Recentemente conhecemos Richard RauboltI, ao participar em dois Encontros/Jornadas da AP (12 de Abril e 14 de Abril) e estudando o seu trabalho Cenários Psicanalíticos do Trauma (2014). E vendo o seu filme Detroit, Living in between.
E conhecemos melhor Donald Winnicott, também estudando Natureza Humana (1988/1990), trabalho paradigmático na sua obra escritaII.
Nada do que é humano lhes é estranhoIII. Com foco no bebé/criança/jovem (Winnicott, 1990) ou especial ênfase no trauma (Raubolt, 2014), aprende-se e apreende-se a aventura humana, imaginada com o bordão destes dois eminentes psicanalistas. Entrelaçada pela vida vivida. E, sobretudo, da vida a viver.
Segue-se a anotação de algumas referências/temas que nos tocaram, tornadas possíveis pelo Encontro da AP e este II Congresso da responsabilidade da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana e da AP. E com o apoio da International Winnicott Association.
1 – Questões de estilo e setting.
2 – Investigação/Acção: preponderância bottom up na Investigação. 3 – Infortúnios da coisificação.
4 – Instinto Sistémico: marcado avanço na Psicanálise.
Richard Raubolt
No VI Encontro Anual da AP (2014/04/12), a sua intervenção teve como suporte o trabalho Traumatic Apparitions Haunting the Couch and the City. Dois suportes relevantes foram: o livro Cenários Psicanalíticos do Trauma (Raubolt, 2014) e Detroit, Living in Between, um filme de 34 minutos.
Um filme curto, um livro pequeno: 119 páginas na tradução portuguesa.
A simplicidade (do que é complexo) e a intensa humanidade de Raubolt são marcas d’água em si: sobre o livro chama a atenção de que “este não é um livro para uma leitura leve, por isso o meu conselho é ler uma história de cada vez e de seguida reflectir acerca das suas respostas emocionais antes de passar à próxima. Poder-se-á sentir perturbado pelo que leu o que, para mim, será sinal de um coração com paixão” (Raubolt, 2014, p. 20). Compaixão, um sentimento que rareia nos inquietantes e trôpegos dias que correm.
“Quero que os leitores deste volume se sintam menos confortáveis e que se debatam mais sobre a natureza do trauma.“ (...) “este é um livro focado na narração de histórias” (Raubolt, 2014, p.14). O autor descreve, a partir de uma experiência de 30 anos, um novo estilo, um novo setting, começando por uma autocrítica sobre o trabalho dos psicanalistas: “através de práticas e de publicações, contribuímos para algo lamentável: a banalização do trauma. (...) Perdemos a nossa capacidade de discernir o horrendo do decepcionante”. Uma mudança paradigmática só se consegue “(...) se re-conceptualizarmos o que é o trauma e introduzirmos um novo tipo de relação terapêutica em que o tratamento é inseparável das experiências co construídas por terapeuta e paciente, vividas e transmitidas numa linguagem mutuamente partilhada do trauma.” (Raubolt, 2014, p.15) (...) “Os traumatizados são subjugados, as suas almas despojadas de individualidade e os seus autorretratos desfigurados até se tornarem irreconhecíveis, à semelhança, por exemplo, das distorções deliberadamente efectuadas, que observamos na obra de um artista talentoso como é Francis Bacon.” (...) Temos falhado em reconhecer que os traumatizados, sejam eles quem forem, estão a viver as histórias dos outros e não a sua própria história. (...) (Raubolt, 2014, p.17). “Nós, você e eu, vamos dar lugar às histórias, as suas e as minhas, à medida que entramos no palco” (Raubolt, 2014, p.18). Esta simetria (note-se que apenas em dados momentos ou períodos) melhor se entende recorrendo a Matte-Blanco (1975). Raubolt diz que, “nesta intensa inter-relação, a díade terapêutica é mais correctamente denominada de terapeutapaciente (juntos) do que terapeuta e paciente (separados). (...) À medida que o trabalho da cura emerge e as transformações acontecem, as palavras são redescobertas e a separação é novamente estabelecida”IV (Raubolt, 2014, p. 19).
Histórias simples (algumas pavorosas) e breves. Rhonda, Ceely, Jane, Missy, Tina, Sharon, Chris, Bones, Deanna, Trent, Brenda, Mikie, Vange, Shannon, Annie, Jess, Sally, Marissa. E, permanentemente, Richard.
