1990a). Acedido em Junho, 4 e 2014 http://pt.scribd.com/doc/39923347/ O-desenvolvimento-da-capacidade-de-concernimento 

Notas de rodapé

1 – Comunicação apresentada nas Jornadas da AP, associadas ao II Congresso Luso-Brasileiro sobre o pensamento de Donald W. Winnicott, 22 de junho de 2014, Lisboa.
2 – Membro da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica (AP). 

Notas Finais 

I – Nome fictício.
II – Freud, S. (1914a). Recordar, repetir e elaborar (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II). In Edição Standard da Obra Completa de Freud. Vol. 14. (pp. 83-119). Rio de Janeiro: Imago. 1990. 

Title

Pinky Girl Woman.  

Abstract 

With this article, it pretends to clarify how the theory of Winnicott’s maturation was fundamental to the understanding of a clinical case. In particular, the author will seek to address the importance of an enabling environment that goes beyond a “good enough mother”, because the father, as already discussed by Belo M. R. (2012), may have special relevance, as well as the therapeutic relationship can represent an opportunity for resumption of development. Over 6 years of therapy (between 10 and 18 years of age, with a break between 15 and 17 years), the issues related to feelings of ambivalence between love and hatred of parental figures were always being present and the failure to solve the Oedipus complex. is led us to put the hypothesis to look at Louise as a girl with developmental difficulties to the level of the integration of aggression and feelings of guilt, with repair capacity, or as Winnicott (1990a/2004) taught us, to the level of the concern. Luisa revived her depressive failure, reversing the roles of careful and caring and it was not enough to the analyst say that she was available or deliver beautiful interpretations, an enabling environment prior to interpretation and so she had to be a good enough mother that provides through analytical setting, the parental provisions missing (Winnicott, 1958a/2000). 

Keywords

Enabling  environment • Good enough mother• Father • Therapeutic relationship • development • capacity of concern.