Revista | Vol. 5, N. 2, Dez 2014

Temporalidade e Regressão

Lugar da teoria do amadurecimento no paradigma Winnicottiano

A teoria winnicottiana do “desenvolvimento emocional” do indivíduo humano – a qual, a partir dos anos 1960, passou a ser chamada “teoria do amadurecimento” emocional e pessoal, que inclui a história completa do indivíduo desde o nascimento até a morte – é a “espinha dorsal” da psicanálise winnicottiana (1971b, p. 10). Ela é a companheira constante em tudo o que Winnicott faz como terapeuta, ele a tem “nos ossos”. Na terminologia inspirada em Kuhn, a teoria do amadurecimento é a principal generalização‐guia na resolução de problemas a cargo da psicanálise. Negligenciada na sua especi cidade e importância por muitos leitores, essa teoria foi restaurada na sua posição central na obra de Winnicott pelos estudos realizados na Escola de São Paulo I.

A conexão estreita entre a teoria winnicottiana do amadurecimento e a clínica não surpreende, pois essa teoria foi formulada de início precisamente para atender às exigências da clínica. Já a partir de 1936, nas aulas dadas no Departamento de Desenvolvimento Infantil do Instituto de Educação da Universidade de Londres, Winnicott começa a trabalhar sobre uma teoria do “desenvolvimento” como base para o tratamento e manejo de crianças e bebês com problemas relacionados a falhas ambientais, em particular de crianças deprivadas, com tendência antissocial, e de bebês em tratamento pediátrico, cujos sintomas remetiam a di culdades emocionais (1971b, pp. 215‐216; tr. pp. 228‐229).

Em seguida, nos anos 1940, a teoria winnicottiana do amadurecimento em gestação, ainda denominada “teoria do desenvolvimento emocional primitivo”, recebeu um novo impulso da sua clínica de pacientes psicóticos, tornando‐se a base de sua teoria da natureza e da etiologia dos distúrbios psicóticos e do tratamento dos mesmos (cf. Winnicott, 1958a, cap. 12). Para que possamos dar conta das psicoses, temos de assumir, rea rma Winnicott em 1968, uma “teoria geral da continuidade, de uma tendência inata no sentido do crescimento e da evolução pessoal”, isto é, uma teoria do amadurecimento. Essa teoria vem acompanhada de uma “teoria da doença mental como uma interrupção do desenvolvimento”, ou seja, uma teoria da etiologia e da natureza das psicoses, entendidas como bloqueio do amadurecimento, e de uma teoria da cura, baseada na ideia de que “se um bloqueio do desenvolvimento é afastado, então disso decorre o crescimento, por causa das poderosas forças que pertencem às tendências herdadas [que se encontram] no ser humano individual” (1989a, p. 194; tr. p. 152) II.

Em Winnicott, a teoria winnicottiana do amadurecimento, processo que passa por diferentes estágios maturacionais, substitui, para todos esses ns, a teoria dos estágios de desenvolvimento da libido, elaborada pela psicanálise ortodoxa: fases oral, anal, pré‐genital, etc. (Freud, Abraham, Klein).

Posso também dizer que o enunciado do desenvolvimento da primeira infância e da infância em termos de zonas erógenas, que nos serviu bem em nosso tratamento dos psiconeuróticos, não é tão útil no contexto da esquizofrenia quanto é a ideia de uma progressão da dependência (a princípio, quase absoluta) para a independência [...]. (1989a, p. 194; tr. p. 152)

Winnicott escreve como um britânico. Para ele, de fato, a teoria freudiana de zonas erógenas, so sticada por Abraham, não é apenas menos útil, ela é inútil, propriamente falando, no contexto da esquizofrenia e deve ser abandonada como quadro de referência (1989a, p. 246; tr. p. 191). Embora Winnicott continue valorizando, para certos ns, tanto a teoria das zonas erógenas como a das relações objetais (1965b, p. 83; tr. p. 79), ele as usa de forma modi cada. Por exemplo, ele refaz a teoria de Abraham dos estágios da vida instintual na lactância e na infância no quadro de uma teoria que “vai além do crescimento do id” e valoriza também “o desenvolvimento do ego”, isto é, as aquisições do processo de amadurecimento pessoal (1988, p. 43; tr. p. 61). Nesse contexto, a ambivalência, para citar uma ilustração de mudança paradigmática, “tem mais a ver com mudanças no ego do bebê do que com o desenvolvimento do id (ou dos instintos)” (1988, p. 42; tr. p. 60).

Generalizações da teoria do amadurecimento

A teoria do amadurecimento, introduzida inicialmente para entender e tratar dos distúrbios de tendência antissocial e das psicoses, foi generalizada em várias direções. Numa primeira generalização, tornou‐se quadro geral da teoria e da clínica de todos os distúrbios a cargo da psicanálise. Esse desenvolvimento inclui a teoria da natureza dos distúrbios, a teoria da sua etiologia e o quadro para os procedimentos de cura, a tarefa de desbloquear o amadurecimento parado e a facilitação do não alcançado.

Mediante uma segunda generalização, a teoria do amadurecimento passou a ser usada como elemento fundamental da teoria do crescimento e desenvolvimento saudável, centrado na temática da constituição das estruturas da personalidade e da socialização em estágios maturacionais sucessivos, que se prolongam no processo de amadurecimento até o m da vida (1989a, p. 284; tr. p. 219).

