A teoria e a clínica desenvolvidas por D. W. Winnicott sobre a tendência antissocial foram elementos fundamentais na construção da sua teoria do amadurecimento pessoal que estava começando a tomar corpo no final dos anos 30. Seu trabalho com crianças antissociais possibilitou‐lhe confirmar a importância do ambiente na constituição do indivíduo e mudar o enfoque intrapsíquico da psicanálise tradicional para o enfoque interpessoal da psicanálise winnicottiana.
Para Winnicott, a tendência antissocial é um distúrbio psíquico que tem basicamente três aspectos essenciais na sua etiologia. O primeiro é que a criança, no seu início, recebeu cuidados su cientemente bons, que foram retirados de maneira repentina, isto é, ocorreram mudanças bruscas na sua vida que foram traumáticas; o segundo é que essa perda não foi corrigida a tempo da esperança ser mantida e esse fato propiciou a experiência de uma agonia impensável; e o terceiro é que essas mudanças
aconteceram numa época na qual ela tinha maturidade su ciente para dar‐se conta, consciente ou inconscientemente, de que foi o ambiente que falhou. São esses aspectos que caracterizam, para Winnicott, uma deprivação.
A tendência antissocial manifesta‐se, sempre, através de comportamentos que atingem e incomodam o ambiente. Esses comportamentos vão desde avidez, enurese, encoprese até o roubo, a mentira e a destrutividade. Pode‐se considerar, portanto, que o acting-out na tendência antissocial é a maneira que o indivíduo tem de mostrar, ao ambiente, que sofreu deprivação.
Os primeiros sinais de deprivação são tão corriqueiros que muitas vezes, para a mãe que cuida do bebé, passam por normais. Esses sinais que se traduzem num comportamento exigente, que incomoda, já são uma manifestação de tendência antissocial e não podem ser confundidos com omnipotência infantil, porque se trata de um comportamento e não de uma realidade psíquica.
O bebé tem necessidades que precisam ser atendidas por uma mãe capaz de identificar-se com ele. A experiência com a mãe não se resume às satisfações instituais, é uma experiência completa que o bebé busca, que inclui: comunicação, mutualidade, motilidade, o colo e o olhar da mãe. Tudo isso o reúne. Com o tempo e com cuidados su cientemente bons, o bebé se integra em um Eu unitário. Mas se a mãe deixa de cuidar dele de maneira pessoal, como vinha fazendo até então, o bebé sofre uma desilusão abrupta e começa a “incomodar” a mãe, nunca estando satisfeito, fazendo muita sujeira, em suma dando muito trabalho (isto para uma mãe que esteja disposta a tolerar o trabalho que todo bebé dá)I. Nesse momento, pode surgir avidez, que é, para Winnicott, a precursora do roubo. Essa avidezé uma busca compulsiva, no ambiente, para a cura da deprivação sofrida.
Se a mãe é suficientemente boa, ela reconhece que algo está sendo tirado da criança e se predispõe a atender a reivindicação dela, funcionando, nesse caso, como uma terapeuta. Esse papel de terapeuta da mãe não pode ser confundido com amor materno, pois a mãe já falhou com seu bebé e está reconhecendo essa falha, e o que ela faz de fato “é uma terapia a respeito de omissão de amor materno” (1958c, p. 134). Frequentemente, a mãe consegue ser bem sucedida no seu papel de terapeuta, atendendo às reclamações compulsivas de seu bebé, através de uma fase de cuidados especiais que facilmente podem parecer a um observador externo como excesso de “mimos”. Esse sucesso é devido ao fato de que a deprivação está perto do seu ponto de origem e, além disso, porque a mãe recebeu a comunicação e acolheu a reivindicação que foi expressa pelo bebé. Porém, nada disso anula o fato de que foi a mãe que falhou e a necessidade desse período de cuidados deriva da falha.
Se a mãe, por diversas razões, não consegue reconhecer sua falha ou fracassa no seu papel de terapeuta, o bebé vai seguir em frente, mas com danos certos. Apesar de ter sido prejudicado no seu amadurecimento pessoal, o bebé, por já estar integrado num Eu, se reorganiza para continuar sua vida, isto implica, num primeiro momento, que entra num estado de desesperança que pode ser expresso por um humor deprimido. Mas, ao mesmo tempo, estará sempre atento ao ambiente e, à medida que o sente confiável, sua esperança retorna. É a partir do retorno da esperança que emergem os atos antissociais, com os quais força o ambiente a efetuar sua cura.
Esses atos antissociais são o roubo, a mentira e a destrutividade.
