Na obra de Clarice Lispector é notória a profundidade na descrição das vivências interiores das personagens, do luxo de pensamentos e emoções pelo qual estas passam. Clarice valorizava mais estes aspectos do que um longo enredo cheio de peripécias e factos. O que torna a sua obra muito rica para quem gosta de aprofundar a realidade psíquica, sua e de outros.
Nesta obra, Clarice conta-nos a história de Macabéa, de 19 anos, nascida no sertão de Alagoas, pobre e raquítica, a quem só foi atribuído nome ao fim de um ano por se suspeitar que não sobreviveria. A vida de Macabéa não contrariou este nascimento nada auspicioso. Ambos os pais morrem quando tinha apenas dois anos, ficando Maca ao cuidado de uma tia beata com quem se acaba por mudar para o Rio de Janeiro, tornando-se dactilógrafa. Após a morte da tia, divide casa com mais quatro raparigas. Acaba por morrer atropelada por um Mercedes conduzido por um alemão à saída de uma consulta a uma cartomante. A Hora da Estrela refere-se ao momento epifânico da sua morte e já vamos perceber porquê.
O nome Macabéa alude aos Macabeus bíblicos, família judia que lutou com êxito contra forças greco-sírias que pretendiam destituir a cultura judaica das suas tradições e preceitos religiosos.
Macabéa é uma imigrante nordestina que vive desajustada no Rio de Janeiro e que representa a injustiça e a alienação sentida por certos grupos na sociedade em que vivemos, lutando por sobreviver nestas condições.
Clarice era de origem judaica, cujos pais imigraram para o Brasil quando era ainda bebé. Assume ela própria um sentimento de “solidão de não pertencer” (Lispector).
Posto isto, são inúmeras as ligações que se podem estabelecer entre a vivência da própria escritora e a sua elaboração ficcional da realidade que experimentou e que observa no meio em que vive.
Macabéa vivia numa “cidade toda feita contra ela” (Lispector, 1977, p. 17). Pertencia a um grupo social de imigrantes nordestinos deslocados no Rio de Janeiro e com dificuldades de integração. Não pertencia e as suas duras vivências zeram com que sobrevivesse de uma forma alienada de si e do meio em que se inseria.
As dificuldades de Maca terão começado logo no início de sua vida (Clarice teve um início de vida complicado, já que foi concebida na esperança de salvar a sua mãe que estava doente, sendo que isso não se verificou), o que terá desde logo originado que Maca dissesse de si própria que não era muito gente (Lispector, 1977, p. 52).
Como poderia Maca ter desenvolvido uma saudável auto-estima? Podemos suspeitar que a função narcisadora dos seus cuidadores tenha sido altamente deficitária ao longo da sua infância. E é justamente na infância que se constitui a base da nossa auto-estima. “Amamo-nos quando fomos amados e na justa medida em que o fomos” (Matos A. C., 2006, p. 129). E Maca era pobre, fraca e raquítica, sem nome durante um ano. Foi nesta base que se constituiu a sua identificação imagóico- -imagética (dada pelo objecto cuidador) e cujas vivências posteriores de Maca não permitiram ultrapassar. “Mas não sei o que está dentro do meu nome. Só sei que nunca fui importante” (Lispector, 1977, p. 61); “Desculpe mas acho que não sou muito gente. (...) É que não me habituei”; “Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu?” cairia e em cheio no meio do chão” (Lispector, 1977, p. 18).
Prosseguindo com os vários tipos de identificação, Maca tinha um modelo (identificação alotriomórfica). “Sabe o que eu mais queria na vida? Pois era ser artista de cinema” (Lispector, 1977, p. 58). Desejava ser Marilyn Monroe. Ao que o único namorado que teve, Olímpico, nordestino ambicioso que queria ser deputado e gostava de sangue, tendo já matado um homem, responde: “E você tem cor de suja. Nem tem rosto nem corpo para ser artista de cinema” (Lispector, 1977, p. 58). É uma imagem negativa que lhe continua a ser devolvida pelo outro. Quando este namoro termina, fantasia que o é, pintando os lábios de vermelho em frente a um espelho. Fantasias para preencherem um vazio intolerável.