Nessa forma generalizada, a teoria do amadurecimento substitui a teoria das fases do desenvolvimento da libido como quadro de referência para o estudo do “desenvolvimento” individual e social, pois, de novo em estilo britânico, Winnicott observa que a teoria de Freud pode ter parecido por algumas décadas dar a impressão de que qualquer desenvolvimento que não tenha ocorrido até a idade de cinco anos, ou ao nal da puberdade, quando o rapaz ou a moça passam da adolescência para o estado de adulto, não ocorrerá mais de modo algum. Mas todos nós sabemos que isso é absurdo (1989a, p. 284; tr. p. 219).

Mais útil é a posição de Jung, que chamou “a nossa atenção para o fato de que os seres humanos, exceto na medida em que se acham apanhados na rigidez de suas próprias defesas, continuam a crescer em todos os sentidos, até o momento da morte” (1989a, p. 284; tr. p. 219). O valor da vida não está no progresso social ou material, no aperfeiçoamento e no “desenvolvimento”, mas, como foi indicado anteriormente, na criação, em primeira pessoa, de mundos (ambientes) e de relacionamentos bons com os objetos neles encontrados ou encontráveis, bons no sentido de valerem a penaIII (“um objeto bom não é bom para o bebê a menos que seja criado por este”). O amadurecimento winnicottiano não é um movimento ascendente, que visa a alcançar o que há de mais elevado e melhor, mais um sobe e desce que percorre círculos cada vez mais amplos até alcançar o grande círculo da vida e da morte.

A inclusão da morte na teoria do grande círculo da vida é exigida pelo fato de a vida ser, estruturalmente, “um intervalo entre dois estados de não vida” (1988, p. 132; tr. p. 154). Trata‐se, mais precisamente, da “segunda morte”, a primeira morte sendo o estado não animado do qual emerge o ser do ser humano. Nesse contexto, a morte não é entendida como estado inorgânico, à maneira naturalista de Freud, mas como estado de solidão essencial, que é inerente a cada indivíduo, estado que precede todo relacionamento, todo reconhecimento da relação de dependência, e que, mais tarde, está presente no “desejo de ainda não termos nascido” e de termos permanecido num “estado de não estar vivo cheio de paz”, “na solidão da pré‐dependência” (1988, p. 132; tr. p. 154). O termo “personalização” é usado por Winnicott para chamar atenção para o alojamento no corpo daquela parte da personalidade, que, por falta de outra palavra, é chamada de “psique”. Em termos maturacionais, trata‐se de uma conquista da saúde que se inicia no estado de dependência máxima. Por outro lado, a capacidade que crianças e pacientes têm de perderem contato com o corpo e o funcionamento corpóreo – de poderem, às vezes, sobretudo nos relacionamentos nos quais há uma con ança máxima, “desintegrar‐se, despersonalizar‐se e até mesmo, por um momento, abandonar a urgência quase fundamental de existir e sentir‐se existente” (1989a, p. 261; tr. p. 203) – é também uma realização maturacional que se torna gradualmente estabelecida. As duas coisas, portanto, são conquistadas no amadurecimento sadio: o crescente senso de segurança em relacionamentos e a capacidade de anulação momentânea, repousante, de todos os resultados dos processos maturacionais.

Essa anulação passa a ser uma etapa do amadurecimento quando o envelhecimento tem início: “Em grande medida, o crescimento é crescimento para baixo. Se eu tiver uma vida razoavelmente longa, tenho esperança de poder encolher [...]. Mais cedo ou mais tarde, começa o processo de crescer para menor, e isso é doloroso no princípio, até nos habituarmos” (1984a, p. 220; tr. p. 224). Podemos esperar que, no m do nosso tempo, nos tornaremos su cientemente pequenos “para passar pelo estreito buraco chamado morrer”, capazes de ter “um si‐mesmo que possa, no m de tudo, vir até mesmo a sacri car a espontaneidade, e até mesmo morrer” (1958a, p. 304; tr. p. 404).

Nessas duas generalizações cam incluídas todas as aquisições da psicanálise tradicional que preservaram seu valor, embora de forma modi cada por uma transformação que pode ser comparada a um Gestalt switch.

Aspectos gerais do processo de amadurecimento

O processo de amadurecimento é a realização de um potencial herdado, de uma tendência inata, constitutiva na natureza humana, para o crescimento e o desenvolvimento, que inclui, como componente central, a integração numa unidade de todos os aspectos da vida de num indivíduo.

Inicialmente, no estágio da primeira mamada teórica, integração significa inserção no tempo e no espaço de todos os dias (1965b, p. 59; tr. p. 58). Apoiado no holding, nos braços da mãe, o bebê humano cria um senso pessoal do tempo (e do espaço) (1965b, p. 77; tr. p. 74), que lhe permite experienciar a execução de gestos ou atos completos, por exemplo, o de mamar. Nessa altura, há apenas o simples estado de ser e a “aurora da consciência da continuidade do ser e da existência no tempo” (1988, p. 135; tr. p. 157). Posteriormente, no estágio dos fenômenos transicionais, o indivíduo criará o espaço e o tempo potencial ou, como diz Winnicott ainda, o “contínuo espaço‐tempo” (1971a, p. 59) entre si mesmo e o ambiente – mãe, pais (casal), família, escola, sociedade, humanidade, história –, no qual vai poder brincar e viver criativamente. Chegará o tempo de experiências instintuais, da criação do mundo, da capacidade de viver com outros seres humanos, do senso de oportunidade ou do senso de responsabilidade. Nesse meio tempo, o indivíduo ter‐se‐á constituído como unidade pessoal em condições de manter, no espaço‐tempo potencial, relacionamentos pessoais com ambientes sucessivos cada vez mais amplos, que vão desde o colo da mãe até o mundo social, a humanidade inteira e mesmo, no limite, a história da humanidade, e com objetos de diferentes tipos encontrados nesses ambientes.