Nele é fascinante o desnudamento, o risco calculado, o experimentalismo. O inesperado. Mas também a comunicação breve, sem simplismo, buscando o essencial. Uma certa vertigem do conto, que aliciantes contos. Uma experiência clínica diversificada, densa. Entre a linha que não permite o resvalar, a atracção pulsional para frequentar o escorregadio, o retomar da lucidez. Jogos (quase) proibidos.
Admirável o caso de Rhonda (Uma manhã calma, p. 21 a 24): “Por que faz este trabalho?” (...) “É por sua causa. Não consigo pensar noutro local onde quisesse estar agora. Você sabe que o amor tem tonalidades diferentes. Faço este trabalho por momentos como este, por amar o que faço, na maioria das vezes, a pessoa com quem estou”. “Eu?” Segue-se um desenrolar de uma explicação sobre que tipo de amor (p. 21).
E quanto a Brenda (Espaço partilhado, p. 71 a 73), ilustrando um setting não rígido e geométrico: “Devido ao que é profundamente pessoal (...), aos sentimentos mais profundos e às histórias que se desmoronam (...) o espaço partilhado da psicoterapia e a própria sala, tornam‐se mais pequenos e íntimos. (p. 73). Como se o terapeuta fosse um outro Boris Vian (1963), de L ́Ecume des Jours, uma casa com paredes que se vão contraindo, num expressionismo íntimo e letal.
Chris (No outro lado, 14, p.51 a 57), sobre os traumatizadores, não os traumatizados. Perpetradores (ou agressores), como a sociedade os designa. Raubolt diz que avaliou ou tratou 300 destes casos. Sendo um problema social muitíssimo difícil de abordar e sequer de tratar, em que a reacção da sociedade, por impreparação e insensibilidade, tem reacções brutais que acabam por virar-se contra si própria, esta história só se pode ler na íntegra e vale a pena, pelo lúcido discurso contracorrente.
Com Jane (Cicatrizes, p. 33 a 37), a inovação a despontar: o beijo na testa. A prova da resistência: não me destróis. Mostrando-se depois, incólume. Mal lido: uma Psicanálise que teria paredes de vidro: tudo se poderia mostrar como, no zeitgeist do infortúnio em curso, a destruição da intimidade. O amor líquido de Bauman (2003). Tragédia dos tempos actuais.
Por várias vezes, uma proposta de descida aos Infernos. Mas é em Michel Serres que encontramos a formulação paralela: si tu veux sauver ton âme, consente en la perdre; si tu veux perdre ton âme essaie de la sauver a tout prixV. Ou, pela voz de Maquiavel, qualquer coisa como: para encontrar o caminho do Paraíso há que aprender o caminho do Inferno e evitá-lo.
A assombração do divã e da cidade não pode isentar-se de caminhos sombrios, gélidos. A viagem ao fundo do poço: um par que o leva a cabo. Raubolt conta-nos que os papéis podem temporariamente trocar-se, primeiro na imersão, depois na emersão. Falando de Brenda:
Na medida em que a situação foi tão transparente e tendo sido das primeiras vezes que me apercebi deste tipo de fusão com um paciente, senti-me envergonhado como se eu tivesse tirado algo dela. Brenda esteve melhor do que eu, focando-se na sua própria recepção interna das minhas palavras e oferecendo‐me o seu respeito através do silêncio, permitindo‐ ‐nos assim encontrar um equilíbrio. Ao lerem isto, alguns profissionais podem interpretar o que eu descrevi como graves relações de contra-transferência. Que assim seja. No entanto, por detrás dessa interpretação, talvez esteja um indício de culpa de que também eles conhecem o espaço que eu estou a descrever. (Raubolt, 2014, p. 73).
O estilo, incopiável, artesanal, único. Porque a busca de estilo é um acto criativo, as marcas que perduraram, de si, de outros. Não há (se há... são os piores) estilos virgens, puros, decalcados. Decalcomanias. Embora, verdadeiramente, não haja busca, antes o não procuro, encontro, à la Picasso.
