Em 1960, ao falar dos fenómenos da transferência e contratransferência, Winnicott analisa o papel da relação entre o analista e o paciente e o seu impacto no trabalho clínico. Diz‐nos que é fundamental a análise do próprio analista para que este consiga lidar com a tensão do analisando e com a sua própria tensão, de forma a ter uma atitude profissional. A análise pessoal não terá o intuito de livrar o analista da sua neurose, mas antes de aumentar a estabilidade e maturidade da sua personalidade, sendo esta a base para manter um relacionamento profissional (Winnicott, 1960a).
Porém, Winnicott alerta que se a atitude profissional for alicerçada sobre a base de defesas e inibições, a tensão do analista tenderá a aumentar, uma vez que a estruturação das defesas do ego diminuirá a capacidade deste enfrentar novas situações. Winnicott continua, dizendo que: “O psicoterapeuta (psicanalista ou psicoterapeuta psicanalítico) deve permanecer vulnerável e ainda assim reter o seu papel profissional durante as suas horas de trabalho” (Winnicott, 1960a, p. 160). Winnicott continua ainda “(...) preferia ser recordado por sustentar que entre o paciente e o analista está a atitude profissional do analista, sua técnica, o trabalho que executa com a sua mente” (Winnicott, 1960a, p. 160).
Percebemos então que, para Winnicott, a atitude profissional pressupõe uma distância entre analista e paciente. Este artigo debruça-se precisamente sobre este trabalho de estar próximo e afastado ao mesmo tempo.
Segundo Winnicott, esta distância deve manter o analista profissionalmente envolvido e sem demasiado esforço no controlo da sua tensão. Esta atitude profissional será mais fácil no trabalho com pacientes neuróticos, onde será menos difícil mediar a distância. No entanto, a atitude profissional poderá ser diferente consoante o diagnóstico do paciente. Apesar de Winnicott criticar Fordham, que se alicerçou em Jung, quando este compara a relação analítica a uma interação química onde todos os elementos se influenciam, sendo a análise um produto de influência mútua, Winnicott não hesita em aproximar-se de Jung quando aborda os casos de psicóticos e borderline (Winnicott, 1960a).
Excluindo os pacientes com tendências anti-sociais, para os quais defende que a psicanálise não será o tratamento mais adequado (Winnicott, 1956a), Winnicott considera pois dois tipos de casos que implicam um comportamento profissional do analista muito diferente. Em primeiro lugar, os pacientes da linha neurótica e, em segundo, os pacientes da linha psicótica ou borderline. Os primeiros que seriam a linha habitual do trabalho analítico não colocam grandes problemas na atitude profissional, uma vez que, sendo indivíduos com um ego melhor estruturado, colocam o analista numa posição mais confortável na forma como gere a capacidade de estar longe do paciente, recorrendo à técnica mais clássica da psicanálise. Os segundos, pacientes da linha psicótica/ borderline, são pacientes que necessitam de uma regressão. Nestes casos ele refere que o analista deverá estar “orientado para a realidade externa, ao mesmo tempo que identificado ou mesmo fundido com o paciente” (Winnicott, 1960a, p. 162). Sobre isto, Winnicott propõe que se investigue o impacto que o paciente psicótico ou a parte psicótica da personalidade do paciente tem no analista e o seu efeito na atitude profissional.
Treze anos antes, em 1947, Winnicott já tinha proposto, em linha de descontinuidade com Klein, que pensássemos nos sentimentos que os pacientes nos fazem sentir. Em “O ódio na contratransferência” mostra porque nunca aceitou a teoria de Klein de que o ódio é inato na criança e uma manifestação do instinto de morte. Para este psicanalista, o ódio só pode existir se alguém nos tiver odiado. Diz Winnicott: “Sugiro que a mãe odeia o bebé antes que o bebé a odeie e antes que o bebé possa saber que sua mãe o odeia”(Winnicott, 1947, p. 201).
