Revista | Vol. 5, N. 2, Dez 2014

Fantasmas invisíveis – o irrelembrável e o inesquecível

 

“Although most of our important and emotional lessons occur during the
early years, we have little to no conscious memory of learning them. is phenomenon, referred to as ‘infantile amnesia’, is due to the immaturity of hippocampal – cortical networks, whose functioning is required for the conscious recollection of the learning process (referred to as source attribution). Despite our lack of explicit memory for these experiences, they come to form the infrastructure of our lives. We experience these early lessons as the ‘givens’ of life, rarely noticing their existence or questioning their veracity. We seldom realize that they are influencing and guiding our moment – to – moment experiences.” Louis Cozolino (2006, p. 128) 

 

O inesquecível 

Como irei brevemente relatar, o conceito de memória e suas funções não podem ser vistas como um processo meramente cognitivo, mas sim como um aglomerado de complexidades tanto influenciadas por factores externos (ambiente) como internos (fisiológico) e a dança entre ambos. Tais factores são no presente as experiências do passado e a antecipação do futuro. 

A nível celular e bioquímico, o aprender é constituído por uma acção neurobiológica entre um organismo e o meio ambiente, e ambos são 100% importantes. O organismo tem o poder de se reestruturar desde o nível químico e celular até chegar ao comportamental. O nosso organismo tem o poder de intervir no meio ambiente, reestruturando-se a si próprio, e a capacidade de mudar o ambiente que o rodeia. 

Siegel (1999) refere todo o aspecto de interacção neurobiológica de aprendizagem em relação à memória emocional implícita e explícita de um ser humano, em que: “a memória é a maneira de como eventos passados afectam a funcionalidade de respostas futuras. Memória é, então, a maneira como o cérebro é afectado por experiências e subsequentemente altera a sua funcionalidade de respostas futuras” (p. 38). 

Diante desta funcionalidade da memória, elabora-se, nomeia-se e dá-se forma à “memória emocional”, ou seja, aquilo que não se vê, muitas vezes não se compreende, mas é sentido; é a forma como o corpo se lembra instintivamente de reagir: com as emoções. 

Especialmente na última década, muitos paralelos entre biologia e neurociências cruzam-se cada vez mais no que diz respeito ao desenvolvimento e memória afectiva. Uma noção imprescindível é que o paralelo e a simbiose entre ambos os ramos são intrinsecamente inseparáveis. 

Tal como relatam Day e Sweatt (2013): 

Both development and memory formation involve the capacity of transient environmental signals to trigger lasting, even lifelong, cellular changes (...) us, both the conceptual analogy between development and behavioral memory, and the fact that epigenetic molecular mechanisms can exhibit self‐perpetuation over time, have been driving concepts motivating the specific investigation of the potential role of epigenetic molecular mechanisms in behavioral memory (...) Substantial and compelling evidence indicates that histone modi cations in the CNS are essential components of memory formation and consolidation (p. 160). 

Day e Sweatt (2013) referem neste contexto como o meio ambiente tem o poder e a capacidade de intervir em mudanças fisiológicas, as quais podem ser desde temporárias até permanentes na reestruturação da memória comportamental e emocional e subsequente adaptação do organismo à funcionalidade e adaptação do meio‐ambiente; de nível químico e celular a nível de mudanças na codificação e translação do genoma: as epigenéticas. 

O meio-ambiente como percursor da alteração genética 

As experiências que temos do feto com o meio-ambiente podem ter o poder de mudar a nossa codificação genética. Hoje em dia, sabemos que tais modificações podem ser transmitidas por gerações, dependente do seu contexto (Morgan, Shaw & Forbes, 2014). Contudo, restringindo a janela de abertura para a infância, é nesta altura em que o cérebro, o sistema nervoso e o resto de todos os aparelhos fisiológicos e anatómicos se desenvolvem a uma velocidade vertiginosa. 

Embora existam várias opiniões acerca da definição do que é a epigenética, um acordo geral actual solidifica-se em que as epigenéticas são a herança da informação baseada no controlo de expressão genética (Lester, 2014); não altera a estrutura no alelo do respectivo ADN celular, mas sim a codificação do próprio a nível químico: quando, como e se vai exprimir (Kistler, Best & Jamieson, 1999). O fenómeno de como o meio-ambiente actua sob os genes; o máximo poder da relação (genes vs meio-ambiente). 

Tal sistema operativo é construído com o tempo, e em grande parte dependente das experiências que a criança tem com o meio-ambiente. Tal sistema operativo pode ser construído sob experiências positivas, tais como um ambiente acolhedor, protector com um bom grau de riqueza das aprendizagens básicas necessárias, como pode ser construído em torno de um ambiente tóxico, de medo, de incerteza e/ou abusivo. Todas estas experiências deixam uma “assinatura” química nos genes, as quais podem ser temporárias ou permanentes e ambas determinam quando certos genes ficam operacionais ou não e como. Um número substancial de dados científicos tem vindo a demonstrar, em crescendo, que experiências indutoras com o meio-ambiente proporcionam mudanças químicas em inúmeros genes, muitos já identificados, e parecem ter importantes papéis no desenvolvimento cerebral e comportamental e a nível dos sistemas fisiológicos. 