O estilo, filho único, que vai crescendo, amadurecendo. Desenvolvendo-se, vivendo. Um estilo que não pára, move-se, mantendo uma leira, mesmo que no disfarce de uma metamorfose. O setting anda a reboque. Mas, por definição, as condições para o paciente singrar terão que ser sempre... as melhores? Antes talvez as mais adequadas face às variáveis em jogo e ao peso que lhes é atribuído. Portanto não compatíveis com geometrias rígidas, conselhos de almanaque (divertidos) ou manuais (enfadonhos).
40 anos de clínica hospitalar continuada no Paddington Green Children’s Hospital, vendo mais e mais crianças. “Desde o início, a vida é difícil em si mesma e a tarefa de viver, de continuar vivo e amadurecer é uma batalha que sempre permanece” (Dias, 2003, p. 62). A primazia dada por Winnicott à pessoa, à vida, à natureza humana, como ponto de partida pleno para outras integrações é recorrente, um leitmotiv na sua vida e no seu trabalho. “Winnicott não deixa lugar a dúvidas: ele está interessado em pessoas e não em coisas dotadas de propriedades e que carregam em si determinações intrínsecas: sua questão é o sofrimento ou o aprisionamento das pessoas pela sua incapacidade de viver, e não as entidades, mecanismos ou forças que operam dentro das pessoas, a despeito delas mesmas, e que podem ser estudadas ao modo dos entes naturais e quantificáveis.” (Dias, 2003, p. 75). Uma opção. Um estilo. Outro.
A forma de comunicar existe também na identificação de um estilo.
Entre 1939 e 1962 Donald Winnicott fez cerca de cinquenta palestras radiofónicas para a BBC, quase todas dirigidas aos pais. “Fui convidado a escrever este artigo [Educação para a Saúde através da Rádio]. (...) Não sou particularmente favorável à educação para a saúde em massa. Quando as audiências são demasiado vastas, há muitas pessoas que não ouvem para aprenderem, mas por mero acaso, ou para se distraírem, ou talvez até por estarem a fazer a barba ou um bolo e não terem uma mão livre para mudarem de posto.” (Winnicott, 1993, p.15). Há muitas pessoas que não ouvem para aprenderem. O apelo ao esforço, à atenção concentrada, porque a vida é difícil em si mesma. Olhos que vêem, ouvidos que ouvem. Muito menos óbvio do que parece. Qualidades raras. Indómitas.
Falando agora de Investigação Científica. Também conhecida, do outro lado do Atlântico, por Pesquisa Científica.
Debaixo para cima, de Cima para baixo. Duas opções com situações extremas. Preponderando um ou outro ponto de partida mas combinando ambos. Como deve ser. Arriscaríamos dizer que a atitude top down (dominante) é muito mais viciante e esterilizante que a bottom up. Encher a cabeça de livros e encaixar à força os pacientes neles: meter o Rossio na Betesga.
Winnicott fez o contrário: a observação, a experiência, a confrontação da ideia pré-existente com a surpresa do novo resultado, a saudável falsificaçãoVI da lei já prontinha. A emergência de leis/normas, sempre precárias, sempre revisíveis.
Raubolt (2014) olha por um outro ângulo: o da metodologia (inserida na investigação qualitativa) das Histórias de Vida.
Ambas, posições de Investigação‐acção.
E sempre: apologia de uma Investigação curiosity driven. Porque, é preciso dizê-lo com a possível solenidade: a curiosidade nunca matou nenhum gato, nem sequer o de Schrödinger. O gato, claro. E matá-lo seria bem-feito!
Criar e inovar. Deus criou o homem (ao sétimo dia?), mas isso foi antes da Autopoiese (de Maturana e Varela) ter explicado que o Homem é como o Barão de Münchausen, ergue-se nos ares puxando pelos cordões dos sapatos. O que já Gordon Childe (1940) tinha escrito, com as lentes do Antropólogo/Arqueólogo, em O Homem Faz-se a Si PróprioVII.
Inovar parece ser mais do que criar, dando corpo, amadurecendo, perdurando o acto de criação. Com originalidade e oportunidade, Winnicott fala-nos do dom (sublime) da importância da primeira mamada teórica no recém-nascido, potencialmente Nobelizável, apadrinhado certeiramente pela sua suficientemente boa Mãe. Nas ocasiões que o é (ou pode ser). E também da manejabilidade (auto) do verdadeiro e do falso – selfVIII. No criador (também suficientemente bom, dizemos, como Winnicott gosta de dizer). Não no Criador.
