A teoria winnicottiana do amadurecimento pessoal assenta essencialmente na comunicação humana (intra e inter-pessoal) e nos vários sentidos de realidade que constituem a existência.
Partimos do princípio que o amadurecimento mental, isto é, o enriquecimento e expansão interior e relacional do ser humano implica a capacidade de utilização plena, harmoniosa, útil e criativa das inúmeras potencialidades psico-afectivas e relacionais do indivíduo na relação consigo mesmo e com o mundo exterior; trata-se, pois, de alcançar o funcionamento da mente de forma inteira e una.
Nesta comunicação gostaria de me focalizar na conquista da ‘visão binocular’ de si e do mundo, simultaneamente objectiva e subjectiva, como uma das manifestações da maturidade criativa humana. Deste ponto de vista, a maturidade psico-emocional seria a capacidade de manter ligadas áreas de objectos subjectivos (objectos do ‘eu’) juntamente com outras em que há relacionamento com objectos percebidos objectivamente (objectos do ‘não‐eu’) ou, utilizando a terminologia de Alfredo Naffah Neto (2010), a razão subjectiva, aquela que rege os affaires do coração, investindo preferencialmente o mundo interno, subjectivo, e a razão objectiva, utilitária, investindo fundamentalmente os acontecimentos do mundo exterior.
Donald Winnicott e Silvano Arietti falam-nos deste tipo de funcionamento e de capacidade presentes no homem saudável e criativo, mas utilizando conceitos diferentes: através do espaço potencial (Winicott, 1971) e dos processos terciários do pensamento (Arietti, 1976).
Comecemos por Arietti e pelo seu conceito princeps, os processos terciários do funcionamento mental. Baseia-se nos dois principais níveis mentais em acção preconizados por Freud (1911): o processo primário, que consiste num modo de funcionamento das funções psíquicas inconscientes da mente, prevalecendo na actividade onírica; opera de modo diferente do processo secundário, que é o modo de funcionamento da mente quando está acordada e usa a lógica comum. Aliás, numa antecipação do conceito de processo terciário, Freud, em Os dois princípios do funcionamento mental, afirma: “A arte consegue conciliar ambos os princípios devido ao seu caminho peculiar (...)” (1911/1981, p. 1641). Na linha de pensamento de Grotstein (1981/2003), o pensamento em processo primário está associado a uma visão do mundo pessoal, idiossincrática, autóctone, estando o processo secundário relacionado com uma visão do mundo objectiva e interpessoal.
Em Criatividade: A Síntese Mágica, Arietti anuncia: “Propus a expressão processos terciários para designar esta combinação especial de mecanismos dos processos primários e secundários.” (1976, p. 12). O processo terciário combinaria os mundos da mente e da matéria, a realidade psíquica e a realidade externa e, muitas vezes, o racional e o irracional, enriquecendo e expandindo o indivíduo interiormente. O que Arietti sustenta aqui é o facto de um dos factores fundamentais da mente una e inteira característica de um adulto saudável e criativo residir na capacidade de fundir sonho e realidade, assim como na facilidade e liberdade assinaláveis em conseguir transitar ou harmonizar essas duas vertentes do funcionamento mental.
O escritor barcelonês Enrique Vila-Matas, num dos seus últimos romances, Ar de Dylan (2012), aborda esta problemática meditando ludicamente sobre a realidade e ficção afirmando que um ficcionista não tem de competir com as notícias da imprensa e com o “espectáculo do mundo”, cabendo-lhe, em vez disso, tornar permeáveis as fronteiras entre a realidade e a ficção, pois “a realidade pode permitir-se o luxo de ser inacreditável” (p. 140).
Não estaremos muito próximos do conceito winnicottiniano de espaço potencial que ultrapassa também a dicotomia internalidade-externalidade? Em que o indivíduo saudável e criativo, tal como a criança que brinca criativamente, consegue alcançar uma fusão criativa, encontrar a intersecção entre a realidade psíquica interna e a realidade material exterior?
A elaboração do principal conceito de Winnicott (1971), espaço potencial, foi muito estimulada pela reflexão da sua experiência clínica infantil, assim como pelo facto da sua mulher ser ceramista e pelos seus escritos, nos quais ela estabelecia uma relação entre o brincar na criança e a concentração no adulto: “Quando comecei a ver (...) que esta utilização que era feita de mim podia ser não apenas uma regressão defensiva mas também corresponder a uma fase recorrente essencial de uma relação criativa com o mundo (...)” (Milner, 1952/1987, p. 55).
Definido por Winnicott como “Essa área intermediária da experiência, incontestada quanto a pertencer à realidade interna ou externa (partilhada), constitui a maior parte da vivência do bebé. Ela subsistirá ao longo da vida no modo de vivência interna que caracteriza as artes, a religião, a vida imaginária e o trabalho científico criativo.” (1971/1975, p. 25). Portanto, um espaço intermediário entre os mundos interno e externo.