Esse potencial de criar o mundo, essa tendência à integração, só se realiza, se torna atual, se for facilitada, não pelos objetos, mas pelo ambiente, caso o indivíduo receba a provisão ambiental da qual precisa neste ou naquele estágio. Por depender, para a sua efetivação, da facilitação ambiental, da adaptação ativa do ambiente às necessidades maturacionais, a tendência à integração não pode ser igualada a uma “força” biológica ou psíquica que age por conta própria, segundo leis, e não pertence, portanto, ao quadro da metapsicologia freudiana. Nos estágios iniciais, a facilitação ao bebê proporciona a experi ncia de onipot ncia, que, de fato, não passa de uma ilusão. O ambiente facilitador comunica ao bebê: “Venha para o mundo de uma forma criativa, crie o mundo; só o que você criar terá signi cado para você”. E em seguida: “O mundo está sob o seu controle” (1988, p. 101; tr. p. 90). “Não é a partir de ser Deus”, indaga Winnicott em seguida, “que os seres humanos chegam à humildade característica da individualidade humana?”. De fato, durante o processo de amadurecimento, o indivíduo humano chega ao outro extremo do ser onipotente: ao reconhecimento da nitude do seu poder ser e, quem sabe, até mesmo, como Heidegger, à nitude do próprio Ser.

Não pressionado por intrusões, mas facilitado de modo adequado e em momentos certos, o indivíduo cria um modo pessoal de viver no mundo, passa a se comportar e a operar espontaneamente, isto é, a partir do seu verdadeiro si‐mesmo, o que faz com que possa sentir que a vida vale a pena ser vivida. Dessas aquisições maturacionais, Winnicott extrai o que chama de “princípio fundamental da existência humana”:

tudo aquilo que provém do verdadeiro si‐mesmo é sentido como real (e posteriormente como bom), seja qual for a sua natureza, não importa o quão agressivo; e tudo aquilo que acontece no indivíduo como uma reação à intrusão ambiental é sentido como irreal, inútil (e posteriormente como ruim), independentemente de quão grati cante seja do ponto de vista sensorial. (1958a, p. 292; tr. p. 389)

Concebido assim – como resultado de uma gestualidade espontânea devidamente facilitada, assentada em funções corpóreas e inicialmente experienciada como onipotente, para, em seguida, ser mitigada pelo sofrimento –, o processo de amadurecimento não é um processo meramente biológico (como é o crescimento físico), nem psicológico (que, na concepção corrente, consiste no desenvolvimento mental), nem social (baseado no processo de socialização que leva à observação ou mesmo à interiorização de regras), nem cultural (que se vale da tradição), nem o de estruturação (imaginária ou simbólica), nem histórico (no sentido de ser objeto de uma biogra a), embora inclua, em diferentes sentidos e graus, todos esses aspectos.

O processo de constituição de indivíduos na história da humanidade começou numa época relativamente recente, no antigo Egito, com o surgimento da gura do faraó Ameno s IV, criador do monoteísmo, e ainda está em curso. Mesmo nos dias de hoje, poucos indivíduos conseguem uma estrutura da personalidade que os tornem capazes de manter relacionamentos com e em ambientes cada vez mais amplos, de realizar um “comportamento total” e de assumir a “responsabilidade histórica”, a maioria dos homens podendo se identificar apenas com ambientes mais estreitos, locais, em espaço e tempo limitados.

Interrupção do processo de amadurecimento e regressões

Caso o ambiente falhe em fornecer provisão ambiental necessária, o processo de amadurecimento (integração) ca interrompido. Ao redor das interrupções da linha temporal do ser, o indivíduo ergue defesas mais ou menos rígidas da sua espontaneidade. Se transitórias, indicam a possibilidade de uma posterior retomada do amadurecimento; se cronificadas, revelam doença, bloqueio do amadurecimento. Assim ficam constituídos indivíduos que não são maduros segundo a idade (nova de nição de psicopatologia e da sociopatologia). Em outros casos, os indivíduos até mesmo perdem a maturidade – as aquisições anteriores do amadurecimento – e vivem regredidos.

Para que se entenda com exatidão de que se trata, convém observar que Winnicott distingue dois grandes tipos de regressão: instintuais e maturacionais. As primeiras foram tematizadas pela psicanálise tradicional em termos de pontos de fixação da libido durante o seu desenvolvimento, e as segundas se tornaram objeto importante de estudos que Winnicott dedicou à inversão do processo do amadurecimento.

