Revista | Vol. 5, N. 2, Dez 2014

Winnicott para André Green – três detalhes duma homenagem

 «Celebrar a obra dos autores que se admira permite ampliar os seus conceitos e fazer avançar a nossa própria teoria.» (Green, 2007, p. 86) 

É nesta perspectiva que André Green aborda a obra de Winnicott, a que atribui um papel fundamental na psicanálise pós‐freudiana. Não deixa de ser curioso, se temos em conta que a sua formação se deu na escola francesa e, mais concretamente, na proximidade de Lacan, muito embora se afaste do seu pensamento à medida que vai elaborando o seu próprio, sempre num diálogo atento às diversas tendências da psicanálise, muito especialmente britânica. Esta atenção selectiva permite‐lhe aproveitar a novidade de alguns grandes analistas na configuração de alguns dos seus próprios conceitos, como o do «trabalho do negativo», do «tempo explodido» [temps éclaté] ou da «terceiridade» [tiercéité]. A sua escolha das temáticas winnicottianas está, pois, decerto, orientada pelas suas próprias opções analíticas. Mas esse facto, que denota o olfacto investigador dum autêntico criador e a sua capacidade de diálogo, não é senão a indicação dum critério para a compreensão da tarefa do analista no seu acesso ao ser humano. É, por isso, especialmente interessante assistir ao seu encontro com o pensamento de outro, fazendo-o seu e, nessa medida, transformando-o. Foi o que aconteceu com vários outros autores, como Bion e Daniel Stern, para não falar de Lacan. Sem pretender debruçar‐me sobre essa transformação, pois ela integra a própria via greeniana, que não nos incumbe agora, irei tentar, com a requerida brevidade, mostrar o que Green considera ter encontrado em Winnicott. 

Em primeiro lugar, centrar‐me‐ei na importância atribuída a A Natureza Humana, que Green, brincando com o termo, considera um «escrito transicional» (entre o inédito e o publicado), e do qual diz que, pretendendo situar‐se na «continuidade» de Freud, o «completa», sem com ele romper (Green, 2007, p. 14). Digamos, contudo, que, apesar da fórmula comedida como menciona a contribuição de Winnicott, «em transição entre Freud e Mélanie Klein» (Green, 2007, p. 61), é «a questão do futuro da Psicanálise» que considera estar em jogo no seu contributo (Green, 1975, p. 193). Em segundo lugar, procurarei sublinhar aquilo que Green considerou como sendo os contributos fundamentais de Winnicott, que fazem dele não só um «pensador formidável» (Green, 2007, p. 14), como também «o verdadeiro leader da corrente independente» (Green, 2007, p. 30) na psicanálise britânica. A minha leitura parte, fundamentalmente, da colectânea que Green publicou em francês em 2005, sob o título sugestivo de Jouer avec Winnicott, onde reúne cinco textos, procedentes de diversas conferências e comunicações, proferidas entre 1987 e 2000, que, numa edição prévia (2000), ligeiramente diferente, fora publicada em inglês sob o título Andre Green at the Squiggle Foundation