O roubo está na linha da busca de objeto e a destrutividade na linha da instintualidade. O roubo e a mentira estão relacionados com a interação da criança com a mãe e a destrutividade está relacionada com a interação da criança com o pai. Para Winnicott: “Grosso modo, pode‐se dizer que há dois tipos de tendência antissocial. Em um, a enfermidade se apresenta em forma de roubo ou chamando atenção especial através do ato de urinar na cama, falta de asseio e outras delinquências menores que, de fato, dão à mãe trabalho e preocupações extras. No outro, há a destrutividade provocando atitudes firmes, ou melhor, firmes sem a qualidade adicional da retaliação. Sem entrar em detalhes, o primeiro tipo de criança sofre deprivação no sentido de perda do cuidado materno ou de um objeto bom, e o segundo tipo sofre deprivação em termos do pai ou da qualidade na mãe que mostra que ela tem o apoio de um homem” (1971b, p. 230).
Sabe-se que em famílias normais geralmente ocorre uma grande quantidade de roubos, mas que não são taxados como tal. Uma criança de dois anos, por exemplo, pode pegar moedas ou outros pertences da bolsa de sua mãe, e ninguém vai chamá-la de ladra por issoII. O ambiente familiar, por ser tolerante, é terapêutico e curativo.
A criança quando rouba está procurando a mãe sobre a qual ela tem o direito de tirar tudo o que quiser. Se há uma grande alteração no padrão de cuidados fornecidos pela mãe, a criança sente‐se roubada e passa a exigir do mundo aquilo que ele lhe deve e que sente ser seu por direito. Ela tem direitos sobre a mãe porque foi ela que criou essa mãe a partir da sua própria criatividade originária.
O roubo é compulsivos e a criança não sabe porque age dessa maneira. A sua ação é dissociada. A criança muitas vezes sente‐se louca por estar agindo sob essa compulsão. Os pais precisam compreender e tolerar essa situação. Se agirem como “inquisidores ferozes, exigindo uma confissão,[...], a criança por certo começará tanto a mentir como a roubar, e a culpa será inteiramente dos pais” (ibid., p. 187).
As crianças que sofrem uma desilusão súbita encontram‐se sob uma compulsão não só de roubar, mas, sem saber o motivo, criam confusões, recusam a defecação no momento correto, arrancam as ores do jardim, puxam o rabo do gato, etc. Se seus pais exigem que elas lhes dêem o motivo desse comportamento: “O resultado poderá ser que, em vez de sentir uma culpa quase insuportável, em consequência de ser mal compreendida e censurada, sua pessoa se divida em duas partes, uma terrivelmente severa e outra possuída por impulsos maléficos. A criança, então, deixa de sentir‐se culpada, mas em vez disso, transforma‐se no que as pessoas chamarão de mentirosa (1957r, p. 188).
Ao fracasso dos pais em “curarem” a deprivação da criança pode‐se somar o fracasso posterior da escola e da sociedade. A criança vai obtendo ganhos secundários e ficando enrijecida, cada vez mais afastada do sentido da deprivação original, podendo tornar‐se um delinquente.
Para Winnicott, podemos detectar manifestações de tendência antissocial mesmo em nossos pacientes de análise. Por exemplo, a compulsão para sair e fazer compras está, para ele, diretamente ligada ao furto. É possível empreender toda uma análise sem tocar nessa questão da tendência antissocial do paciente, pois ela não faz parte nem das suas defesas neuróticas, nem das suas defesas psicóticas. Ela está ligada a uma deprivação que aconteceu em algum momento da sua vida.
Além do roubo e da mentira, como vimos, a tendência antissocial pode se manifestar como destrutividade. Nos estágios iniciais, quando a personalidade da criança ainda não está bem integrada, ela tem necessidade de viver “num círculo de amor e força” (1958c, p. 121) para que possa chegar à integração. São muitas as tarefas da integração à medida que o amadurecimento prossegue. A criança precisa poder explorar o ambiente, usar a motilidade, fazer o exercício de sua agressividade, testar suas forças, testar os limites e a capacidade de sobrevivência do ambiente. Se sofrer uma deprivação antes de ter incorporado como seu um quadro de referência, por exemplo, se o seu lar se desfizer, ela, ao invés de sentir-se livre para fazer o que quiser, torna‐se angustiada e se tiver alguma esperança procura uma estabilidade externa, sem a qual poderá enlouquecer.
Sem um ambiente humano físico e limitado que ela possa conhecer, a criança não pode descobrir até que ponto suas ideias agressivas não conseguem realmente destruir e, por conseguinte, não pode discernir a diferença entre fato e fantasia. Sem um pai e uma mãe que estejam juntos e assumam, juntos, a responsabilidade por ela, a criança não pode encontrar e expressar seu impulso para separá-los nem sentir alívio por não conseguir fazê‐lo (1947e, p. 63).