Cada vez mais a ciência informa-nos que as assinaturas químicas gravadas nos nossos genes durante o período fetal e durante o desenvolvimento na infância podem contribuir significativamente na arquitectura cerebral, as quais podem durar por uma vida inteira e até ser transmitidas a futuras gerações (Dolinoy, Weidman & Jirtle, 2007). 

Alguns dos nossos genes proporcionam instruções de como os nossos corpos respondem ao stresse; por exemplo, mudanças epigenéticas que mudam quimicamente o receptor no nosso cérebro que controla a hormona do stresse (o cortisol) modificam e determinam a reacção de resposta ao perigo (Shonko , Boyce & McEwen, 2009). 

O ponto proposto como demarcação essencial é que um organismo exposto a um certo meio-ambiente pode sofrer alterações genéticas, as quais mobilizam a parte afectiva para responder ao enquadramento no qual o organismo se encontra. O conceito psicanalítico de internalização toma uma posição num recinto mais amplo: não só se trata dos processos relacionais, os quais dão seguimento aos conteúdos psicológicos de terceiros ao serem incorporados dentro da mente de um próprio (e com maior ou menor grau de intensidade cando a fazer parte da mente do próprio), mas também como o próprio organismo induz mudanças a nível fisiológico a si próprio. 

Na ciência em si, existe um factor determinante no qual a vida no planeta de baseia: para um desencadeamento desde matérias não-animadas à biologia de qualquer ecossistema tem que haver em si um determinado desencadeamento físico e/ou molecular para algo se transformar, organizar, desenvolver, manter a hemeostase até sua própria ruptura. 

Para um cérebro se desenvolver e um corpo crescer é necessário haver outro organismo, outro cérebro que através de troca de energias, faça com que o cérebro cresça e desenvolva as suas faculdades mediante o ambiente que o rodeia. 

Na criança (tal como em adultos), tal ambiente é tudo menos linear, e é quase (se não) impossível descrever cientificamente um blueprint estático de um modelo geral para o desenvolvimento intra e inter psíquico por uma simples razão: na realidade não há. 

Mas a ciência sabe uma coisa: sem interacção entre dois organismos não existe desenvolvimento: a “mente” não é só por si um fenómeno isolado. No que diz respeito à psicanálise, um conceito bem actual respeita aos factores de regulamento cerebral que por si proporcionam o desencadeamento das possibilidades de crescimento em contacto com outros corpos, outras “mentes”.

É de extrema relevância, desde do ponto de vista científico até dentro do consultório, que se considere que o conceito de “mente” nunca possa ser de forma alguma separado do corpo humano, ou seja, ao nível do organismo global. Tal como Daniel Siegel (2012) descreve em sumário: 

Once we say that the mind is both embodied and relational, it means that to know our minds we need to know about the body, including the nervous system that is distributed throughout, and interacts with, the entire body. Noting that the mind is also a relational process makes some people feel as if they don ́t “own” their own minds. The mind is influenced by, our social interactions as well as well as our relationships with entities beyond our bodily selves, with experiences we have with the environment surrounding us. In this way we can say that the mind is both embodied and it is embedded in our relational worlds (p. 17)

Por tal, e visto de um prisma evolucionário na biologia do ser humano, da mesma maneira que começámos entre os últimos 100.00-70.000 anos a evoluir em termos sociais, os quais permitiram que a última e presente espécie humana sucedesse e não entrasse em extinção, que o mesmo fenómeno evoluísse na psicanálise: uma natural sincronização de pulsão do organismo para posição objectal

Entrando no psiquismo da criança no prisma de relações de objecto deparamo-nos com uma constelação de representação de objectos internos (símbolos, imagens, sensações, emoções e comportamentos), os quais afectam individualmente, consciente e inconscientemente, o mundo psíquico e fisiológico da criança tal como a quem está minimamente em contacto com ela (neurobiologia bi-relacional). 

Desenvolvimento, medo e stress tóxico 

A ciência mostra-nos que a exposição a circunstâncias que produzem medo persistente e ansiedade crónica podem ter ao longo da vida consequências que alteram a arquitectura do desenvolvimento do cérebro. Infelizmente, muitas crianças são expostas a tais circunstâncias. Embora algumas dessas experiências sejam eventos únicos, outras podem reaparecer ou persistir ao longo do tempo, tendo todas elas o potencial de afectar a forma como as crianças aprendem, resolvem problemas e se relacionam com outras pessoas (Schore, 2003). 

Em condições ditas ‘normais’, muitos dos medos na criança são um resultado de dificuldades entre distinguir o real do imaginário (ambos são sentidos e projectados). Durante o curso do desenvolvimento e com o desenrolar da idade, as crianças começam a ter uma noção mais elaborada e uma melhor compreensão do que é real e do que é imaginário. Ao mesmo tempo, a criança vai desenvolvendo um sentimento de controlo e previsibilidade sobre o seu meio-ambiente, processo que não é de modo nenhum linear. 

O surgimento e evolução dos medos típicos da infância são diferentes dos medos e ansiedades desencadeados por situações traumáticas; enquanto os medos típicos desaparecem com a idade, o medo e a ansiedade provocados por maus-tratos e outras circunstâncias ameaçadoras não. 