Falando das primeiras, Winnicott observa que:

o termo regressão aplica-se ordinariamente, nos textos psicanalíticos, a posições instintuais. A regressão se dá de experiências ou fantasias eróticas genitais para outras pré‐genitais, ou para pontos de xação pertencentes à vida da primeira infância em que a fantasia pré‐genital é naturalmente dominante. (1989a, p. 44; tr. p. 37)

Segundo Freud, os conteúdos reprimidos expulsos da corrente da consciência encontram‐se numa instância do aparelho psíquico chamado sistema Inc. Os processos que ocorrem nesse sistema são atemporais, isto é, “não são ordenados temporalmente, não são modi cados pelo passar do tempo, não têm em geral nenhuma relação com o tempo” (Freud, 1969‐1979, S III, pp. 145‐146). A razão disso é simples: a relação ao tempo é gerada pelo trabalho do sistema Cns. da consciência, o qual está na origem da representação do tempo (Freud, 1969‐1979, S III, pp. 146 e 369; S I, p. 513). Não submetidos ao modo de trabalhar do sistema Cns., os processos do sistema Inc. ocorrem segundo regras próprias, aquelas que regem os “processos primários” de condensação e deslocamento. Essas regras são semelhantes às guras retóricas de metáfora e metonímia, isto é, aos processos simbólicos, governando representações ou signi cantes vazios, pois perderam o conteúdo real, o relacionamento com a vida real, podendo ser vistos como estados mentais vazios, diferentes de processos vitais (“existências”) e de estados mentais relacionados ao funcionamento psicossomático dos indivíduos.

Mesmo assim, por serem catexizados, os conteúdos reprimidos preservam uma e cácia causal que con ita com a ordem causal dos processos conscientes; tornam‐se sintomas. Suas manifestações consistem em invasões da boa ordem temporal e causal estabelecida pelo trabalho de síntese do eu consciente. Ao invés de ser lembrado, o passado ressurge disfarçado de presente. Como diz Winnicott, na neurose de transferência, tal como concebida pela psicanálise tradicional, “o passado entra no consultório” (1958a, p. 297; tr. p. 396), sem ser identificado como passado e tende a tomar conta da situação. Segundo Freud e a psicanálise ortodoxa, ao tratar desse tipo de distúrbio, o analista precisa, mediante interpretação, desfazer o disfarce cronológico e incluir os processos atemporais na boa ordem temporal e causal. No essencial, sua tarefa é fazer com que os conteúdos passados quem no passado, remetidos ao momento de xação por repressão e descataxizados, e deixem de invadir o presente pela “atuação” IV.

Winnicott distingue entre as regressões para pontos de xação da libido pertencentes à vida instintual da primeira infância, fenômenos “econômicos” e “dinâmicos” estudados pela psicanálise tradicional, e os vários tipos de reversão do processo de amadurecimento, pela qual este processo é bloqueado restabelecendo diferentes tipos de relacionamentos de depend ncia do ambiente. “Para mim”, escreve Winnicott em 1954, “o termo ́regressão ́ indica simplesmente o reverso de progresso. Esse progresso em si mesmo consiste na evolução do indivíduo, do psique‐ ‐soma, da personalidade e da mente junto com (por m) a formação do caráter e a socialização (1958, p. 280; tr. p. 377). A regressão é concebida, portanto, como uma perturbação do processo de amadurecimento, isto é, uma perturbação na realização da tendência à integração ambiental com sérias consequências para a constituição da personalidade e os relacionamentos objetais. A ênfase não está na repressão da institualidade, mas no não atendimento às “necessidades do ego”

Aproximadamente na mesma data, Winnicott anota:

Regressão é também um termo conveniente para uso na descrição do estado de um adulto ou de uma criança na transferência (ou para qualquer outro relacionamento dependente), quando uma posição avançada é abandonada, restabelecendo‐se uma dependência infantil. Tipicamente, uma regressão desta espécie se dá da independência para a dependência. Neste emprego do termo, o meio ambiente se vê indiretamente incluído, uma vez que a dependência implica em meio ambiente que atenda à dependência. (1989a, p. 44; tr. p. 37)

A reversão do progresso pode ter um sentido meramente defensivo. Ao invés de continuar amadurecendo, o indivíduo desfaz as aquisições alcançadas, de modo que o processo maturacional é percorrido às avessas, simplesmente como “queda na direção oposta ao movimento para frente do desenvolvimento” (1989a, p. 196; tr. p. 153). Assim, por exemplo, a m de se defender contra angústias “neuróticas”, geradas pelos con itos que surgem no estágio de relações triangulares com base genital (no assim chamado “Édipo”), a criança pode, ao invés de desenvolver defesas tipicamente psiconeuróticas (obsessões, fobias etc.), mais ou menos rígidas,

regredir à dependência infantil e a padrões infantis, pode perder as qualidades fálicas e genitais que se tornaram uma característica, na fantasia e nas brincadeiras que vão junto com excitação, e pode retornar a uma existência oral ou de trato alimentar, ou até mesmo a uma perda das primeiras conquistas da integração e de ter uma capacidade para relacionamentos objetais; pode até mesmo perder um pouco do contato estreito que se desenvolveu entre a sua psique e seu corpo. (1989a, p. 68; tr. p. 56)V

Segundo essa concepção, a regressão defensiva não consiste em retorno aos pontos de xação da libido, efeitos econômicos da repressão, mas em mudança do ambiente, mudança de ares, acompanhada de modificação de modos de relacionamento das funções corpóreas, da postura somática, dos movimentos, das ações, pela busca de ambientes e relacionamentos objetais menos ameaçadores, anteriores ao tempo do amadurecimento em que o indivíduo experiencia dificuldades maturacionais tais como a ambivalência VI. Como Winnicott diz em várias oportunidades, ambival ncia em relação ao pai ou à mãe é um conflito emocional que decorre, no essencial, dos problemas de integração pessoal mais que dos problemas instintuais, econômicos e dinâmicos VII. Regressões defensivas relacionam‐se tipicamente ao retraimento dos relacionamentos objetais, que pode assumir traços psicóticos, e às cisões defensivas de vários tipos.