Winnicott dá primazia à Criatividade Primária (Winnicott, 1990, p. 130 a 132). “Ao menos enquanto não viermos a saber mais [a marca d’água do Investigador] devo presumir que existe uma criatividade potencial, e que na primeira mamada teórica o bebê tem sim uma contribuição pessoal a fazer”. (Winnicott, 1990, p. 130). (...) “O mundo é criado de novo por cada ser humano, que começa o seu trabalho no mínimo tão cedo quanto o momento de seu nascimento e da primeira mamada teórica. Aquilo que o bebê cria depende em grande parte daquilo que é apresentado no momento da criatividade, pela mãe que se adapta ativamente às necessidades do bebê.” (p. 130 e 131). (...) Sabemos que o mundo estava lá antes do bebê, mas o bebê não sabe disso, e no início tem a sensação de que o que ele encontra foi por ele criado. Esse estado de coisas, no entanto, só ocorre quando a mãe age de maneira suficientemente boa. O problema da criatividade primária foi discutido como pertencendo à mais tenra infância; mas, para sermos precisos, trata-se de um problema que jamais deixa de ter sentido enquanto o indivíduo estiver vivo”IX.
Embora cientes de que as citações são extensas, prosseguimos, ainda dentro do mesmo tema: (...) “alguns bebês têm a sorte de contar com uma mãe cuja adaptação ativa inicial à necessidade foi su cientemente boa. Isto os capacita a terem a ilusão de realmente encontrar aquilo que eles criaram (alucinaram). Eventualmente, depois que a capacidade para o relacionamento foi estabelecida, este bebê pode dar o próximo passo rumo ao reconhecimento da solidão essencial do ser humano. Mais cedo ou mais tarde, um desses bebês crescerá e dirá: “Eu sei que não há nenhum contato direto entre a realidade externa e eu mesmo, há apenas uma ilusão de contato, um fenómeno intermediário que funciona muito bem para mim quando não estou muito cansado.”(Winnicott, 1990, p. 135).
No princípio era o verbo e não muito depois foi necessário pôr nomes aos bois. Malhada, Ruço, Tirano. Como antes, criança, olhando para os dedos: Mindinho, seu Vizinho, Maior, Fura Bolos, Mata Piolhinhos. Que grande passo da Humanidade, maior do que o de Armstrong na Lua, em 1969.
Mas o pior vem depois, confundem-se nomes com coisas e não se sabe com quem se trata: o nome ou a coisa? E o pior acontece quando as coisas são pessoas, que sabemos que não gostam nada de ser tratadas como coisas.
Winnicott era extremamente cauteloso. Ao propor termos para nomear alguns fenómenos que puderam ser vistos à luz de sua teoria, ele o fazia com muito cuidado, temeroso que eles passassem a ser usados como clichés, como coisas de Winnicott, esvaziadas do sentido experiencial que deveriam conter. Por exemplo, ao distinguir a mãe-objeto da mãe-ambiente ele alerta para que essas expressões não se tornem slogans vazios e acabem por tornar-se rígidos e obstrutores (Dias, 2003, p. 89).
Consideremos, por exemplo, dois cintilantes termos pescados na linguagem coloquial: realidade e fantasia. Uma do império da Filosofia, a venerável. A outra do...império do Showbiz, com muito glamour, onde tudo é...Fantástico.
Realidade e Fantasia. O bebé, dos mais verdes primeiros tempos, protege-se (instintivamente) do mundo implacável (ruthless) fantasiando a existência (mágica) do que Winnicott chamou objecto transicional, a sua invenção mais badalada. Sendo este um dos múltiplos conceitos de Winnicott em que o psicanalista dilucida o diálogo (excitado ou calmo) entre Realidade e Fantasia. A Fantasia é, para Winnicott e os winnicottiannos, a característica do humano, a matéria-prima da socialização e da própria civilização (Winnicott, 1990, p. 78). Fantasia que protege instintivamente o ser imaturo no seu desenvolvimento. Que, no insano, deixa marcas que podem também ser detectadas, como se se tivessem espalhado em mancha de óleo, no incivilizacional, em que a coisa, o número endeusado e todo-poderoso, se substituem ao que deveriam significar. À sua essência.