A natureza humana 

Sintomaticamente, Green compara esta obra inacabada e póstuma (1988) com o Abriss der Psychoanalyse de Freud (1938): ambas expressam, em síntese, o pensamento dos seus autores na sua plenitude, quando a experiência vivida de analistas procurava uma formulação pregnante e comunicativa. 50 anos de Psicanálise as separam. Para Green, a evolução que neles se deu teve em Winnicott um dos mais altos expoentes, que quer pela sua «liberdade de pensamento» (Green, 2007, p. 14), quer pelo seu apego à sua formação inicial como pediatra, soube sublinhar a «continuidade entre a pediatria e a psiquiatria e psicanálise da criança e do adulto» (Green, 2007, p. 15), libertando a concepção do humano do vínculo biologista, que era dominante em Freud, e superando a cisão, por este estabelecida, entre a terapia da neurose e da psicose, mediante uma compreensão unitária do desenvolvimento, que, sem anular as diferenças conceptuais, permite cuidar de ambas, além de contribuir a definir os estados borderline. Neste sentido, sublinha o que considera ser a importância da «diferença capital de ponto de partida» (Green, 2007, p. 70) entre ambos: o facto de Winnicott ser pediatra de formação. Esta diferença, tantas vezes assinalada também por Coimbra de Matos, leva-o a partir, fundamentalmente, da experiência do pediatra que constata que «o bebé pode adoecer», no colo da mãe, afectando o seu processo de crescimento e amadurecimento – algo que a Freud sempre lhe esteve vedado na análise. Ora este diferente ponto de partida constitui o princípio do que Green designa como uma «eclosão criativa» (Green, 2007, p. 79), que culmina na elaboração de noções como a de «jogo» ou a de «objecto transicional», que dotam a invenção de instrumentos conceptuais fundamentais para o acompanhamento do próprio processo de desenvolvimento individual, iniciado muito antes da fase edípica. Neste sentido, a economia e tópica freudianas perdem protagonismo, ante a importância dos usos e funções psíquicas, que Winnicott procura estudar na prática analítica do processo de amadurecimento. 

É, pois, importante notar, que sem utilizar expressões tão radicais como a de «grandiosa revolução na Psicanálise» (Abram, 2013, p. 1) ou de «mudança de paradigma» (Loparic, 2001, p. 7; 2006, p. 21), Green ressalta claramente que Winnicott constitui «o contributo mais importante do período pós‐freudiano» (2007, p. 81), ao «expandir a fronteira metafórica, que divide o interno do externo, numa área intermédia, como espaço de jogo de fenómenos transicionais» (Abram, 2013, p. 191). 

A «natureza humana», apesar de um nome tão clássico, filosoficamente ligado a concepções essencialistas do ser humano, que tendem a considerá-lo de um ponto de vista substancialista, adjudicando-lhe uma forma de ser fixa, imutável, predeterminada, revela-se em Winnicott como uma designação evolutiva, que não só não pressupõe o domínio da «natureza» em sentido biológico, à maneira freudiana, e da interioridade individual, como acentua o papel do entorno ambiental, considerando primário o carácter relacional dessa «natureza», definitivamente mais cultural que propriamente natural (Green, 2007, pp. 14‐15). 

Esta linha interpretativa é aplicada por Green, ciente das implicações filosoficas, que desconecta conscientemente, à definição do que considera as grandes linhas do pensamento renovador winnicottiano na sua obra culminante: «o estabelecimento de relação com a realidade», «a integração do self como unidade, a partir do estado de não-integração» e «o alojamento da psique no corpo» (Green, 2007, p. 17). Limitar-me-ei aqui a atender a estes três vectores-base da interpretação, que o autor, noutros textos, estende a questões particulares. 

A relação com a realidade 

Este ponto fundamental, estabelecido muito cedo por Winnicott como básico na sua compreensão, pressupõe a «importância primordial da realidade externa» no desenvolvimento do bebé. Este vector influi inclusive na definição do que é a «pulsão»: mais importante do que o carácter energético e a sua correspondente economia na dinâmica psíquica, em busca de homeostasia, tal como a entendia Freud, Winnicott vê na pulsão uma «expansão que impulsa para diante, afim de obter gratificação» (Green, 2007, p. 29). Em Freud, o centro da actividade psíquica está no mundo interno, a cujas exigências deve responder, reagindo ao exterior como a uma intrusão, pelo que desenvolve mecanismos defensivos, determinantes da elaboração de noções como super‐ego e recalcamento. «A realidade externa só aparece após a perda dos objectos que antes davam satisfação», diz Green (2007, p. 65), sublinhando que, em Winnicott, o centro da vida psíquica está, pelo contrário, desde o início, no exterior, não tanto no objecto externo propriamente dito, que «só se produz após a separação entre mãe e lho», quanto no movimento em direcção a ele, com relação a ele. Este movimento elabora‐se emocionalmente, mediante uma imaginação que procede, inicialmente, por ilusão, tendo esta a função positiva de viabilizar a criação dum âmbito intermédio de «transicionalidade», que ao mesmo tempo que une, separa, dando tempo para o estabelecimento da autêntica relação de objecto. 