Às regressões defensivas, que protegem o indivíduo dos fracassos maturacionais e têm o caráter de retraimento e de desapego, Winnicott opõe as que poderíamos chamar de propiciadoras, que voltam a períodos bem‐sucedidos, não apenas do desenvolvimento instintual ( xação), mas do amadurecimento em geral, anteriores à falha ambiental (1958a, p. 282; tr. p. 379). Mediante esses processos, o indivíduo busca relacionamentos que caracterizam os estágios anteriores àqueles marcados por situações intoleráveis, os “pontos bons nas experi ncias instintuais, mas também pontos bons na adaptação do ambiente às necessidades do ego e do id na história do indivíduo” (1958a, p. 282‐283; tr. p. 379‐380; os itálicos são meus). A organização que torna a regressão útil

tem essa característica que a distingue das outras [as defesivas], qual seja, a de trazer dentro de si a esperança por uma nova oportunidade de descongelar a situação congelada, e uma oportunidade também para o ambiente, no caso o ambiente atual, de realizar uma adaptação adequada ainda que tardia. (1958, p. 283; tr. pp. 380‐381).

Isso porque a condição de possibilidade de correção das distorções do amadurecimento é uma capacidade latente de regressão para os relacionamentos favorecedores que implica uma organização do EU SOU complexa adquirida pela adaptação satisfatória do ambiente anterior à falha e que só será ativada num ambiente facilitador atual. Assim ca recuperada a base sobre a qual a dinâmica do amadurecimento pode recomeçar a funcionar. Quando tal acontece, uma regressão à dependência não é apenas defensiva, ela é “útil” (useful) num seguinte sentido: ela é “propiciadora” (advantagious), pois tem a vantagem de criar condições de retomada do amadurecimento, em particular no caso das psicoses (1958a, p. 261; tr. p. 354). O que é alcançado na regressão não é o infantil, que precisaria ser ultrapassado e sublimado (racionalizado, espiritualizado, moralizado), a fim de assegurar o progresso, mas o básico, o que funda toda a vida pessoal e social futura. Nesse caso, a regressão faz parte do processo de cura, ela é um primeiro passo necessário para que o isolamento defensivo se torne o reinício ou mesmo o início do processo integrativo.

No quadro da sua teoria dos distúrbios do amadurecimento, Winnicott dará um grande destaque a um tipo especial de regressão depend ncia, a regressão à dependência do analista cuidador, que reedita a dependência da mãe e consiste num processo pelo qual o paciente se desfaz gradualmente “do si‐mesmo falso ou cuidador, e se aproxima de um novo relacionamento, no qual o si‐mesmo cuidador é passado para o analista” (1989a, p. 44; tr. p. 37). O falso si‐mesmo é precisamente o si‐mesmo cuidador, que compensa a falha ambiental mediante uma distorção na formação do EU SOU. Exemplos desse tipo de regressão à dependência são regressões dos pacientes psicóticos, incluindo as regressões ao processo de nascimento. Elas envolvem experiências somáticas muito primitivas e buscam experiências integradoras, que não passam nem pela fantasia nem pelo simbolismo (1958a, p. 189; tr. p. 272).

Finalmente, o estado de não estar vivo cheio de paz só poderia ser alcançado mediante uma regressão extrema, não defensiva ou reativa, para a condição de pré‐dependência (1988, p. 132; tr. p. 154). Ela também propicia cura, mas não a cura de um relacionamento malsucedido, e sim de todo relacionamento, em particular da integração no tempo.

A temporalidade das regressões e da retomada do amadurecimento

Tanto as regressões defensivas contra um presente insuportável, que suspendem o relacionamento com o futuro, como as regressões propiciadoras, que livram o indivíduo do presente insuportável e possibilitam o amadurecimento futuro, são fenômenos temporais. Nas defensivas, os relacionamentos do passado são revividos como se fossem presentes e, nas propiciadoras, os relacionamentos que precisavam ter sido experienciados no passado, mas não foram, estão diante da oportunidade de acontecer pela primeira vez no agora, embora nem sempre de modo consciente.

A fim de entender essa concepção da temporalidade da regressão – que, como é fácil notar, contraria a tese de Freud de atemporalidade do inconsciente – convém observar que, segundo Winnicott, “as pessoas não têm exatamente sua idade; em alguma medida, elas têm todas as idades, ou nenhuma” (1986b, p. 81; tr. p. 64; os itálicos são meus). Na saúde, o ser aí humano estende‐se por todos os estágios, o tempo todo, isto é, ele transcende cada um deles e ocupa todo o tempo do existir, tanto o passado como o futuro. Ele nunca existe apenas em uma das dimensões do tempo, mas sempre em todas. Mais ainda, ele transcende a integração no tempo como tal, razão pela qual, mesmo sem eterno, ele não tem idade alguma.