A coisificação, a reificação, perversões na natureza humana, são doenças na civilização, abundantes, extravasantes, nada extravagantes, no mundo moderno, no pós-moderno, na análise por Marx (e por novéis Piketyanos?), ou por Georg Lukács, do capitalismo e da alienação do trabalho, ou por Baumann (2003) na análise da globalização e da sociedade do amor líquido. Nas economias ocidentais a atitude face aos números e à sua ditadura. Entre a diabolização (primária) dos numerofóbicos e a adulação (também primária) dos numerofílicos, entre Cila e Caribdis. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. E nunca é no meio que está a virtude.
Realidade e Fantasia. Uma linha contínua do começo da vida ao ser humano maduro, continuando depois, na aproximação do declínio, sempre a vida a fluir entre duas margens, uma que se não conheceX. Na criação psicanalítica de Winnicott.
Sistemas: coisas com semelhança, que têm em si outras coisas (com outras semelhanças) e que se associam com intuitos (acções, projectos, objectivos) comuns, cooperantes, parceiros. Que trocam. Que se readaptam. Sistemas abertos, integrados, auto-regulados, Ambientes (ou Meios, ou Entornos) que se tornam, na sua indiferenciação, não-estruturação, viabilizadores de finalidades essenciais para a vida dos sistemas vivos (living systems). Sistemas, Sub-Sistemas, Macro-Sistemas, Micro-Sistemas, Integração, Não-Integração, Desintegração, Catástrofes, Caos. Desta parafernália, em que a noção de sistema acaba de sair do fornoXI, pretendemos induzir que: 1. A TeoriaXII tem algum peso e extensão, incompatíveis com o intuito da presente comunicação; 2. A Literacia dos Sistemas continua arredia da cultura educativa. E, pior ainda, num nível mais abrangente, também a literacia da Modelização (ou Modelação), já que um sistema é um modelo.
Apesar disso, reconheçamos que há como que uma Intuição Sistémica generalizada (o que também revela mérito da Teoria, que é bastante amigável. Ou das Realidades, que são bastante Sistémicas: O Sistema de Ensino, o Sistema Circulatório, o Sistema Nervoso, o Sistema Judicial. Até, o Sistema, tout court, no futebolês ou no politiquês).
Isto é, dado que, no Médico Força, de Molière, Monsieur Jourdain fazia prosa sem o saber, também em muitos outros ofícios, sem recurso ao jargão pesado do formalismo teórico, há como que aquilo que designaremos por Intuição Sistémica. Ou, porque não, um verdadeiro Instinto Sistémico. Não nos referimos à Terapia Familiar (se su cientemente boa, na forma de se exprimir de Winnicott) que releva de uma Teoria dos Sistemas comme il faut. Mas sim à mais dúctil e fugidia (a formalismos densos) técnica/arte/ciência que responde pelo nome de Psicanálise (prenhe de heterónimos, como sabemos).
Este instinto sistémico é um balsamo contra o retardamento do analítico, do cartesiano, do fisiológico, do etiológico, do cloisonnisme diagnosticistaXIII, do abuso imoderado de fármacos. Do classicismo ortodoxo e petrificado.
Revelar o Instinto Sistémico do Psicanalista Donald Winnicott seria, ridiculamente, denunciar um segredo de polichinelo. Parece, no entanto, valer a pena desvelar apenas alguns dos seus termos mais usados, entendendo que são noções ou conceitos. Por exemplo: Não-Integração, Integração, Desintegração, a propósito do bebé intra-uterino, recém-nascido ou evoluindo na integraçãoXIV. A dependência do AmbienteXV, para Winnicott, nos primeiros tempos do novo ser humano, “(...) é tão absoluta, que não há utilidade alguma em pensarmos no novo indivíduo humano como sendo ele a unidade. Nesse estádio a unidade é o conjunto ambiente-indivíduo (...)” (Winnicott1990, p. 153). “No princípio há uma solidão essencial. Ao mesmo tempo tal solidão somente pode existir em condições de dependência máxima. Aqui, neste início, a continuidade do ser do novo indivíduo é destituída de qualquer conhecimento sobre a existência do ambiente e do amor nele contido, sendo este o nome que damos (nesse estádio) à adaptação ativa de uma espécie e dimensões tais, que a continuidade do ser não é perturbada por reações contra a intrusão” (...) “ O estado anterior ao da solidão é um estado de não‐estar‐vivo, sendo que o desejo de estar morto é em geral um disfarce para o desejo de ainda‐não‐estar‐vivo”. “Se é possível encontrar a sequência – solidão, dupla dependência, impulso instintivo anterior à compaixão (ruth) e logo a preocupação (concern) e a culpa, não parece necessário recorrermos a um Instinto de Morte” (Winnicott, p. 154). Com a Mãe Su cientemente BoaXVI a desdobrar-se instintivamente, sucedem-se as situações de não-integração, integração, desintegração, que confirmam a bondade desse não-recurso (Winnicott, capítulos 2 a 10 essenciais e apaixonantes. Como de resto todo o livro Natureza Humana. E toda a natureza humana, declinada, também apaixonadamente, por Donald Winnicott).