Há, na teoria de Winnicott, muita coisa que depende deste “espaço potencial entre o objecto subjectivo e o objecto objectivamente percebido, entre as extensões do eu e o não‐eu” (op. cit., p. 139): é a união de realidades diferentes, implicando modos diferentes e inconciliáveis de aproximação e gestão mental, unificando a mente, tornando o sujeito mais inteiro e mais adequado a viver de forma mais saudável, criativa e útil.
Sendo o símbolo tudo aquilo que possa sustentar o psiquismo na ausência do objecto, o espaço potencial, verdadeiro produtor da actividade simbólica, cria a possibilidade, através da cultura, do sujeito se sustentar e realizar criativamente.
Mas Winnicott propõe também uma definição da criatividade que sai do quadro restrito das criações e produções culturais reconhecidas (a criação com ‘c’ maiúsculo) para a considerar como uma determinada atitude ou relação face a si próprio e ao mundo exterior. Essa atitude ou relação seria: “Um modo criativo de percepção que dá ao indivíduo o sentimento que a vida vale a pena ser vivida; o que se opõe a tal modo de percepção é uma relação de condescendência submissa em relação à realidade exterior; o mundo e os seus elementos são reconhecidos, mas apenas como sendo aquilo a que é necessário ajustar-se e adaptar-se” (op. cit., p. 91).
Marc Chagall, artista surrealista, é alguém que está em íntimo contacto com a sua interioridade e espelha nas suas obras o seu mundo interno, o seu espaço poético e a sua liberdade interna. Nas aproximações que o surrealismo fez à psicanálise, André Breton procurou estabelecer uma ligação entre a realidade interna e a realidade externa, evocando uma realidade para além da realidade, uma surrealidade (Breton, 1924/1976). Numa palestra acerca da natureza da sua pintura, Chagall afirmou: “Passados estão os bons velhos tempos em que a arte se alimentava exclusivamente de elementos do mundo exterior, do mundo das formas, das linhas e das cores. Hoje estamos interessados em tudo, não só no mundo exterior, mas também no mundo interior do sonho e da imaginação” (Chagall, cit. Baal-Teshuva, 1998/2008, p. 9).
Quer o conceito de surrealidade quer esta afirmação adequam-se perfeitamente à compreensão do espaço potencial de Winnicott e do processo terciário de Arietti, na medida em que este se define como uma área transitiva entre exterior e interior, objectividade e subjectividade, processos primário e secundário, emoção e razão, fantasia e realidade, como um espaço paradoxal onde as realidades interna e externa se encontram criando uma nova realidade. Em suma, um espaço de “síntese mágica” onde se apagam as contradições.
O pintor Mondrian afirmou com notável clareza que o único problema da arte moderna é conseguir um equilíbrio entre o subjectivo e o objectivo. Fundir a ilustração do mundo percebido pelos sentidos, isto é, o mundo real, objectivo com a ilustração da presença do mundo interior, a perspectiva poética, irracional e ilógica do inconsciente e da intuição, radicalmente oposta à reflexão racional.
Olhemos para a pintura:
O retrato verde no lado direito poderia perfeitamente ser o próprio Chagall. A cabeça colorida de uma vaca tão proximamente nos olhos enquanto, dentro da cabeça, outra vaca é ordenhada por uma camponesa. No fundo encontram-se duas outras figuras, uma delas suspensa e de pernas para o ar. Nesta obra, Chagall inspira-se fortemente no seu passado russo (manteve-se sempre fiel às suas recordações e aos seus sentimentos de amor por Vitebsk, a aldeia onde cresceu) criando um forte elo entre as suas memórias e o local onde nasceu (e onde sempre aspirou voltar) e a pintura.
Esta pintura não representa só a realidade exterior, objectiva: leis da anatomia, da perspectiva, da gravidade, do espaço e do tempo, relações entre humanos e animais, não são respeitadas: tudo isto é a tradução do processo primário. Libertando‐se da necessidade de reproduzir o mundo sensível, real, Chagall usou a cor com inteira liberdade fazendo com que assumisse uma função puramente simbólica. Como afirmou sabiamente um crítico “os tons de Chagall não contêm a luz física, mas sim a iluminação psicológica”. Mas Vitebsk é perfeitamente reconhecível: manifestação do processo secundário. A transformação operada pelo pintor permite-nos reconhecer o seu mundo e descobrir novas significações. A aldeia não está representada realisticamente, mas sim psicologicamente, isto é, está representada numa condensação, numa fusão (processo terciário) de conceitos e de elementos realistas (processo secundário) e sentimentos (processo primário), tais como o amor pelas pessoas, a alegria pela natureza, pelos animais, com o seu interminável e ancestral diálogo com os humanos. Realidade e irrealidade estão unidas, criando uma surrealidade, um espaço potencial onde são apagadas as contradições inconciliáveis entre os objectos subjectivos do mundo interno (do ‘eu’, do ‘coração’) e os objectos percebidos objectivamente (do ‘não-eu’, da realidade). A tela encontra-se assente na composição radial, ou seja, a partir do ponto central, de onde partem diagonais que atravessam o quadro dividindo-o em seis partes, o que nos remete para a identificação de histórias distintas, de mundos diferentes mas ainda assim estreitamente ligados: o ser humano e o animal; a natureza e a civilização; o homem e a mulher – arquétipos arrumados geométrica e ordenadamente. A simultaneidade de motivos, de fundo onírico-mágico, representando realidades simbólicas, visões lembradas. No fundo, revela-se neste quadro a procura (e o encontro) do mundo interior do pintor, a sua psicologia e os seus sentimentos, as ambiguidades, os sonhos, as associações dissociadas. Jogos de contrários sob uma irredutível lógica geométrica.