Se ela obtiver essa estabilidade, ou na família mais expandida ou na escola, ainda terá chance de incorporá-la como sua. Senão, irá provocar a sociedade – tornando‐se antissocial – de maneira a forçar que esta exerça a função de controle através do provimento de segurança e estabilidade, nem que seja, como último recurso, através “das quatro paredes de uma cela de prisão”(1946b, p. 125).
Na destrutividade, o que a criança procura é um ambiente forte e estável que suporte os resultados de seus estados excitados, liberando‐a para que possa viver suas ideias e impulsos agressivos de forma segura. Para Winnicott, este aspecto da tendência antissocial está relacionado com o pai. Quando uma criança rouba, além de procurar a mãe, sobre a qual tem direitos, também procura o pai que irá proteger essa mãe dos seus impulsos agressivos. Se esse roubo já extrapolou o ambiente familiar, ela necessita cada vez mais de encontrar um pai forte, severo e amoroso que “porá um limite ao efeito concreto de seu comportamento impulsivo e à atuação das ideias que lhe ocorrem quando está excitada”(ibid., p. 122 ). É necessário que essa figura paterna seja rigorosa e forte, pois só assim poderá liberar a criança para viver seus impulsos instintivos com segurança, o que lhe permitirá recuperar seu sentimento de culpa, o desejo de reparar os estragos e sua capacidade para amar.
Em virtude da segurança ambiental e da proteção dada à mãe pelo pai, a criança pode “explorar rudemente atividades destrutivas que se relacionam ao movimento em geral, e mais especificamente à destruição relacionada à fantasia que se acumula em torno do ódio” (1968e, p. 74). Se essa segurança ambiental é perdida, as ideias e impulsos agressivos da criança tornam‐se perigosos. A criança tem, então, que assumir o controle e com isso perde sua impulsividade e espontaneidade pessoais. Quando a criança sente uma esperança de retorno da segurança do ambiente, ela retoma sua agressividade, tendo explosões de agressão sem sentido e sem lógica. Ela não tem nenhuma noção do que está acontecendo, apenas “descobre que machucou alguém ou que quebrou uma vidraça” (ibid., p. 75). Se essa segurança não é oferecida pelo ambiente, a criança torna‐se incapaz de amar e vai ficando cada vez mais deprimida e despersonalizada e a única possibilidade de sentir‐se real é através da violência.
A criança que se torna antissocial não desenvolveu uma capacidade de controlar-se. Ela precisa de um controle externo para car tranquila. Se esse controle falta, como já vimos, ela ca sob a ameaça de tornar‐se louca, assim pratica atos antissociais para que o controle externo volte e restitua a segurança de que necessita. Por outro lado, a criança que conseguiu desenvolver essa capacidade de controlar‐se, por ter tido cuidados su cientemente bons, desenvolveu um sentimento pessoal de culpa relativo à destrutividade inerente ao amor, que se transforma num concernimento pelo objeto.
Explica Winnicott (1958c):
“A criança normal, ajudada nos estágios iniciais pelo seu próprio lar, desenvolve a capacidade para controlar‐se. Desenvolve o que é denominado, por vezes, “ambiente interno”, com uma tendência para descobrir um bom meio. A criança antissocial, doente, não tendo tido a oportunidade de criar um bom “ambiente interno”, necessita absolutamente de um controle externo se quiser ser feliz e capaz de brincar e trabalhar. Entre esses dois extremos – crianças normais e crianças doentes, antissociais – estão as crianças que podem ainda vir a acreditar na estabilidade se uma experiência contínua de controle por pessoas amorosas puder ser‐lhes proporcionada durante um período de anos. Uma criança de 6 ou 7 anos tem muito mais possibilidade de receber ajuda desse modo do que uma criança de 10 ou 11 anos” (p. 123).
A experiência clínica de Winnicott com crianças que sofreram deprivação é muitíssimo vasta. Vai desde conselhos dados aos amigos que tinham lhos que roubavam e mentiam; passando pelo atendimento em consultas terapêuticas, que na maioria das vezes, resolvia de maneira rápida a questão antissocial da criança; por psicoterapias de indivíduos antissociais no estágio anterior ao desenvolvimento de ganhos secundários e chegando até a sistematização de atendimentos residenciais para crianças delinquentes.