A assombração do Trauma. Na Terapia, novas formas para a descida aos infernos. Com regresso.
A vida é difícil, nunca uma pera‐doce. Na Natureza Humana, que é a nossa. Na primeira Mamada Teórica, com uma Mãe Suficientemente Boa, o novíssimo Bebé joga o seu futuro Criativo. Les Jeux sont faits.
Mas há também que atender (não muito. Ou pouco) a Óscar Niemeyer: a Vida é um SoproXVII.
E ainda, para mitigar algum pessimismo: O que se leva desta Vida/ O que se come, o que se bebe. O que se brinca/ Ai, Ai (...).XVIII
Dedico este trabalho, considerando o vulto, projecção e eminência de Donald Winnicott, à nossa 9a neta, que tem 3 meses, Francisquinha (ou Xica Faísca), à sua Mãe (good enough ao que temos visto) Susana (ou Zana, nome artísticoXIX) e ao seu Pai, o Rui que é entendido em aviões, a segurar a lha com enlevo e muito mais.
Agradecimentos: a João Pedro Dias pelo entusiasmo e dedicação na promoção e acompanhamento de Richard Raubolt em Abril passado. Também a Rosário Dias, Catarina Rodrigues, Maria João Saraiva, Ana Ferreira, pela mesma razão. A Rosário Belo, presidente da Comissão Organizadora deste II Congresso Luso-Brasileiro, por ter incentivado tão vivamente a apresentação de trabalhos. Foi por isso que apresentei o meu.
A António Coimbra de Matos com quem tenho aprendido incessantemente. Também a Carlos Amaral Dias. E aos dois pela criação e liderança da AP. E, last but not least, aos colegas Brasileiros (meus meios compatriotas) que nos ajudam a projectar Donald Winnicott como psicanalista de grande mérito que sempre foi.
À minha mulher Tereza Ventura com muito amor e reconhecimento. Designadamente pela sua permanente disponibilidade e apoio. E vivo saber.
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1 – Versão modificada da comunicação com o mesmo título, pronunciada no II Congresso Winnicott Luso‐Brasileiro: A retomada do amadurecimento, Lisboa, 20 e 21 de Junho de 2014.
2 – Investigador, Membro Fundador Associado do Ramo de Psicanálise (MFaPA) da AP, Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica.
I ‐ O VI Encontro Anual da AP teve lugar em Lisboa, no dia 2014‐04‐12. Teve como tema A (Re) Criação do Trauma e como Conferencista principal Richard Raubolt. É um Psicanalista Americano que trabalha com sobreviventes do trauma há mais de 30 anos. É membro do Institute for Expressive Analysis e trabalha no Conselho de Administração do International Forum for Psychoanalytic Education. Reside em East Grand Rapids, Michigan.
A sua obra Theaters of Trauma: Dialogues for Healing (iUniverse, 2008), na tradução para Português Cenários Analíticos do Trauma, ed. Coisas de Ler, 2014, e o filme Detroit, living in – between, foram a base de trabalho para o autor da presente Comunicação.
II ‐ A tradução feita para Portugal/Brasil é de Davi Litman Bogomoletz, sendo de assinalar o cuidado com termos anglo-saxónicos sem correspondente preciso em português (DW, Nota Introdutória à Tradução p. 9 a 13).
III ‐ Eu sou Homem e nada do que é humano me é estranho (Homo sum: nihil humani a me alienum puto). Pensamento atribuído a Terêncio (Publius Terentius, 185 a.C. - 159 a.C), poeta e dramaturgo romano. Karl Marx citava frequentemente este princípio.