Da atenção à realidade externa na formação psíquica surgem, portanto, instrumentos conceptuais como «objecto» e «fenómenos transicionais», que, para Green, constituem «o mais original contributo de Winnicott» (Green, 2007, p. 28) para a Psicanálise, para além da elaboração duma teoria da imaginação e da função «positiva» da ilusão, que considera ter precedência, inclusive, sobre a própria pulsão (Green, 2007, p. 30). Mas tudo isto tem que ver com a sua compreensão do self

A noção axial de integração do SELF 

Reflictamos um momento sobre a própria noção de self. Muito agudamente, Green chama a atenção para a diferença entre dizer «eu» (o «ego» à maneira de Freud) ou referir-se-lhe como um «si mesmo» (ing. Self; al. Selbst). «Não há nada mais perigoso nas diversas línguas do mundo, que as palavras “eu sou”», refere em citação de Winnicott (Green, 2007, p. 24). 

Filosoficamente, a questão tem um carácter central na diferenciação entre a modernidade e a actualidade, considerando esta não na sua continuidade daquela, mas no que, justamente, tem de ruptura com ela, quer se lhe queira chamar pós-modernidade ou não. O eu é o sujeito de representações e acções (Descartes, Kant), o núcleo originário do ser humano, o pólo inicial de todas as referências ao mundo (Husserl), definindo‐se pela contraposição ao «não-eu» (Fichte). Partir do Eu (penso=sou), como princípio, significa edificar o mundo dos objectos como construção ideal (isto é, mediante ideias) do sujeito, seja teórica ou cientificamente, seja prática e habitualmente, seja por projecção de conceitos (Kant), seja por antecipação de objectos de desejo (Nietzsche). Este «idealismo» marcou o pensamento da modernidade duma omnipotência assumida como ideal da razão e natureza humanas. 

Relativamente a esta perspectiva, surge no século XX uma outra leitura da maneira de ser dos humanos, que, mais modestamente, fala de si própria não em forma de «primeira pessoa» (ing. I), mas de aquilo que me é próprio, que posso dizer de mim mesmo (ing. Myself): aquilo que cada um diz de si mesmo. Na filosofia, esta noção traduz-se como o Mesmo ou a Mesmidade (por contraste com o Outro, a alteridade ou Outridade). Esta maneira de falar de mim próprio parte da presença do Outro, para se definir a si mesmo por distinção, indicando, pois, que o eu toma consciência de si na diferenciação e separação daquilo a que inicialmente estava indiferenciadamente unido. O «Eu» indica sempre um ponto de partida, uma unidade inicial. O Mesmo assinala sempre o ponto de chegada: sou o resultado duma síntese do que identifico como meu e não do Outro, de que me destaco e separo, ou de Outrem, dos outros entre os quais vivo. O pensador Heidegger, por exemplo, opondo-se à filosofia moderna, caracteriza o ser-no-mundo humano (Dasein) como tendo sempre a qualidade do «em cada caso meu» (Jemeinigkeit), sublinhando assim esse carácter de mesmidade, ligado ao meu estar no mundo. 