Assim, há sempre uma loucura do bebê no adulto sadio. Quando falamos do amadurecimento infantil sadio, “sabemos que estamos falando da infância toda, em particular da adolescência; e se estivermos falando da adolescência, estaremos falando de adultos, pois nenhum adulto é adulto o tempo todo” (1986b, p. 81; tr. p. 64). O primado do passado, a redução do existir a uma sequência dos agora ou a perda da abertura para o futuro são sinais de patologias. A estrutura da personalidade do indivíduo winnicottiano que amadurece de modo sadio inclui a relação com o passado, o presente e o futuro, portanto, isto é, com o todo do tempo. Por isso, observa Winnicott, “não é frutífero estudar um estado de coisas [atual] em psicologia; como em história, o estado de coisas em cada momento tem um passado e um futuro que lhe pertence” (1988, p. 37; tr. p. 55). A concomitância dos estágios se deve, em parte, ao fato de as tarefas iniciais de amadurecimento nunca serem completadas e de as aquisições maturacionais serem instáveis:

Cada estágio no desenvolvimento é alcançado e perdido, alcançado e perdido de novo, e mais uma vez: a superação dos estágios do desenvolvimento só se transforma em fato muito gradualmente, e mesmo assim apenas sob determinadas condições. Tais condições deixam gradativamente de ser vitais, mas talvez nunca deixem de ter certa importância. (1988, p. 37; tr. p. 55)

Esse fato é de importância capital na clínica, pois altera o conceito de transferência. O que é transferido para o presente não são, como no caso das neuroses, os conteúdos representacionais e afetivos do passado que passaram pela repressão e foram mantidos inacessíveis pelo recalque, mas as necessidades não atendidas. Isso fica particularmente claro no caso de regressões à dependência do analista. Estas não revelam a resistência do inconsciente reprimido (recalcado), mas, como acabamos de ver, a substituição do si‐mesmo falso do paciente pelo analista na função de cuidador do si‐mesmo verdadeiro do paciente. No tratamento, o verdadeiro si‐mesmo é “rendido”, entregue, ao analista, o que implica riscos para o paciente e só pode acontecer num relacionamento de con ança (1958a, p. 281; tr. p. 378).

Visto que cada estágio alcançado pode ser perdido repetidas vezes, dependendo das circunstâncias, mesmo as necessidades que caracterizam estágios anteriores já atendidas previamente podem precisar de novos cuidados e, desta maneira, tornar‐se urg ncias presentes. De um modo geral, enquanto estiver envolvido pelo processo de amadurecimento, o indivíduo winnicottiano não sofre em primeiro lugar, como o de Freud, das “reminiscências do passado”, mas do retorno das necessidades maturacionais, jamais realizadas de nitivamente e que exigem cuidados adicionais e, às vezes, redobrados. O reaparecimento das necessidades só cessa quando chegar ao m a urgência de integração ambiental, de existir criativa e espontaneamente e de se sentir existente, que, para Winnicott, é um sinal de saúde (1989, p. 261; tr. p. 203). Isso pode acontecer nesse ou naquele momento da vida. Contudo, torna‐se um traço de personalidade só daqueles que constituíram um si‐mesmo que lhes permita dar‐se o luxo de “no m de tudo, vir a sacri car a espontaneidade, e até morrer” (1958, p. 304; tr. p. 404).

Uma das características essenciais da transferência tomada neste novo sentido –vista como chance maturacional e permitida, e não como resistência a ser combatida – “é o modo como devemos permitir que o passado do paciente seja o presente” (1958a, p. 297; tr. p. 396). Nesse tipo de trabalho, “é mais correto dizer que o presente retorna ao passado, que é o passado”. Se for capaz de acompanhar este movimento circular do paciente, o analista se encontrará confrontado “com o processo primário do paciente na situação em que esse processo tinha o seu valor original”. De qual processo primário se trata? Não de condensação ou deslocamento de representações ou de cargas afetivas, mas de processos maturacionais iniciais, tanto somáticos como psíquicos, que dependem do ambiente e que foram interrompidos ou não completados por falta de atendimento ambiental adequado.

Clínica dos fenômenos regressivos do tipo Winnicottiano

Ao tratar de regressões do tipo winnicottiano em geral, não cabe ao analista promover “a caça dos pontos de xação”, que é o equivalente da “caça às bruxas” recomendada pela psicanálise tradicional para a busca da etiologia das neuroses (1989, p. 196; tr. p. 153). É possível que, ao dizer isso, em 1967, Winnicott esteja se distanciando do uso da ”bruxa metapsicologia” de Freud como guia da clínica das reversões do amadurecimento. Embora aprecie o método freudiano para o tratamento das neuroses, Winnicott indica, em várias oportunidades, que a e cácia desse procedimento não se deve exclusivamente, e em muitos casos nem mesmo primordialmente, às interpretações, mais ao fato de “o paciente trazer para o tratamento um grau de crença e de capacidade para con ar” (1984, p. 239; tr. p. 244). Recomenda ainda que o analista se aplique em compreender, seguindo o que consta do Juramento de Hipócrates, “o valor de se permitir que o paciente traga para a relação pro ssional padrões que, na verdade, são pessoais” (os itálicos são meus). Na interpretação de Winnicott, a contribuição de Freud consistiu no fato de ele, além de simplesmente permitir a participação do paciente no processo de cura, “utilizar a contribuição pessoal do paciente [...] numa tentativa organizada de trazer o passado para o presente, e assim, criar condições em que podem ocorrer a mudança e o crescimento, onde antes só era possível a rigidez” (1988, p. 61; tr. p. 79).