A revolução de Chagall consiste em conciliar a ilustração do mundo percepcionado pelos sentidos, ou seja, o mundo real, exterior, objectivo, com a ilustração da presença do mundo poético da interioridade, da subjectividade. Pode afirmar-se que é o mundo exterior iluminado psicologicamente, apontando para uma realidade para além do mundo visível. O presente não é só o ‘agora’, é também a lembrança do passado e a projecção no futuro. Por isso, a arte de Chagall representa a autobiografia íntima do pintor.
Mas na relação do espectador com a obra de arte, o objecto artístico recupera as suas características de objecto potencial, isto é, um objecto contendo a potência de estimular no receptor as suas características próprias. No caso em questão, a aldeia, o frente a frente do homem com a vaca, o camponês face à mulher suspensa e de pernas para o ar, o verde ‘submarino’, etc., todos estes elementos poderosamente simbólicos, atiçam a imaginação levando a acordar no espectador personagens e situações do seu mundo interno, ajudando-o a reler-se e a ampliar-se, assim como o inquieta e estimula a procurar novas leituras de si. A confrontação com o quadro, com esta poesia escrita com cores de aguarela teve o condão de activar um espaço entre o real e o imaginário, o espaço potencial do receptor.
Picasso (1988/2008) disse um dia: “Quando Chagall pinta, não se sabe se dorme nesse momento ou se está acordado. Ele deverá ter, em qualquer sítio da cabeça, um anjo” (p. 39). Eu diria que Chagall pinta num registo mental simultaneamente onírico e vígil, sinónimo da acção vigorosa do espaço potencial, desse ‘lugar’ psíquico que potencia o apagamento de distinções (que possivelmente só existem depois do racionalismo de Descartes) e que permite a fusão criativa de processos mentais que, num indivíduo saudável e criativo, devem funcionar em harmonia e não separadamente. A nossa tarefa no trabalho clínico é tentar resgatar este ‘anjo’ que permite a harmonização da autoctonia e da alteridade ou, parafraseando Coimbra de Matos, permitir a vida plena que é “viver com os pés assentes na terra e com a cabeça na lua para poder sonhar” (Comunicação pessoal, Ispa-IU). Já os romanos diziam que a arte da vida é saber conciliar o otium com o negotium.
Arietti, S. (1976). Creativity: e Magic Synthesis. N.Y: Basic Books.
Breton, A. (1924/1976). Manifesto Surrealista. In Breton, Manifesto do Surrealismo. Lisboa: Moraes.
Chagall, M. (1998/2008). In Chagall. Baal‐Teshuva, G. Koln: Taschen.
Delgado, L. (2012). Psicanálise e Criatividade: estudo psicodinâmico dos processos criativos artísticos. Lisboa: ISPA.
Freud, S. (1911/1981). Los dos principios del funcionamiento mental. Sigmund
Freud. Obras Completas (Tomo II, 1638‐1642). Madrid: Biblioteca Nueva.
Grotstein J. S. (1981/2003). Quem é o sonhador que sonha o sonho? Um estudo de presenças psíquicas. Rio‐de‐Janeiro: Amigo.
Milner, M. (1952/1987). Aspects of symbolism in comprehension of not‐self. International Journal of Psycho‐Analysis, 33, 181‐195.
Vila‐Matas, E. (2012). Ar de Dylan. Lisboa: Teodolito.
Winnicott, D.W. (1971/1975). Jeu et Réalité, l ́Espace Potentiel. Paris: Gallimard.
1 – Artigo baseado na comunicação com o mesmo título, pronunciada no II Congresso Winnicott Luso-Brasileiro: A retomada do amadurecimento, Lisboa, 20 e 21 de Junho de 2014.
2 – Doutorado em Psicologia Clínica. Professor universitário: ISPA‐IU. Psicanalista Titular: AP. Av. General Roçadas, 48, 5o B, 1170‐010 Lisboa, Portugal, 218143339 / 919604739
Dialogue Between D. Winnicott and S. Arietti Regarding I And e Village (Chagall, 1911) .
Assuming that the human mental maturation and expansion involves the harmonious use of the various psycho-emotional potentialities of the individual, the author proposes as a metaphor of this psychodynamic appreciation the reading of the painting ‘I and the Village’ by Marc Chagall (1911) through the psychoanalytic concepts of potential space (Winnicott, 1971/1975) and tertiary processes of thought (Arietti, 1976), which are respectively connected with the creative fusion of inner psychic reality and external material reality as well as the special combination of primary and secondary mechanisms of thought processes.