Duas estruturas cerebrais extensivamente estudadas, nomeadamente a amígdala e o hipocampo têm um papel extremamente importante, e por vezes até decisivo, no que respeita ao condicionamento do medo e ansiedade. A amígdala detecta se um estímulo, pessoa ou evento é ameaçador e o hipocampo regista a resposta do medo e ansiedade para o contexto em que a situação ou evento potencialmente aconteceu: toda esta operacionalidade é automática proveniente dos locais evolutivos cerebrais e visa a sobrevivência do organismo, sendo ao mesmo tempo um registo de memória emocional: o condicionamento de como o sujeito se vai sentir mesmo em situações que não representem o enquadramento de como inicialmente o cérebro foi programado para o fazer (LeDoux & Phelps, 2008). 

Uma das consequências de viver com medo persistente é que, desde a modificação epigenética até ao nível de circuitos cerebrais, acontece uma generalização do perigo em vários contextos, destacando-se a projecção de tais condicionamentos a situações que possam relembrar ou ter semelhanças com aquelas em que o perigo inicial foi registado. O sentimento auto-induzido que é catalisador de comportamento: a fantasia. 

Por exemplo, o excesso na produção de cortisol e de adrenalina como resposta a uma situação stressante leva à extracção da memória emocional de acontecimentos passados. Tais acontecimentos epigenéticos ficam programados para reagirem da mesma maneira de acordo com o meio-ambiente ao qual tiveram que se modelar. Os níveis de cortisol podem fortalecer a formação de memórias de eventos emocionais, bloquear a capacidade de ‘desaprender’ memórias relacionadas com o medo e prejudicar a memória e a aprendizagem em contextos não ameaçadores nas partes mais primitivas cerebrais (McGaugh, Cahill & Roozendaal, 2006). 

Elabora-se aqui o irrelembrável da memória emocional: anatómica e fisiologicamente é sentido, muitas vezes não tendo recordação ou a destreza cognitiva de fazer sentido ao porquê das emoções, contudo está gravado nas células do corpo, por tal o inesquecível. 

Todas as relações pessoais, que modelam e remodelam o nosso sistema nervoso e fisiologia (por exemplo, desde o nível químico e molecular à arquitectura do sistema nervoso), são então uma interacção neurobiológica e epigenética entre duas ou mais pessoas. A psicoterapia infantil não é excepção. 

Farei agora uma pequena elaboração de tais ideias perante uma síntese de um caso clínico. 

Joana 

A Joana, com 12 anos, foi-me referida pela mãe com um pedido de bastante urgência. A mãe, uma médica bem sucedida, estava muito assustada com os sintomas da filha. No primeiro contacto que tive com a mãe, esta relatou-me que há dois meses que a Joana ouvia vozes que a mandavam matar os pais e auto-mutilar-se. A mãe informou-me que a Joana não queria ir a nenhuma consulta e estava também bastante ansiosa por o clínico ser um homem (eu). 

Informei os pais da Joana que devido à sua idade não era aconselhável “obrigar” uma adolescente a entrar num processo terapêutico. Contudo, e devido à emergência do caso, deviam trazer a Joana a uma só consulta de avaliação e intervenção. Foi feito um diagnóstico provisório de um episódio breve psicótico (o qual acabou por ficar definitivo). 

Primeiros contactos com a Joana e seus pais 

Na primeira consulta em que conheci a Joana, deparei-me com uma jovem tímida, olhos atentos e hipervigilantes, tensa e nitidamente preocupada. Tal preocupação notou-se de imediato quando a fui buscar à sala de espera: cumprimentei-a e aos pais e seguidamente convidei-a para entrar no consultório. Após o convite, a Joana imediatamente mostrou uma vigilância em direcção aos pais, como se estivesse à espera que eles tomassem uma iniciativa para então compreender o que deveria fazer ou dizer (necessitando dos pais como organizadores sociais e cognitivos). 

Perguntei à Joana se se importava que os pais entrassem por um bocado com ela na sala da consulta, pergunta a qual a Joana me pediu para repetir duas vezes. Quando entendeu a minha pergunta, ficou menos ansiosa, menos “perdida” e disse que sim. 

A Joana entrou e com as suas mãos puxou o seu longo cabelo para trás das costas e notei que usava dois dispositivos auditivos – eu é que estava a falar baixo demais e a Joana não compreendia o que eu dizia. Fiquei a saber que tem perca bilateral auditiva (no ouvido direito tem 45% e no esquerdo 30% de audição). 

A mãe começou a relatar-me as suas preocupações com a Joana: as vozes, a ansiedade da Joana, a vergonha que a mãe tinha por ter de relatar algo tão traumático na família dela a alguém, além do pavor de não conseguir compreender o que se passava com a filha; o que ela como mãe poderia fazer e o desespero que sentia, visto que nem como médica nem como mãe a conseguia socorrer. 

Outra preocupação da mãe, mas que me aliviou a mim, é que as notas da Joana tinham vindo a baixar nos últimos dois meses. Após ter sabido que a Joana tinha boas notas na escola, pude fazer alguns despistes a nível de alguma perturbação mais grave num quadro psicótico. 