A sua grande descoberta teórica, essencial para fins de prevenção, foi de que a tendência antissocial pode ser mais facilmente tratada quanto mais perto estiver do seu ponto de origem. Se a criança sofrer deprivação e o ambiente reconhecer imediatamente e ressarcir, com cuidados especiais, a dívida para com ela, a chance dela ser curada é muito grande. Contrariamente a isso, se o ambiente não reconhece a perda sofrida, isso pode levar a criança a desenvolver uma delinquência que, com os ganhos secundários, afasta-a cada vez mais do trauma original, tornando cada vez mais difícil a sua cura. Para Winnicott, geralmente os pais são bem sucedidos em curar seus lhos de deprivações antes que eles tenham começado a obter ganhos secundários e “isso fornece a chave para a esperança que o clínico pode
Para Winnicott, geralmente os pais são bem sucedidos em curar seus lhos de deprivações antes que eles tenham começado a obter ganhos secundários e “isso fornece a chave para a esperança que o clínico pode
ter quanto a conseguir a cura da tendência antissocial” (1971b, p. 230). Vamos detalhar a seguir cada uma das modalidades terapêuticas utilizadas por Winnicott para tratamento da tendência antissocial.
As consultas terapêuticas são uma modalidade de atendimento psicoterápico desenvolvida por Winnicott. Elas foram criadas devido ao tipo de demanda, que, aliás, caracteriza o serviço público: grande número de pessoas procurando ajuda, poucos profissionais, famílias que não tem condições de arcar com um longo tratamento, etc. Segundo Winnicott, as consultas terapêuticas “tem uma importância que a psicanálise não possui, ao atingir a necessidade e pressão sociais nas clínicas” (1971b, p. 10).
Consistem de uma ou mais entrevistas (não mais do que três em geral), nas quais pode se usar o jogo dos rabiscos. Nessas entrevistas, o terapeuta encontra‐se e se mantém na posição de objeto subjectivo e, portanto, numa situação em que tem uma maior oportunidade de estar em contato profundo com a criança. Isso propicia que a criança confie que será compreendida e então possa comunicar ao terapeuta a deprivação. Se essa comunicação ocorrer – e ela pode ocorrer num nível pré‐verbal – , pode haver uma mudança que a leve a retomar seu processo de amadurecimento pessoal. No caso da tendência antissocial, muitas vezes a consulta terapêutica é extremamente e ciente, curando o problema, pois integra na personalidade total o que ficou dissociado.
Segundo Winnicott, de nada adianta, para a criança, saber que sofreu deprivação numa história contada por outra pessoa. Isto seria uma apreensão meramente teórica, o que pode ser muito simples para uma criança inteligente, mas que não altera em nada o sentimento de ter sido lesada que ela carrega consigo. O verdadeiro valor terapêutico “está na descoberta desses problemas na consulta terapêutica com a criança”. (1971b, p. 230). É claro que existe um grande número de casos antissociais, mais graves, em que esse tipo de atendimento não se aplica, mas para aqueles em que a criança vive em ambiente relativamente bom, e conta com uma família disposta a oferecer cuidados especiais, enquanto forem necessários, ele quase sempre é eficaz.
Antes que os ganhos secundários se estabeleçam de maneira a diminuir o sofrimento do indivíduo que foi deprivado e com isso impeçam a possibilidade dele aceitar ajuda, é possível uma psicoterapia da tendência antissocial. Se os ganhos secundários já estiverem estabelecidos, o indivíduo já estará enrijecido e só a psicoterapia não será su ciente. Nesse caso, o tratamento necessário é o fornecimento de um ambiente ao mesmo tempo forte e compreensivo.
Em seu artigo Psicoterapia de distúrbios de caráter, Winnicott (1965ve) define o distúrbio de caráter como a distorção da personalidade resultante da acomodação que o indivíduo faz de certo grau de tendência antissocial. Se ele não consegue fazer essa acomodação, corre sempre o risco de um colapso psicótico.
Como tratar em psicoterapia o distúrbio de caráter? Já vimos que uma característica da tendência antissocial é que a sua manifestação (acting-out) busca sempre incomodar e mobilizar o ambiente: seja reivindicando tempo, interesse ou dinheiro de pessoas (roubo); seja destruindo de modo a provocar manejos fortes. Essas manifestações acontecem num período de esperança. Se o indivíduo estiver em análise, o acting-out deve poder fazer parte do manejo total da análise e dificilmente o setting analítico tem esse caráter indestrutível. Esse é o ponto que torna a psicoterapia complicada, pois se o paciente começa a melhorar em virtude da confiabilidade encontrada e do consequente aumento de esperança, o consultório cará em perigo. A dificuldade é quando a atuação envolve a sociedade, extrapolando o setting. Nesse caso, muitas vezes a análise tem que ser interrompida e a sociedade assume o controle.