Tem por isso muita importância que Winnicott fale fundamentalmente dum self (um si mesmo), e não tanto dum eu, à maneira freudiana. Atendendo ao que chama «uma dificuldade de vocabulário», Laura Dethiville (2008, pp. 108‐110) tem o acerto de ressaltar a dificuldade de tradução de I, me e self, habitualmente presentes na linguagem winnicottiana, e de chamar a atenção para o facto de uma versão indiferenciada implicar «uma perda do achado [por Winnicott] e, sobretudo, deixar à margem o que ele tentou introduzir». Para Dethiville (2008, p. 110), o eu de Winnicott é apenas uma parte do global self (o todo, bem mais difícil de alcançar, embora primordial), uma função específica: a «função de princípio organizador» da nossa acção, o nosso eu consciente, falso e verdadeiro. O self, em contrapartida, designa o todo que sinto meu, mas de que até nem tenho perfeita noção, parcialmente oculto a mim mesmo. Essa caracterização, que Green sublinha, remete, pois, para um processo de diferenciação do Outro e para a necessidade originária duma operação não consciente de integração das partes ou fragmentos, de que a minha identidade vai sendo feita. Para Winnicott, essa operação, construtiva mas também destrutiva, dá-se em várias frentes, ao longo do processo de amadurecimento, compreendido como um caminho para uma integridade, que não está no início, como definição prévia da pessoa humana, mas no final, como resultado de um esforço, dum exercício. Neste, é determinante a participação da mãe «su cientemente boa», que, inicialmente ainda não reconhecida como «outro», colabora fomentando, no holding, mas também nas brincadeiras com o bebé e na abertura à presença segura do pai, a capacidade da criança para se libertar do estado fusional e se separar do(s) outro(s), unindo em si numa resposta integrada o que sente seu: o self.
Se a colaboração da mãe não é suficientemente boa, este processo realiza-se com mais dificuldade e hesitações, criando uma insegurança que, nos piores casos, pode produzir uma regressão, paralizadora do processo de amadurecimento e potencialmente esquizoide. Nesse caso, o self não chega a formar-se plenamente e o que se dá é uma desintegração, que, ao contrário da fase inicial de não‐integração, se traduz num caos interior, regressivo e incapacitante para o estabelecimento de pontes quer com o próprio corpo, quer com o mundo exterior. 

Compreender o processo de formação ou amadurecimento da personalidade como um movimento e função de ordem ou integração é, pois, consequente com a definição do self e tem como consequência a interpretação da análise como um apoio à reconstrução da capacidade de integração perdida, a que Winnicott chama «retoma do amadurecimento», que constitui tema e mote do nosso presente Congresso. 

A chamada de atenção de Green para este fenómeno como elemento inovador em Winnicott ressalta, pois, directa e indirectamente, os novos instrumentos conceptuais: não só a concepção do self, mas também as funções que constituem os meios fundamentais da sua realização – a constituição imaginativa do espaço simbólico ou terciário: o pai, o jogo, os fenómenos transicionais. 

Psique e corpo 

A última temática abordada por Green é a que em Natureza Humana (Winnicott, 1990, p. 143) se traduz como «localização» ou «alojamento» [in‐dwelling] da psique no corpo: o habitar psíquico no corpo, fazer dele a sua casa. Esta temática volta a acentuar a importância do uso especificamente winnicottiano da linguagem, que já motivou a importante obra de Jan Abram (1996) e que bem merece a honra próxima dum dicionário (Loparic, in nuce). 

Ao contrário de Freud, para quem a pulsão tem uma carga eminentemente somática, Winnicott não parece considerar que o corpo constitua o ponto de partida do que, para ele, é o núcleo mais primitivo do desenvolvimento propriamente humano: a emotividade. Embora com manifestação somática, o emocional é fundamentalmente psíquico e, inicialmente, na fase de não-integração, não localizado. A localização implica já um movimento integrador, essencial no processo de desenvolvimento. Assim, a questão psico‐somática só surge como etapa deste processo, consistindo numa das primeiras tarefas constitutivas do self: o «in-dwelling da psique no corpo». Green, muito à maneira francesa, que distingue linguisticamente o corpo-matéria (corps) do corpo humano vivo (chair) chama‐lhe «encarnação», termo que também usa Dethiville (2008, 120 ss.) no seu livro. Este conceito, tão presente na fenomenologia da vida de Michel Henry, por ex., é, contudo, entendido por Green como uma noção «percursora» do «eu-pele», introduzido por Didier Anzieu a partir de 1974. Ambas as referências, no entanto, contribuem para esclarecer o conceito, tal como Green o recebe de Winnicott. 