A mãe relata-me que a Joana era um bebé que chorava bastante, independentemente do choro de quando tinha fome, sono ou muda de fralda. A mãe recorda-se que este choro era aliviado e cessado quando a Joana via os pais de volta dela. O pediatra na altura não chegou a nenhuma conclusão, pois não havia nada de errado no campo orgânico. Tais sintomas mantiveram-se até cerca dos 18 meses. Foi nesta altura que a mãe voltou à sua profissão e a Joana ficava de dia com uma ama. A mãe relata-me que neste período a Joana não chorava tanto de dia, o que me levou a fazer uma simples pergunta: “O que fazia a ama com a Joana?”. A resposta da mãe foi que a ama era uma pessoa brincalhona, a qual brincava com bastante frequência com a Joana ao colo durante o dia. 

Contudo, ambos os pais dedicavam bastante atenção à Joana. O pai, embora tivesse a trabalhar, durante o dia interagia bastante com a Joana. Porém, e como não é fora do usual nestes quadros, numa grande proporção do tempo (sendo a Joana um bebé difícil devido às problemáticas acima mencionadas) a atenção era de preocupação para com o bebé. 

Neste tipo de situações, a contenção do bebé complica-se: se um dos papéis principais dos pais é ensinar o bebé e a criança a auto-regular-se, quando a ansiedade parental é projectada para o bebé, esta não só modifica o cérebro do bebé como o dos pais (aumentando neles o nível de preocupação e ansiedade) (Schore, 1994). Um exemplo de um dos mais arcaicos sistemas de defesa no bebé e na criança: a projecção identificativa. 

Quando a Joana tinha cerca de 26 meses ainda não falava, apenas apontava para os objectos que queria. Avaliada num hospital em Lisboa, foi unânime da parte da equipa que a Joana tinha autismo. Contudo, a mãe rejeitou a avaliação e mandou fazer vários testes neurológicos e uma ressonância magnética, os quais não detectaram nenhum desvio padrão. A família encontrava-se agora entre a espada e a parede: à continuidade da ansiedade de não conseguir compreender o que se passava com a Joana juntava-se agora um diagnóstico de alta gravidade por certa incompetência médica. Note-se que a maior parte dos bebés com falta de audição nascem de pais de audição normalizada, construindo assim o enquadramento da relação com o bebé. Ainda nos dias de hoje é estimado que o diagnóstico de problemas de audição nos bebés, em 40% dos casos no Ocidente (mediana), é ainda feito bastante tarde, cerca dos 36 meses (Meinzen-Derr, Wiley, Grether, Phillips, Choo, Hibner & Barnard, 2014). 

Foi um dia, pouco antes dos quatro anos de idade da Joana que o pai notou que ela se sentava à frente da televisão e que aumentava substancialmente o volume. A mãe levou a Joana imediatamente ao oftalmologista e ao ORL e realmente havia um problema de visão e de audição – o bebé, e agora criança, mal ouvia e via. Após começar a usar óculos e um aparelho auditivo, a Joana começou a aprender a falar com relativa facilidade com a ajuda da terapia da fala. O diagnóstico de autismo ficou anulado e a ansiedade e o desespero familiar reduziram-se substancialmente. 

É de salientar aqui como a ansiedade e o medo contínuo alteram a nossa fisiologia, como atrás já foi mencionado, e como tiveram um impacto na Joana. O sentimento de querer comunicar e não conseguir compreender devido à barreira na linguagem e compreensão oral produziam um sentimento de isolamento e de alienação na Joana, o qual ficou gravado nas suas células. O mais essencial para o desenvolvimento emocional da criança não é o saber que alguém a ama, mas sim sentir que alguém a ama e a tem em mente. É a necessidade vital e sadia narcísica e libidinal para o desenvolvimento fisiológico e mental. Para tal, a criança, tal como toma por adquirido que os adultos entrem no seu mundo, também intervém activamente no mundo dos adultos para então assim se poder sentir parte de um todo. 

É a este quadro que a psicanalista de crianças Sarah Sutton (2014) chama “the framing relationship” (a relação enquadrada), que engloba não só o campo relacional como o mundo da neurobiologia relacional de hoje. 

Nas suas palavras (Sutton, 2014): 

The neuroscience of the last two decades has made clear how our social nature depends upon the framing relationship, from which we learn to adapt to the social circumstances into which we are born, and to survive. Schore ́s (2003) work shows how our very minds are adaptive in this way, developed through the particular primary relationship, as emotional experience makes neural connections which, having red together, wire together. A child ́s early relationships thus establishing through intersubjectivity the brain patterns that make a mind (p. 2)

E assim se foi construindo a arquitectura cerebral da Joana nos primeiros anos de vida: um sentimento de angústia de se sentir “posta de parte”, de alienação no enquadramento comunicativo colectivo familiar, de se sentir sozinha no meio de todos. Tal isolamento face às dificuldades em sincronizar-se emocional e cognitivamente nas complexidades da vida emocional da família provinham naturalmente de falhas em entender a comunicação em geral, as piadas e a comunicação afectiva em geral. Embora retivesse muita atenção da família, muita desta atenção era de preocupação, o que ao longo do desenvolvimento ajuda a internalizar na criança a imagem da “criança danificada”. 

Começou a ficar registado nas células da Joana um intrínseco sentimento de solidão, mesmo rodeada por pessoas. A Joana relatava-me tal experiência como “devastadora e assustadora”. 

A ama que esteve nos primeiros anos com a Joana, e que não se preocupava tanto com a saúde mental da Joana mas sim em brincar despreocupadamente com ela, teve um papel essencial, talvez mesmo um catalisador essencial para o desenvolvimento dos mecanismos emocionais para o desenvolvimento de “um sentimento de pertença”. 