Esse é mais um texto que deixa claro que Winnicott não põe o acento sobre a economia das regressões, mas no fato de a retomada do passado em condições favoráveis abrir o caminho para a retomada do processo de amadurecimento. Há claras indicações de que Winnicott, depois de um período em que não acreditava inteiramente na regressão, que já havia sido descrita por Balint no início dos anos 1930, como oportunidade de um “novo começo” do desenvolvimentoVIII, descobriu por conta própria, trabalhando com pacientes psicóticos, em particular atendendo M. Little e tratando do caso B (cf. Winnicott, 1972), o valor desse fenômeno clínico para o processo de curaIX. Note‐se, contudo, que Balint ainda pensa o desenvolvimento humano, tal como faziam Abraham e Ferenczi, em termos de uma história da libido e não como um processo de amadurecimento que realiza a tendência inata à integração numa unidade pessoal, espontânea.

O setting apropriado para o atendimento das regressões à dependência não visa a recolocar na boa ordem temporal e causal os conteúdos vividos no passado e expulsos do tempo do sistema Cns., mas, pelo contrário, permitir (não induzir) que o que não foi vivido no passado seja vivido pela primeira vez no presente, no agora. Não se trata de propiciar dessa maneira satisfações compensatórias corretivas (1965b, p. 258; tr. p. 233), mas de oferecer ao paciente mediante participação no seu modo de ser a oportunidade de retomar, em primeira pessoa, o processo de amadurecimento. O analista não se faz presente pela interpretação, mas psico‐somaticamenteX, pela qualidade da presença e da atenção, e pelo comportamento, pelo modo de relacionamento, admitindo inclusive certos tipos de contato físico, “dando o colo”, o seu divã tornando‐se automaticamente também o seu colo (1958, p. 258; tr. p. 350). Confrontado com os processos regressivos, o analista tem de estar disposto a facilitar que eles se realizem, sem que seja necessário torná‐ ‐los conscientes. Sendo assim, o setting analítico, o conjunto de detalhes do manejo, torna‐se mais importante do que a interpretação (Winnicott, 1958, p. 297; tr. p. 395).

Em virtude da tendência à integração inerente, o processo de amadurecimento interrompido, ou mesmo revertido, pode ser retomado e mesmo tende a ser retomado, desde que provisão ambiental apropriada se torne disponível, oferecendo novas oportunidades maturacionais. Em certos casos, isso pode dar‐se mediante realizações simbólicas no sentido de M. Sèchehaye (cf. Winnicott, 1965b, p. 60; tr. p. 58). Em outros casos, é necessário que algo semelhante aconteça graças à falha do analista, que “é usada e precisa ser tratada como falha passada, que o paciente pode [agora] perceber e abarcar, e car com raiva por isso” (1958a, p. 298; tr. p. 397). “Nessa fase de trabalho analítico, aquilo que no tratamento de pacientes neuróticos seria chamado de resistência indica sempre que o analista cometeu um erro ou se comportou mal com respeito a algum detalhe” (1958a, p. 298; tr. p. 397).

Não vem ao caso, repito, colocar na ordem temporal algo que aconteceu indevidamente e, por isso, foi expulso pela repressão, mas de propiciar dois tipos de processo de cura. Em primeiro lugar, reencontrar uma situação do passado, anterior ao trauma, quando o indivíduo ainda se sentia devidamente amparado. Em segundo lugar, permitir que essa situação sirva de ponto de partida para que seja vivido o que não o foi no passado, embora precisasse ser experienciado de acordo com as necessidades egoicas e instintuais do paciente. Em nenhum dos casos trata‐se de convite para o infantilismoXI. É que o paciente necessita de novas experiências para retomar em primeira pessoa o processo de amadurecimento bloqueado e não acontecido. A dupla parental, a família e grupos sociais mais amplos, desde que estáveis e adaptados, podem permitir ou pelo menos signi cativamente facilitar o mesmo desenvolvimento (ver, por exemplo, Winnicott 1988, p. 59; tr. pp. 59 e 62‐63; tr. pp. 77 e 81).

Conclusão

Vimos que, no caso de regressões às posições instintuais, a ajuda consiste em quebrar resistências que protegem os conteúdos mantidos regredidos no passado. Essa é a tarefa da elaboração segundo Freud: destravar as resistências, herança da repressão (recalque), e não, como em Winnicott, liberar a tendência à integração. No tratamento das regressões winnicottianas, que caracterizam os retrocessos maturacionais, o objetivo é outro: reverter o movimento e liberar o amadurecimento. A teoria winnicottiana da regressão que, conforme acabei de esboçar, contempla e possibilita a retomada do amadurecimento, difere substancialmente da teoria freudiana, segundo a qual os indivíduos cam presos aos pontos de xação da libido, que geram resistência do inconsciente e precisam ser desfeitos pela interpretação para que a libido deixe de estar ligada neles e que de novo livre (1965b, p. 124; tr. p. 115). A libertação da libido não implica amadurecimento, mas liberdade para as novas escolhas objetais que maximizam a realização do programa do princípio do prazer. Conforme notei, existem diferenças signi cativas entre a teoria winnicottiana da regressão à dependência e da retomada do amadurecimento, e a teoria da regressão boa e má e do novo começo de Balint (1952 e 1992[1968]), devido ao fato de Balint, distintamente de Winnicott, ainda trabalhar com os conceitos de libido e de princípio de prazer. Mesmo assim, há um número su cientemente grande de semelhanças signi cativas não apenas entre esses dois autores, mas também entre eles e Ferenczi, e mesmo Jung, para concordar com Balint quando este disse, já em 1968, que havia sinais de que estava se formando, ao lado das escolas de Freud e de M. Klein (e Bion), uma “Escola do manejo” ( ́managing ́ school), em condições de desenvolver uma linguagem própria “sob a in uência das ideias de Winnicott” (Balint, 1992[1968], p. 116; tr. p. 123).