Ao crescer com uma tia beata e sádica, Maca foi constantemente violentada e inibida. “As pancadas ela esquecia, pois esperando-se um pouco a dor termina por passar. Mas o que doía mais era ser privada da sobremesa de todos os dias: goiabada com queijo, a única paixão na sua vida. Pois não era que esse castigo se tornara o predilecto da tia sabida? A menina não perguntava por que era sempre castigada mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida” (Lispector, 1977, p. 31). Vivia numa situação totalitária com a tia, única cuidadora. Nunca teve acesso a uma relação triangular com mais do que um cuidador, a diferentes opções ou perspectivas. “Já não sabia mais ter tido pai e mãe, tinha esquecido o sabor” (Lispector, 1977, p. 32). O único cuidador não respondia de forma adequada, mas sim com crueldade e nos antípodas do amor. Todos os seus prazeres eram retirados, toda a possibilidade de desenvolvimento boicotada. Sem amor e sem possibilidade de fantasiar e experimentar, a sua autonomia, a sua capacidade auto-reflexiva ficaram bastante limitadas. As suas vivências não permitiram o desenvolvimento de uma sólida identificação idiomórfica, Maca era atacada, culpabilizada, perseguida, inibida e por tudo isto limitada na construção de símbolos, na vontade de pensar e experimentar, na necessidade de criar. Só lhe restou a obediência e a submissão. ”Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou dactilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola” (Lispector, 1977, p. 39). Esta elaboração da sua identidade permitia-lhe reconhecer-se como alguém e não resvalar para um sentimento desintegrador de perda de identidade.
Macabéa não se podia expandir e a sua única opção foi penetrar por pequenas brechas que encontrava onde ninguém a tinha proibido, onde não se sentia culpabilizada, onde não era invadida, onde conseguia encontrar uma oportunidade de se nutrir. Não tinha tido a oportunidade de se desenvolver para ao menos aprofundar muito nestas pequenas brechas mas pelo menos alguns pequenos alimentos tinha encontrado. Todas as manhãs acordava mais cedo que as colegas de casa para ouvir baixinho a Rádio Relógio, “que dava hora certa e cultura, e nenhuma música” (Lispector, 1977, p. 41) com o som de gotas a marcar a passagem dos minutos. Entre os pingos do tempo, anúncios e curtos ensinamentos. Como o facto de haverem sete bilhões de pessoas no mundo o que a consolou, já que haveria então muita gente que a poderia ajudar. Ainda mantinha alguma esperança. Aprendera também que se se arrependesse em Cristo, Ele lhe traria a felicidade e que não se deveria vingar. Então Maca arrependia-se de tudo e não se vingava de ninguém. Continuava submissa. Fazia colecção de anúncios em que o preferido era de um creme para a pele bem gorduroso que imaginava poder comer já que tinha falta de gordura. O seu luxo era tomar café frio antes de dormir mas mesmo desse luxo era castigada com azia ao acordar. Mesmo neste pequeno prazer continuava a ser castigada como se não o merecesse. Acordava mais cedo ao Domingo para estar mais tempo sem fazer nada. E ia uma vez por mês ao cinema. Nestes momentos, Maca encontrava o espaço para estar com ela própria, algo que terá sido muito raro na sua infância. Não terá sido fácil entregar-se à fruição de um movimento espontâneo. A constante invasão terá contribuído para a sua dificuldade em olhar para o seu próprio corpo, em pensar em quem é, em se questionar e obter respostas e construir sonhos. Terá tido que isolar-se. Não terá tido o espaço potencial para o brincar criativo essencial à construção e utilização de símbolos. Não terá experimentado a confiança durante um período suficientemente longo para o estabelecimento de um self autónomo (Winnicott, 1975).
Esta tia terá com certeza afectado a integridade do self de Maca. Não consegue enfrentar a realidade nem se consegue pensar a si própria. Recorre a um isolamento, primário, como defesa.
Não teve o espaço para brincar e fantasiar. Não lhe permitiram que o seu gesto espontâneo se realizasse. Houve submissão e uma constante invasão que poderá ter originado aquilo que transparece ao longo do livro como um sentimento de perda do self (Winnicott, 1975).