Se por muitas vezes, por défices na comunicação, a Joana apresentava dificuldades em conseguir sentir o que os outros sentiam e fazer-se emocionalmente entender (o que é difícil quando existe demasiada projecção-identificativa e os pais sentem dificuldade em separar a ansiedade deles da ansiedade da criança), certamente que a necessidade narcísica de ser emocionalmente “devorada” por alguém para preencher o vazio sentido pela solidão interna foi administrada inconscientemente pela ama. 

É da minha experiência que existe um paralelo metafórico em crianças com problemas auditivos e crianças com visão parcial ou sem visão: a dificuldade na construção da identidade do “eu”. Selma Fraiberg (1968), uma psicanalista de crianças que trabalhou extensivamente com bebés e crianças com cegueira, referia bastante o fenómeno de muitas destas crianças apresentarem uma disfunção no desenvolvimento do ego com visíveis regressões que verbalmente se manifestavam oralmente por um discurso com ecolália e uma falta de constância estável de “eu” como entidade. 

Tal parece ter sido similar no desenvolvimento do “eu” como agente devido às dificuldades na comunicação da Joana. A Joana tinha dificuldade em encontrar o seu lugar nas brincadeiras com os colegas e até aos 6 anos em expressar o que era dela ou dos outros. Tal situação continuava a sublinhar o seu ainda gravado sentimento de alienação: dentro do consultório, ao início, por várias vezes, e a nível de transferência, a Joana ficava paralisada sem saber o que fazer ou dizer, se a cadeira onde se sentava era a dela ou a minha. Todas as dúvidas em relação ao que podia fazer tinham de ser explicadas – e na altura ela necessitava disso até começar a demonstrar mais independência funcional dentro do consultório. 

Este sentimento de alienação perante o mundo revela-se numa solidão interna, de não se sentir compreendida, pois tais faculdades cerebrais parecem ter ficado pouco desenvolvidas, biologicamente falando, devido ao facto de a experiência de “chegar comunicativamente ao mundo” não ter sido propriamente desenvolvida durante uma substancial parte da infância. O que levou ao ‘trauma da invisibilidade emocional’. 

De salientar aqui, que tal não é auto-induzido, pois em termos biológicos hoje sabemos que o organismo fica dessa forma programado para assim se sentir. 

Pequena nota sobre crianças com falta de audição e suas mães 

Bebés e crianças com deficiência auditiva com pais com boa audição podem estar em risco de vínculos mais inseguros por várias razões. Em primeiro lugar, a má comunicação entre crianças com de ciências auditivas e suas mães pode levar a vinculações menos seguras; crianças com de ciência auditiva podem sentir as suas mães como insensíveis, pois suas mães costumam responder-lhes com fala ou vocalizações que as crianças não ouvem. Em segundo lugar, as mães de crianças com deficiências auditivas parecem dominar ou controlar a interacção. Finalmente, os pais de crianças com deficiências auditivas têm uma maior probabilidade de sentir mais ansiedade e stresse do que pais com crianças sem problemas de audição (Lederberg & Moly, 1990). 

Notas sobre a experiência da Joana no consultório 

As primeiras sessões com a Joana foram apenas dedicadas a falar sobre a família dela, as primas, as confusões amorosas na escola e brincar e fazer troça de algumas situações banais do dia-a-dia. Especialmente a brincar e a rir. 

A Joana ria-se, eu contava situações da minha vida um pouco invulgares, as quais a faziam rir, e principalmente onde eu procurava focar que era uma pessoa igual às outras, que não estava ali para fazer uma contingência avaliativa da sua suposta ‘loucura’, mas sim interessado nela e validando alguns dos seus actos perante a vida e usando humor noutros. A Joana sentia-se bem disposta. 

Foi algo que continuei por todo o resto da terapia – a necessidade de brincar e a intimidade entre ambos através do brincar era algo que a Joana necessitava. Fi-lo intencionalmente e porque o podia fazer também sendo genuíno. 

Nunca foi minha intenção ser uma ‘tábua rasa’, sem mostrar emoção com a finalidade de fazer uma avaliação a nível de transferência, mas sim usar a transferência como minha aliada: ser a ama que brincava com a Joana ao colo com a finalidade de poder proporcionar Joana o que ela necessitava: de se sentir ‘não invisível’ e a sua presença desejada. Não toquei no assunto de a Joana ouvir vozes nas primeiras sessões e foi administrado à Joana Sedatif PC desde a primeira consulta. 

Durante as primeiras sessões fiz um esforço contínuo de activamente proporcionar à Joana o que o narcisismo de ser venerada por alguém pedia. Tinha em mente que inconscientemente ela necessitava da mesma atenção que a ama lhe havia dado, pois tal proporcionava uma atenuação emocional: emocionalmente sentia-se compreendida, pois havia alguém que não a via como “a criança danificada” e que o seu self também era capaz de divertir outras pessoas (neste caso, eu). 