IV ‐ “Pensar é duas coisas: é pensarmos no interior do outro e pensarmos no interior de nós próprios” (Amaral Dias, 2004, p. 60)
Segundo o conceito At-one-ment, de Bion, é a “fusão” com o outro, uma forma de encarnação, incorporação, personificação [embodiment] (Lopez Corvo, 1965, p.163)
V ‐ Com alguma semelhança, só formal, com a atribuída a Jesus Cristo: “Porque aquele que quiser salvar a sua vida perdê-la-á e quem perder a sua vida por amor de mim acha-la-á” (Mateus 16:25)
VI ‐ O Princípio da Falsificabilidade de Karl Popper. Ver ref. nas Referências Bibliográficas.
VII ‐ A tradução para português desta obra foi considerada, algures nos anos sessenta, como a maior contribuição dada em Portugal para a Cultura por Óscar Lopes.
VIII ‐ “a raiz do verdadeiro self dotado de espontaneidade permanece relacionada omnipotentemente ao mundo subjectivo, incomunicável, e o falso self baseado na submissão (destituído de espontaneidade) relaciona‐se com o que chamamos de realidade externa.” (Winnicott, p. 158). (...) “o maior êxito do artista é seu trabalho de integração dos dois selves”. (Winnicott, p.130).
IX ‐ Winnicott deixou aqui uma Nota para Revisão, como em outros passos de Human Nature: “daqui estender para o brincar, o lugar da cultura, etc.”. Notável e enriquecedor.
X ‐ Um belo poema ouvido num fado cantado por Aldina Duarte, sobre um poema que desconhecemos ainda.
XI ‐ Definição de conceito em Teoria dos Conjuntos, ver ref. Campos-Morais, C. & Ventura, T.
XII ‐ Teoria Geral dos Sistemas ou Teoria do Sistema Geral, ver por exemplo Campos-Morais, C. (1983) ou Campos‐Morais, C. (2005).
XIII ‐ Expressão suprema os DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders).
XIV ‐ Um sistema integrado é aquele que adquire ou conserva ou readapta as suas componentes e relações essenciais, sem as quais pode sucumbir.
XV ‐ Escolhido um universo de modelação, para desenho de um sistema aberto, integrado e auto-regulado, o ambiente de um sistema é o complemento do sistema para aquele universo. Caracteriza-se pela sua não-estruturação. É este carácter indiferenciado, um magma, usando uma metáfora geológica, que serve ao sistema para, diadicamente (ambiente + sistema), definir as relações que são essenciais, que conferem, ao sistema, o seu caracter integrado.
XVI ‐ A partir do good – enough, que é bem mais do que o nosso quanto-baste-para, excessivamente minimalista e praticista Winnicott desenvolve a sua intuição sistémica.
XVII ‐ Num filme de 90 minutos sobre o grande arquitecto brasileiro este lamenta: A gente nasceu, morreu. Fodeu‐se. O amor pela vida deste grande criador, patente em toda a sua obra, com esplendor ímpar, não coube no que achou ser a estreiteza da aventura da Vida.
XVIII ‐ Samba composto por Pedro Caetano em 1946. Cantado por meio mundo brasileiro. Ouvimos Elza Soares e Leila Pinheiro.
XIX ‐ https://www.behance.net/zMDesign
Title
Of Raubolt and of Winnicott: nothing human is foreign to them.
About two Psychoanalysts, the American Richard Raubolt and the English Donald Winnicott, some considerations are built on their different Style and Setting. Starting points are, for the first, the narratives about Trauma and, for the second, human life, from intrauterine life to maturity, as background on Human Nature. A view on the position assumed towards Scientific Research, presents these Psychoanalysts common basis: Research‐Action, a bottom‐up perspective. Raubolt (2014) in the methodology of Life Stories. Winnicott focusing his attention on Primary Creativity, supported by the importance of the first theoretical baby feeding in the lap of a Good Enough Mother. Between Reality and Fantasy, rei cation as civilizational disease. And the Contemporary Psychoanalysis, emerging of a Systemic Instinct, holistic and synergistic, taking advantage of adding new values in joint valences, from interdisciplinary progress – analytical, physiological, etiological, cross‐fertilized.