Tomava muitas aspirinas. “É para eu não me doer” (...) “eu me dôo o tempo todo” (Lispector, 1977, p. 68). Mas não chorava por causa da vida que levava, não sabia que era infeliz, pensava que era “obrigada a ser feliz. Então era.” (Lispector, 1977, p. 31).
“Mas também não se importava de sofrer um pouco já que sofrer um pouco era um encontro com ela mesma.”; “Vivia de si mesma como se comesse as próprias entranhas.” (Lispector, 1977, p. 41). “Para adormecer nas frígidas noites de Inverno enroscava-se em si mesma, recebendo-se e dando-se o próprio e parco calor”.
Achava que nada merecia, não se ofendia e desculpava-se sempre de tudo. Tinha “ar de se desculpar por ocupar espaço” (Lispector, 1977, p. 30). Quando foi despedida pediu desculpa pelo aborrecimento. Seria com certeza culpa sua. Não gritava, não questionava, não se revoltava, não agredia ninguém, a não ser ela própria sem se dar conta disso. Resignava-se.
O seu self imaturo e resignado estava disponível para quem lhe pudesse dar a mão e ajudá-la a retomar o seu desenvolvimento suspenso, crescer e expandir o seu verdadeiro self (Winnicott).
Pena ter sido uma cartomante que ganhava a vida explorando as vulnerabilidades de tantos que precisavam de se agarrar a alguma coisa que lhes devolvesse a esperança e os ajudasse a encontrar um caminho. E não um bom analista que lhe proporcionasse o que Maca não tinha tido: o ambiente e a relação de qualidade que lhe permitiriam encontrar-se, desenvolver-se, construir novas relações para, entre outras coisas, entrar em contacto com o que o seu passado tinha tido de patogénico e elaborá-lo sentindo que viveria em lugar de sobreviver.
A cartomante sabe a vida de Maca e como tal “adivinha” e reconhece a tragédia que esta tem sido, aparentemente empatiza com ela, conta-lhe coisas suas para estabelecer uma relação com ela. E esta se sente reconhecida como pessoa, compreendida. A sua necessidade de alguém e de esperança era tal que não foi difícil acreditar nas previsões da cartomante. Mal saísse daquela porta, a sua vida iria mudar! Conheceria um bonito e rico homem alemão que a trataria muito bem, com quem se casaria e seria muito feliz. O facto de lhe ter sido devolvida a esperança por alguém que pela primeira vez lhe transmite atenção e compreensão faz com que Maca renasça. Quanto a mim foi neste momento em que Maca ca “grávida de futuro” ela que tinha “ovários incapazes de produzir” que se deu um renascimento na esperança e no sonho do outro por ela e não só no momento da sua morte, a Hora da Estrela. Maca sente ter nascido sendo aquele o primeiro dia da sua vida.
O facto de “estar no vazio de outros ia-a tornando transparente, desvitalizada, como se esse lugar não fosse um sinal de desvalor, de não legitimidade de poder ser, um anunciar de morte” (Saraiva, 2011, p. 53). E aqui, na relação com a cartomante, ela ca no lugar de esperança de uma relação mas fugaz, pontual.
Quando sai de casa da Cartomante, Maca é atropelada por um alemão num Mercedes e ca agonizando até à morte numa sarjeta. É vista por várias pessoas, é o centro das atenções e permite-se ter consciência de si própria. Repete “Eu sou, eu sou, eu sou, eu sou”. Havia reconhecido o seu passado momentos antes, permitiu-se sentir a infelicidade que a sua vida lhe trazia e teve a esperança de vir a ser feliz. E quando é atropelada podemos supor que Maca continua a sentir que a sua vida estava mudada e que era vista. Juntaram-se várias pessoas em seu redor. Finalmente olhava para si e olhavam para ela. Finalmente algo mudara. Era a Hora da Estrela.
Com um bom analista, alguém com concavidade (Saraiva, Maria João, 2011), Maca poderia ter-se encontrado de outra forma, desenvolvido-se, desraquitizando-se e tomado as rédeas da sua vida. Os cruéis e malignos objectos externos introjectados que a esvaziavam, a culpavam, a alienavam e a deprimiam poderiam ter sido substituídos numa nova relação por novos objectos e, principalmente, por si própria, diminuindo os seus sentimentos de culpabilidade, tornando-a menos depressiva e permitindo-lhe integrar e expandir o seu verdadeiro Eu. Os traços patológicos que a comandavam seriam desmantelados e o seu self reconstruído ultrapassando as crenças que perturbavam a sua expansão.