Se a nível da transferência, ela projectava uma expectativa de desinteresse e mera formalidade da minha parte, o seu organismo, propulsor de tal expectativa, necessitava de provas em contrário e nestas primeiras fases necessitava bastante da minha cooperação, no sentido de mostrar-me um agente activo nas provas do meu interesse por ela como pessoa e provas que ela despertava o meu interesse. É este um dos parâmetros na melancolia com sentimentos de abandono: existe a projecção de que o outro vai car desinteressado, mas ao mesmo tempo o organismo necessita e pede que alguém se interesse. 

No que respeita às brincadeiras durante a sessão, geralmente eram brincadeiras nas quais ela regressava à idade de uma criança de 5 anos. Eram bastante activas e com muito riso. Este investimento exagerado da minha parte era para corresponder à voraz necessidade da Joana se sentir como o centro do mundo, integrada e compreendida. 

A atenção, o tocar, o riso e a boa disposição com o objecto primário amoroso é agora sentido e compreendido, e nesses momentos os canais cerebrais de motivação para ir à busca de motivação entram em acção e exuberância: brain rewarding systems (SEEKING system) (Panksepp, 2012). 

Tal investimento libidinal era extremamente necessário para o início de uma construção de um sentimento de validação interna da Joana. Na psicanálise e psicoterapia de crianças, o clínico tem de ir de encontro das necessidades orgânicas mais primitivas na criança. Só assim poderá depois começar a organizar sistemas operativos terciários/cognitivos. 

Pedi aos pais que por uns tempos tentassem ao máximo não tocar no assunto das vozes e não transmitirem preocupação para com “a Joana, a criança doente”. Pedi que fizessem um trabalho de casa que consistia em “jogar à apanhada em casa e às almofadas” (uns contra os outros). 

A Joana ficava estática quando tal acontecia, tendo os pais relatado que ela parecia um criancinha pequena sempre a pedir para brincar mais, e durante as brincadeiras ficava muito feliz. A minha intenção aqui foi simples: proporcionar um ambiente em casa onde a Joana não se visse aos olhos dos pais como a “criança danificada”, mas sim a criança com quem se tem prazer de estar com. É nestes parâmetros que o trabalho com a transferência dentro do consultório deve, se possível, ser continuado em casa. 

Passadas umas semanas, quando a Joana por entre brincadeiras já se sentia à vontade comigo para falar acerca da sua vida mais íntima, eu toquei no assunto das vozes. A Joana fica em silêncio durante uns segundos e pergunta-me se pode escrever em vez de falar, ao que eu digo prontamente que sim. A Joana escreve-me o seguinte texto: 

“Eu sou uma menina muito tímida e reservada, tenho problemas se eu ficar deprimida uma vez, no dia a seguir se estiver triste outra vez relembra-me e a voz aparece e diz coisas horríveis. 

A voz costuma dizer para fazer coisas horríveis como suicídio e matar a minha família, mas eu não quero, fico triste e começo a chorar. 

Embora os problemas sejam coisas sem importância, para mim importa pois quando tenho muitos prejudica-me como na semana passada que tive problemas. 

No Domingo, foi porque o meu pai fez a árvore de Natal sem mim, e ele sabia que eu também queria fazer, por isso fiquei chateada. 

Na Segunda, tive um trabalho de grupo para fazer com os meus colegas e correu mal, pois uns discutiam e brincavam. 

Na Terça, a minha melhor amiga faltou às aulas e senti-me sozinha e nesse dia era para entregar uma revista e um dos meus colegas de grupo culpou-me professora e ao meu colega por não estarmos a trabalhar, quando ele próprio não trabalha, e ainda por cima foi fazer queixa professora e fez a edição sozinho sem nos contar. 

Na Quarta, a minha amiga continuou a faltar e senti-me sozinha. À tarde, tivemos um concerto de Natal, e um dos meus colegas empurrou-me e eu quase ia caindo pela varanda. 

Na Quinta, hora do almoço, a minha melhor amiga foi almoçar com uma amiga para festejar os anos e não me convida, quando eu a convidei para a minha festa de anos. 

Sábado, então fiquei sozinha. Depois o meu colega que me derrubou na varanda não parou de me chatear. Nesse dia liguei minha mãe triste para ir para casa e disse que já não aguentava mais.” 

Após me entregar a folha com o que tinha escrito, notei na Joana uma fixação permanente e vigilante em mim, de como eu iria reagir; deduzi que inconscientemente estaria um bebé de 2 meses de idade à minha frente com o sentimento “será que és capaz de me organizar e regular-me neurobiologicamente, pois eu não consigo e não entendo?”. 

O escrever e ler as narrativas próprias no processo terapêutico tem um papel fundamental, especialmente com crianças com vários níveis e tipos de trauma. A psicanalista de crianças Armelle Hours sintetiza a prática do mesmo como (Hours, 2014): 

Often it is no longer possible for children who have been subjected to trauma to have access to any internal space for play (...) writing and story telling comes as a space for mediation, the intermediary between self and other. is is why psychoanalysis makes use of play, especially with children, in order to facilitate some restoration of psychic space (p. 144)

Em vez de fazer perguntas e ficar preocupado, decidi regular o caos emocional da Joana de outra maneira, pondo eu também mão à caneta e papel e escrevi como resposta o seguinte: 

“1) O teu colega é um “queixinhas” e ainda por cima culpa os outros daquilo que ele próprio não faz – que lhe cague um pombo em cima. 

2) O sentimento de solidão cá dentro de nós dá com qualquer um a ficar triste, a sentir-se “maluco” – é normal. 