Notas Finais

I ‐ Veja, em particular, Dias, 2014.
II ‐ Note que, nessas citações, como em outros textos, Winnicott usa os termos “crescimento” e “desenvolvimento” como sinônimos de “amadurecimento”, o que não deixa de ser uma imprecisão, que perpassa toda a obra de Winnicott e de muitos outros autores.
III ‐ Veja o caso Mark, paciente que se torna marinheiro e acaba levando uma vida que lhe agrada por ter uma “qualidade atemporal”. “Os dias se esvaem”, escreve Mark, e “o tempo passa por si sem esforço”, ele podendo viver “segundo uma rotina xa, mas sem a pressão do tempo” (1971b, p. 294; tr. p. 310). Aqui temos um caso, na linguagem da psicanálise tradicional, de “sublimação satisfatória da xação na mãe” (1971b, p. 291; tr. p. 307) ou, na linguagem de Winnicott, de recriação do relacionamento com a mãe ambiente num ambiente externo elaborado imaginativamente de modo pessoal. Mark vive no mar como se estivesse ainda no colo da mãe ambiente, a qual não lhe impõe ainda restrições temporais, conseguindo assim uma realização simbólica do colo da mãe, que lhe fez falta desde o início por causa da depressão materna.
IV ‐ Além da regressão temporal, relacionada à causalidade no sentido explicitado, Freud considera ainda, em A interpretação de sonhos, a regressão tópica e formal. Winnicott não discute a repressão tópica, pois não leva em conta a teoria freudiana do aparelho psíquico. Quanto à regressão formal, ele não vê nela a substituição das representações verbais pelas intuitivas, mas o retorno aos relacionamentos pré‐verbais e, de um modo geral, pré‐representacionais.
V ‐ Outros exemplos de regressões defensivas para os modos de relacionamento anteriores aos que estão na origem dos distúrbios neuróticos encontram‐se em Winnicott, 1988, pp. 63‐64; tr. p. 82.
VI ‐ Sobre a diferença entre a regressão aos pontos de xação “instintuais” e as regressões à dependência winnicottianas, veja, ainda, Winnicott 1958a, p. 282; tr. p. 379, e Winnicott, 1989a, pp. 196‐197; tr. pp. 153‐154.
VII ‐ Ver, por exemplo, Winnicott, 1988, p. p. 42; tr. p.60: “A ambivalência tem mais a ver com mudanças no Ego do bebê que com o desenvolvimento do Id (ou dos instintos)”.
VIII ‐ Veja Balint 1952, cap. 1, p. 37. Esse texto foi publicado inicialmente em 1930. Veja ainda, do mesmo livro, o capítulo 5, p. 98 e o capítulo15, p. 237, o primeiro de 1937 e o segundo de 1949. Winnicott menciona sua descon ança inicial a respeito da regressão em 1958, p. 280; tr. p. 376.
IX ‐ Sobre esse ponto, veja também o capítulo 14 de Winnicott, 1958, que foi escrito na mesma época.
X ‐ Seguindo Winnicott (1989, p. 102), uso o termo composto “psico‐somaticamente”, o hífen juntando e separando dois aspectos distintos dos estados clínicos em questão. 
XI ‐ A respeito da distinção entre imaturidade e infantilismo, veja Dias, 2012, texto 8.

Notas Rodapé

1 – Versão modificada da comunicação com o mesmo título, pronunciada no II Congresso Winnicott Luso‐Brasileiro: A retomada do amadurecimento, Lisboa, 20 e 21 de Junho de 2014.
2 - SBPW/IWA
3 – Nota: Como as traduções brasileiras de Winnicott são, muitas vezes, de má qualidade, todos os trechos de Winnicott foram traduzidos por mim e as referências feitas no corpo do artigo e nas notas remetem sempre, primeiro, aos textos originais de Winnicott e, em seguida às traduções brasileiras, para ajudar os leitores que não têm domínio da língua inglesa. A referência à tradução não é feita quando o trecho foi traduzido erradamente ou simplesmente não foi traduzido.

Referências Bibliográficas

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Title

Antisocial tendency in Winnicott: eory and Clinic

Abstract

The antisocial tendency to Winnicott is conceived as a psychic disorder that has its origin in environmental failures. ese failures consist of sudden loss of good enough care received by a child who is already mature enough to realize, not fully consciously, that the responsibility for this loss come from environment. First, the child ceases to trust the environment and feels hopeless, but so will the environment become reliable again, hope returns and she practices antisocial acts in an attempt to recover what was lost. Understood from this perspective, I intend to present the theory of antisocial tendency and the clinic that follows from it.