Maca seria, de facto, um caso bastante indicado para uma psicanálise, onde poderia “retomar o desenvolvimento outrora suspenso numa nova relação sanígena e desenvolutiva” (Matos, A. C., 2011); o analista compreenderia este seu sofrimento e ajudá-la-ia a desenvolver as capacidades de elaborar o seu passado e a sua dor, reconstruindo a sua história e desenvolvendo a sua capacidade de reflectir e de se encontrar com os seus sentimentos recalcados. Encontraria no analista alguém verdadeiramente empático e interessado em si e na sua expansão.
Maca sentir-se-ia protegida e apoiada na colocação da culpa e na direcção da sua agressividade nos alvos certos e não nela. Maca reconheceria a sua força perante as circunstâncias da sua vida, como o meio em que esteve inserida lhe orientou a vida e como poderia aproveitar a força que a tinha feito sobreviver a tanto para não existir apenas, mas para a conduzir num caminho que lhe fosse mais favorável, para viver. O seu narcisismo poderia ser restaurado e a sua vida ser orientada pela esperança que poderia agora sentir com a sua estrutura psíquica consolidada, com a sua capacidade de pensar, sentir e sonhar desenvolvida.
A imagem de si própria espelhada pelo que o analista lhe devolvia alteraria a que inicialmente se tinha construído e esta tomada de consciência permitiria o desenvolvimento do seu verdadeiro self. Por um lado, através de um processo de desidentificação dos traços que lhe haviam sido impostos e, por outro, conduzindo o processo de descoberta das suas potencialidades que a permitiriam expandir-se, reconstruir-se e reinventar-se ao longo da vida. A sua permanente reconstrução idiomórfica. Por via da elaboração e da criação.
Maca descobriria um novo estilo de relação com um novo estilo de objecto que começaria a estar presente na sua vida.
Maca ganharia a confiança para se relacionar com melhores objectos dando-se valor nas relações. Maca teria direito ao grito, à revolta, à escolha, a experimentar e a sentir, a decidir por si própria. A reconhecer os momentos de infelicidade e a procurar a sua própria felicidade.
A sua identidade distorcida e alienada poder-se-ia encontrar com o que de bom o meio lhe poderia oferecer e com o que de seu deveria deixar tomar espaço para sintonizar o que em si estava distorcido. Distorções são uma fonte de dor e um sugador de energia.
Mais energia e menos dor. Menos desgaste e mais felicidade. Maca teria assim um renascimento não na morte mas na vida.
Lispector, C. (1977). A Hora da Estrela. Lisboa: Relógio d’Água.
Matos, A. C. (2002). O desespero: Aquém da depressão. Lisboa: Climepsi.
Matos, A. C. (2002). Psicanálise e psicoterapia psicanalítica. Lisboa: Climepsi.
Matos, A. C. (2007). Vária. Existo porque fui amado. Lisboa: Climepsi.
Matos, A. C. (2011). Relação de Qualidade – Penso em ti. Lisboa: Climepsi.
Saraiva, M. J. (2011). Até mim: Vivência da psicanálise. Lisboa: Coisas de Ler.
Winnicott, D. W. (1975). O brincar & a realidade. Rio de Janeiro. Imago.
The hour of the star.
This article analyses the Macabéa character from Clarice Lispector’s novel “A Hora da Estrela” from a psychoanalytic approach. Reflections of a psychoanalytic nature are illustrated with excerpts from the book with the goal of understanding this character ́s life path, how her identity was built up and how the relationships with those around her were established. In this way, it becomes possible to develop a higher attunement with her emotions. is attunement is extremely important to imagine how could Macabéa have bene ted from an analytic process. is article describes, based on the novel, how Macabéa feels reborning when relating to a fortune teller. And imagines how the novel could have had a different ending if Macabéa was reborn with an analyst instead who would facilitate an environment and a quality relationship, which would allow her to resume her suspended development, change her relationship patterns and the course of her life.
The hour of the star • Clarice Lispector • psychoanalysis.