3) Esse sentimento pode ser despertado pela mínima coisa por outros sem querer (ex: o teu pai não te ter convidado para fazer a árvore de Natal, a tua amiga faltar, não seres convidada...)
A solidão dá com qualquer um em “maluco” – é normal.” 

Após ter lido a primeira alínea, a Joana começa-se a rir durante um bom bocado de tempo e eu também. Após ler o resto começam a vir-lhe lágrimas aos olhos; aproveitei este momento para me sintonizar emocionalmente com ela e ajudar o seu organismo a se auto-regular: não disse mais nada e apenas lhe peguei na mão durante algum tempo, o que a acalmou e fez com que a fisiologia da Joana em relação à ansiedade e medo tomasse o seu percurso natural. Ou seja, em vez de bloquear com medo, Joana apertou a minha mão. Fisiologicamente o que aconteceu é que dada a oportunidade, a Joana teve consciência do que estava a sentir, o sentimento de isolamento, de pavor, e pôde usar-me a mim como ferramenta para que o seu corpo pudesse elaborar em completo o ciclo do sistema nervoso do “medo e pânico”, e não ficar interrompido como costumava ficar: no “freeze/immobilization” ou congelamento. 

O especialista em trauma, Peter Levine, descreve o ciclo do medo como: 

Arousal> Unsuccessful Escape> Experience of Fear & Helplessness> Immobilization (Levine, 2010). 

Ao estar com a Joana, e dada a consciência sentida do que sentia (self awareness of split parts) e poder dar-me e apertar-me a mão quando necessita, inicia-se o ciclo de restauração de respostas de defesas activas quando não bloqueadas: Immobility> Arousal> Running> Successful Escape> Empowerment (Levine, 2010). 

Dentro de uma perspectiva neuro-evolutiva, são estes sistemas primários que nos têm mantido vivos como espécie neste planeta. É dentro destes parâmetros interactivos que a intervenção terapêutica com crianças e adolescentes se vai processando. O terapeuta passa a ser um interveniente activo no processo terapêutico, estando consciente (o mais possível) na dança subtil de transferências e projecções identificativas, contudo mantendo sempre a mesma postura de constância emocional: o estar emocionalmente sincronizado e presente. Requisito essencial para a criança começar a desenvolver inconscientemente um sentimento de confiança para com outro em relação ao seu Self, interiorizar esse sentimento de confiança e assim ir aprendendo a projectar tal sentimento interiorizado no mundo. É necessário que ela saiba e sinta que alguém a tem em mente. 

Organizar e ajudar a Joana a reestruturar o seu ego e cognição foi então secundário à necessidade de ser admirada por alguém (eu). Passadas poucas semanas as vozes desapareceram por completo. Porém, entrávamos agora na fase mais crítica do processo psicoterapêutico: ajudar a Joana a solidificar as competências e ferramentas necessárias para enfrentar os medos que a assaltavam, não ter medo de ficar “maluca” ou sentir-se com regularidade a “criança danificada”, e tanto consciente como inconscientemente identificar-se com tal projecção de si própria como “a adolescente normal”. 

VOZES DA RAZÃO 

Há muitos anos que aprendi a não contrariar vozes e alucinações, mais especificamente quando levei literalmente com um dinossauro de plástico na testa de um rapaz de 7 anos com psicose infantil. Na melhor das minhas intenções, disse‐lhe que a voz que ouvia não era verdadeira, que não existia nenhuma cobra que lhe iria cortar a cabeça. Claro que havia uma cobra que existia permanentemente dentro dele que a qualquer momento lhe poderia cortar a cabeça, tal como entre os seus 4 a 6 anos de idade o pai lhe batia e abusava dele sexualmente com regularidade, matando o prazer para a vida que existia dentro dele e existindo uma constante luta dentro dele: libido vs a vontade de aniquilação do próprio (que nada mais era do que a sublimação das partes clivadas que queriam matar o pai). 

As vozes da Joana na sua especificidade não eram diferentes: requeriam a aniquilação da parte fantasiada dos pais que não a conseguiam socorrer e a vergonha e raiva a si própria por o sentir. 

Tal tristeza e melancolia ficaram gravadas no seu corpo, inconscientemente culpando os pais por não a conseguirem compreender e salvá-la do seu desespero. Tal pavor era generalizado por momentos protótipos de abandono emocional: o medo de ficar sozinha no quarto, o medo de ficar sozinha em casa. Predominava a necessidade primordial do bebé, que consiste em que o mundo gire à sua volta em termos de atenção e tempo (por isso mesmo, aos 12 anos, ficava magoada se a sua melhor amiga não estivesse permanentemente ao seu dispor: o poder da transferência e projecção os quais ficaram marcados no seu organismo). 

Vozes, pois, que sublinhavam o sentimento de abandono e de invisibilidade emocional, os quais culpavam os pais e queriam aniquilá-los por ‘não conseguirem chegar a ela’, não os pais reais de que tanto gosta. 

A mágoa do sentimento de abandono emocional entra no seu percurso normal e a raiva narcísica age como uma voraz necessidade de que a ansiedade e pânico sentidos sejam imediatamente gratificados. 

Os sentimentos de culpa e de vergonha por sentir o que sentia perante os pais (sentimentos de raiva> aniquilação) transformam‐se numa voz que lhe diz que não vale a pena existir assim, que é má e que deveria morrer. 