O objetivo da terapia do distúrbio de caráter é chegar ao trauma original de deprivação. Para isso, é necessário que o paciente retorne “através do trauma da transferência ao estado de coisas que existia antes do trauma original” (1965ve, p. 253). Quando o analista não acolhe as atuações do paciente, ele falha e essas falhas são reais, no sentido de que essa falha atual é a falha original do ponto de vista do paciente. Assim, o paciente pode viver na transferência um sentimento de raiva apropriado. Isso libera os processos de amadurecimento do paciente.
Se o comportamento (acting-out) da criança antissocial não é compreendido e ela é somente punida por eles, os ganhos secundários podem rapidamente tomar conta e, desse modo, ela caminha a passos largos para a delinquência.
A tendência antissocial é, portanto, para Winnicott um distúrbio de de ciência ambiental e, como tal, é passível de ser prevenido e, até um certo limite, tratado. Winnicott elaborou um corpo teórico e clínico que possibilita a elaboração de políticas de prevenção e de tratamento da delinquência.
Temos visto e sentido, a cada dia que passa, o crescimento da delinquência entre os nossos jovens e seria necessário que pessoas com poder para enfrentar esse problema tomassem conhecimento desse ferramental teórico‐clínico winnicottiano.
É claro que a situação econômica do país influencia na estabilidade das famílias, como já dizia Winnicott, em Londres, em 1950: “Em primeiro lugar, o fornecimento ao lar comum de uma ração básica de moradia, alimentação, vestuário, educação e instalações para recreio e lazer, e o que poderia ser chamado alimento cultural, tem prioridade em nossa atenção” (1965k, p. 179).
Todavia, em 1967, numa palestra para profissionais que trabalhavam com crianças delinquentes, chamou a atenção para a especificidade da sua teoria: “Vocês tentam relacionar a delinquência que tem à sua frente com assuntos gerais, tais como a miséria, habitações pobres, lares rompidos, delinquência parental e um colapso da provisão ambiental. Gostaria de sentir que, como resultado daquilo que tenho a dizer, vocês serão capazes de ver de modo um pouco mais claro que, em todos os casos que aparecem em seu caminho, houve um começo, e no começo houve uma doença, e o menino ou a menina tornou‐se uma criança deprivada. Em outras palavras, existe um sentido naquilo que ocorreu num determinado momento, ainda que, à época em que cada pessoa aparece para ser cuidada, esse sentido geralmente se tenha perdido (1968e, p. 72).
Winnicott não menosprezava as condições sociais, muito pelo contrário, achava que eram condições essenciais para uma vida digna, mas como psicanalista precisava chamar a atenção para a especificidade do fracasso que está na origem de uma tendência antissocial e mostrar que ele é mais importante, no entendimento do distúrbio, do que um fracasso social geral.
Dessa maneira, acredito, seria crucial que profissionais que trabalham com pais e filhos tivessem esse entendimento da questão antissocial, para que pudessem acolher e “curar”, muitas vezes, no seu nascedouro, as suas primeiras manifestações. Além desses profissionais, também todos aqueles outros que trabalham com crianças deprivadas – desde aquelas que começam a roubar na escola até as internas em instituições por estarem em conflito com a lei – poderiam ser ajudados, na sua prática cotidiana, pela concepção winnicottiana da delinquência.
1 – Roseana Moraes Garcia. Psicanalista. Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pela PUC‐SP. Especialista em Saúde Mental Infantil pela FCM‐UNICAMP. Professora e Supervisora da SBPW. Membro do Conselho Académico da SBPW.
I ‐ Avidez não é a voracidade que caracteriza a urgência instintual primitiva. Para Winnicott, a voracidade é a manifestação espontânea do impulso amoroso primitivo que é, no início, incompadecido e que faz parte do amadurecimento normal do bebê. A avidez, que pode ser implacável, é manifestação de deprivação. O que permite que haja voracidade, ao invés de avidez, é o grau de adaptação materna.
II ‐ Numa instituição, a criança que tiver comportamento semelhante pode ser punida e ser taxada como ladra, o que será terrível para o seu desenvolvimento.
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Antisocial tendency in Winnicott: Theory and Clinic
The antisocial tendency to Winnicott is conceived as a psychic disorder that has its origin in environmental failures. These failures consist of sudden loss of good enough care received by a child who is already mature enough to realize, not fully consciously, that the responsibility for this loss come from environment. First, the child ceases to trust the environment and feels hopeless, but so will the environment become reliable again, hope returns and she practices antisocial acts in an attempt to recover what was lost. Understood from this perspective, I intend to present the theory of antisocial tendency and the clinic that follows from it.