Para Michel Henry, na verdade, a «encarnação» é experiência principal e cunho da condição humana: é o sentir humano do próprio corpo como «carne», e não como um mero corpo físico, à maneira do que percebemos sensorialmente ao tocar um objecto exterior. As coisas não experimentam o ser tocadas. Nós, pelo contrário, somos carne e «a nossa carne [chair] não é senão aquilo que ao experimentar-se, ao sofrer-se e padecer-se e ao suportar-se a si mesmo, e, portanto, ao desfrutar de si mesmo, a par das impressões sempre renascentes, se encontra por essa razão capaz de sentir o corpo que lhe é exterior, de o tocar e de ser por ele tocado» (Henry, 2000, p. 8). A experiência localiza o corpo próprio como carne: dá-lhe lugar como meu corpo, minha carne. Esta não é para mim, portanto, algo dado, algo que possua desde o início: é o que faço meu, é o que integro em mim como habitat, ao fazer a experiência do viver. Esta reflexão ajuda-nos a compreender que, para Winnicott, a vinculação propriamente humana ao corpo seja de ordem secundária, derivada da mesma operação que, na direcção contrária, vincula a psique ao ambiente, ao mundo exterior. O bebé não sabe que tem corpo, aprende a conhecê-lo e a usá-lo, fazendo-o seu ao explorar o mundo exterior, que não pode fazer seu. 

Didier Anzieu vai, neste sentido, ainda mais longe, sobre uma base que muito deve a esta compreensão de Winnicott, ao estudar a função da pele como superfície corporal e limite, que possui uma face exterior e outra interior, e permite paulatinamente diferenciar o meu do não meu. O bebé nos braços da mãe vai percebendo a carícia e perícia maternas como uma forma de comunicação: «a massagem devém mensagem», a pele sensível é o órgão da comunicação e, por isso, também da diferenciação, é um filtro e uma fronteira (Anzieu, 1995). 

Fiel à sua vocação de atender ao «entre», Green, lendo Winnicott nesta perspectiva enriquecedora, interpreta assim a referência psicossomática: «devemos ter em conta a dupla diferença entre o somático e o psíquico (unidos e separados enquanto tais), e entre o self e o ambiente. Situarei o self entre o corpo e o mundo externo - ou seja, o outro; e a psique como estrutura intermediária entre o organismo e o ambiente. Mais do que uma oposição entre um “interior profundo” e um “exterior longínquo” trata-se duma definição do self como experiência imediata limitada por dois exteriores: um na profundidade do corpo, outro para além dos seus limites, no mundo.» (Green, 2007, pp. 19-20). Se usarmos a terminologia anteriormente mencionada e compreendermos o self rudimentar do bebé como fundamentalmente psíquico, este percebe dois tipos de impressões, ambas «exteriores»: as que procedem do seu corpo, ainda desconhecido enquanto tal, e as que procedem do mundo. É a junção de ambas, na experiência reiterada, que permite a sua distinção, identificando as primeiras como minhas (como «carne») e as segundas como objecto externo. Esta experiência psíquica é, então, fundamental na constituição do próprio self, que se manifesta e exerce como integrante do que, sendo, diferente, se junta sob a superfície sensível da pele envolvente. 

Embora discutível nos seus extremos, a interpretação de Green tem a vantagem de nos alertar para o essencial em Winnicott: o corpo não é meu desde o início, só se torna meu pela mesma operação integradora pela qual, vinculando-me ao outro, me distingo dele. E a psique é «a elaboração imaginativa do funcionamento corporal» (Green, 2007, p. 84). Entre outras coisas, isto permite compreender os problemas de trans-sexualidade. Mas reafirma, por outro lado, o ponto por onde começou a nossa exposição da homenagem de Green a Winnicott: que a «natureza humana» não é natural, animal; mas algo de diferente - é uma designação de conjunto para várias funções estruturais enquanto integradas total ou parcialmente num todo individual, que toca ao analista abordar como o tal todo: «the whole person», a pessoa no seu todo, que teve o seu começo como criança. Este todo resulta dum processo difícil, que na análise se termina, no melhor dos casos, de integrar. 