O PENOSO ABANDONO DA CONSTANTE NECESSIDADE NARCÍSICA 

Tal como o bebé e a criança tem de passar por penosos momentos na sua vida em rumo à individuação, também a Joana, aos 12 anos, não foi excepção. Saber lidar com as alegrias é tão fisiologicamente necessário como saber lidar com as frustrações. Tal valência é uma componente em qualquer relação amorosa. Filosoficamente, relembrando um parágrafo de Mélanie Klein (1937): 

My psycho-analytic work has convinced me that when in the baby ́s mind the conflicts between love and hate arise, and the fears of losing the loved one become active, a very important step is made in development. These feelings of guilt and distress now enter as a new element into the emotion of love. They become an inherent part of love, and influence it profoundly both in quality and quantity (p. 306). 

É neste prisma de des-narcisação em relação à necessidade do “eu necessitado” que uma nova ambivalência se revela perante o processo psicanalítico. Por um lado, é essencial que a Joana por algum tempo tivesse da minha parte e da dos pais um exagerado interesse e empenho no que tocava à sua necessidade narcísica de se sentir no centro do mundo, satisfazendo assim o “inesquecível” que o seu organismo sentia falta, tal como bebé necessita de se sentir imerso no consciente colectivo e emocional de sua família. 

O passo doloroso (porém necessário) de ultrapassar tal narcisismo normal da infância, o qual engloba as ferramentas para consolidarem as clivagens do amor e do ódio num total em referência a outro objecto, faz parte do desenvolvimento sadio. 

É o abandono do “eu necessitado” para a independência e individuação rumo ao “eu objectal”, responsabilizando-se pelas partes de ódio e não as transferir e culpabilizar o outro. A aceitação do amor que pode dar e do que é aceite. O conceito de amor e relação toma então nova perspectiva e, como Klein mencionava, um passo essencial no desenvolvimento. 

Contudo, uma viagem penosa por vezes é uma viagem necessária e libertadora, quando a família começa a entender que a tirania da felicidade garantida, linear e quase existindo um “decreto-lei” que diz que tem de ser sempre adquirida, a final não é uma realidade, mas sim uma prosa poética. 

Por tal, a meu ver, o desenvolvimento do narcisismo tanto sadio como patológico encontra-se dentro de um parâmetro dinâmico da mente emergente baseado na falha narcísica na fase da aproximação de Margaret Mahler (1975). 

Uma analogia pertinente ao caso da Joana pode ser encontrada em Johnson (1987): “the injury is a deep wound to the experience of the real self (...) In the less extreme variations of this disorder, which are endemic to our culture, there is often a veiled awareness of the real self but a concomitant rejection of it” (p. 39). 

CONCLUSÃO 

Pode ser extremamente assustador e traumático para um bebé ou criança não se sentir enquadrada no elo familiar e emocionalmente sincronizada. Não se conseguir fazer compreender emocionalmente aos olhos dos que ama e de quem necessita para aprender a auto-regular-se e ter um espelho de si própria (contudo, certo grau de incompreensão é necessário para abrir caminho a saber utilizar ferramentas neurológicas para com a ansiedade). 

Tal ansiedade, desde um nível químico a um nível neurofisiológico de sistemas, fica gravado como modo operativo em situações que possam ser, tanto na realidade como na fantasia, idênticas ao sofrimento inicial e suas constelações. É esta a base de como a criança fica a ver e a sentir o mundo: a ‘framing relationship’, que consiste no que, em tempos, Bowlby designava como ‘Internal Working Models’ (Bretherton, 1988). 

Tal é o irrelembrável, pois não se sabe porque se sente, mas está lá; tal é o inesquecível, pois os mecanismos estão lá para activar a memória emocional. 

No caso da Joana, destaca-se a dificuldade em compreender o que os outros sentem, imersa pela sua ansiedade em ser emocionalmente compreendida e regulada; o desgosto em não conseguir chegar aos outros. É neste sentido que falo de trauma da invisibilidade emocional. 

Dentro do consultório, existiu um agente activo que foi à procura da Joana ‘invisível’, algo que o afastamento narcísico dela sempre pediu – para poder confiar. 

A Joana encontra‐se agora bem integrada na escola, com o seu círculo de amigos e menos dependente da mãe para tomar as suas decisões. O meu trabalho com a Joana termina aqui, o dela continua. 

 

Referências Bibliográficas 

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Notas de rodapé

1 – Psicoterapeuta pediátrico, membro da Royal Society of Medicine e membro correspondente da AP. 

Title

Invisible Ghosts – The Unrememberable and the Unforgettable 


Abstract 

The purpose of this article it’s to elaborate a common type of trauma which I’ve been dealing with in my clinical career with children, adolescents and their families (or lack of). The theme in scientific literature, which had a poor research due to the lack of research resources in the fields of neurobiology, has now in the last few years been focus of scientific research: the trauma of emotional invisibility in the child, its impact in herself and with the world and the force of the environment (epigenetics) in its possible mental and neurophisiologic modification. To elaborate my case I shall use some basic scientific foundations together with a brief account of a clinical case. 

It is not my intention to expand scientific research on epigenetics and neurobiology as that would be an extensive project, although more information can be found in the references.