Este breve percurso permite-nos, nalmente, situar o que me parece ser a contribuição fundamental de Winnicott para Green: a análise da complexidade do processo pré-edípico e o seu carácter determinante do crescimento e amadurecimento do indivíduo. Complexidade implica superação dos dualismos, a que Freud foi tão inclinado, no seio duma concepção basicamente causalista do processo psíquico, e introdução, em toda a sua dignidade, daquilo a que Green chama os processos «terciários» ou «terceiridade», isto é, o carácter complexo do relacional. 

Concluindo, recordemos as palavras de Winnicott (1990, p. 25) logo na introdução à Natureza Humana, onde fala das diferentes abordagens do trabalho com crianças. Diz ele que «o corpo da criança pertence ao pediatra, a alma ao sacerdote, a psique ao psicanalista, o intelecto ao psicólogo e a mente ao filósofo». Fique o que aqui, tão parcial e embrionariamente, apresento como uma contribuição filosófica à compreensão daquilo que a mente dum psicanalista encontrou no pensamento do pediatra que soube converter a sua experiência na dum analista. 

Referências Bibliográficas 

Abram, J. (1996). e Language of Winnicott: A Dictionary of Winnicott’s Use of Words. London Karnac. Abram, J. (Ed.) (2013). Donald Winnicott Today. Hove/New York: Routledge,. Anzieu, D. (1995). Le Moi Peau. Paris: Dunod.
Dethiville, L. (2008). Donald W. Winnicott. Une nouvelle approche. Paris: Champagne Première.
Green, A. (1975). «Potential space in Psychoanalysis: the object in the setting». In
Abram (Ed), 2013: From Freud to Winnicott: aspects of a paradigm change (pp. 183-204).
Green, A. (1993). Le travail du négatif. Paris: Minuit.
Green, A. (2007). Jugar con Winnicott. Buenos Aires, Amorrortu [Original: Jouer avec Winnicott, Paris: PUF, 2005).
Henry, Michel (2000). Incarnation. Une philosophie de la chair. Paris: Éditions du Seuil.
Loparic, Zeljko (2001). Esboço do paradigma winnicottiano. Cadernos de História da Filosofia e da Ciência, Campinas, Série 3, 11(2), 7‐58.
Loparic, Z. (2006). De Freud a Winnicott: aspectos de uma mudança paradigmática. Natureza humana, 1, 8, 21‐47. In Abram (Ed), 2013: From Freud to Winnicott: aspects of a paradigm change (pp. 113‐155).
Winnicott, D. W. (1990). Natureza Humana. Rio de Janeiro, Imago. [original: Human Nature. e Winnicott Trust, 1988].

Notas de rodapé

1 – Versão modificada da comunicação com o mesmo título, pronunciada no II Congresso Winnicott Luso‐Brasileiro: A retomada do amadurecimento, Lisboa, 20 e 21 de Junho de 2014.
2 – Doutora em Filosofia (Madrid, 1994), professora associada na Universidade de Évora. Presidente da Associação Portuguesa de Filosofia Fenomenológica (desde 2011). Investiga, do ponto de vista filosófico, a interrelação entre Filosofia e Psicanálise, nomeadamente na área da Análise existencial, de raiz fenomenológica heideggeriana. Várias publicações nessa área, em livro e em revistas e obras colectivas nacionais e estrangeiras. 

Title

Winnicott for Andre Green – A tribute, three items. 

Abstract 

Andre Green has several textes on Winnicott, most of them were lectures at the Squiggle Foundation. He seeks to honor him as the «most important contribution to the post‐freudian period» and as a «creative outbreak». e matter for Green is not only Winnicott’s role as «leader of the Middle Group», but mainly his use of new conceptual tools, upon which Green elaborates some of his own. e tribute is paid to Human Nature. Our paper seeks to present the three items Green considers to be the theoretical pillars upon which the new concepts are built up: primacy of the relation with reality, integration of the self as a unit and the psyche in-dwelling in the body.