Sobre esta nova visão do ódio, propõe-nos a importância que têm os sentimentos de ódio que o analista pode ter sobre os seus pacientes e a importância da consciência destes sentimentos. Ao saber que sente ódio e medo pelo paciente, melhor o analista saberá gerir as suas emoções na sessão analítica. Winnicott recomenda-nos as características da paciência, tolerância e a confiança de uma mãe devotada ao seu bebé, em que esta só dá realmente aquilo que o bebé precisa. Da mesma forma, o terapeuta deve dar aquilo que o paciente necessita: deve-se adaptar às necessidades do paciente e não às necessidades do terapeuta.
É pois claro, para Winnicott, que a atitude profissional do analista é mais fácil de manusear nos casos da linha neurótica e mais difícil nos casos da linha psicótica, devido à dificuldade de gerir a aproximação e distância necessárias do terapeuta em relação ao paciente.
Estamos, então, perante um espaço precioso e misterioso sobre como pensar a relação analista e paciente; como pensar a relação entre a transferência e a contratransferência.
Sabemos que a contratransferência em Freud foi considerada um impedimento à compreensão do analisando, uma forma de resistência inconsciente do analista que deveria ser removida.
Depois de Freud, o tema da contratransferência esteve quase 40 anos na sombra dos assuntos relevantes em psicanálise, apesar de Ferenczi, Balint e Deutsch terem antecipado alguns dos problemas da contratransferência, alertando para a consciência intuitiva dos pacientes face às respostas emocionais do analista e de como as associações do paciente deveriam ser uma experiência interna para o analista que influenciariam a sua intuição (Leitão, 2003). É com Paula Heimann e Racker, no início da década de cinquenta, cerca de três anos depois de Winnicott ter escrito “O ódio na contratransferência”, que se dá o ponto de viragem e que se dá o valor positivo à contratransferência enquanto instrumento de investigação dos processos inconscientes do paciente e a maneira como o analista deve estar atento à sua resposta emocional como forma de aceder ao inconsciente do paciente.
Tendo em conta o âmbito reflexivo deste artigo, a questão do espaço/ tempo e da proximidade/distância do analista em relação ao paciente, não nos interessa centrar a temática da contratransferência enquanto instrumento de investigação do inconsciente do paciente, mas antes pelo vértice de como se constrói a contratransferência enquanto contributo de um ambiente facilitador e de que forma ela permite a construção da relação analítica.
Vejamos, então, como consideramos que Winnicott continua a contribuir para esta compreensão.
Em 1956, nos artigos Preocupação materna primária e A Tendência anti-social, Winnicott introduz o termo ego relatedness, referindo-se à relação entre o ego da mãe e do bebé (Winnicott, 1956a e 1956b). Sugere que quando a mãe e o bebé estão envolvidos um no outro, quando o bebé vê a mãe, ele vê-se a si próprio e quando a mãe vê o bebé ela recorda-se inconscientemente dos seus primeiros tempos de bebé. Isto permite-lhe identificar-se às necessidades do seu bebé, correspondendo ao estado de preocupação materna primária, o que permite que o ego imaturo do bebé se apoie no ego da mãe (Winnicott, 1956b).
Decorridos dois anos, em 1958, Winnicott publica A capacidade de estar Só, baseado no paradoxo do desenvolvimento da capacidade em estar só na presença do outro, chamando a atenção para a situação em que o paciente consegue car só na sessão, na presença do analista. Embora o autor reconheça que há várias experiências que levam à formação da capacidade de estar só, ele considera a experiência do bebé
car só na presença da mãe como básica a todo o processo. Apesar de se usar do legado de Freud no que concerne à teoria da cena primária, em que o bebé é capaz de aceitar a relação de casal ao identificar-se a um dos progenitores, bem como a internalização do bom objeto de Klein, ele afasta-se destas teorias para enfatizar e reforçar como crucial para o desenvolvimento da ”capacidade de estar só” o estado mental da mãe na relação com o seu bebé (Winnicott, 1958).
Para o desenvolvimento desta capacidade, Winnicott diz-nos que isso só é possível se o ambiente for protetor, sendo esse ambiente, nos primeiros meses, a mãe apoiada nas suas relações afetivas. A mãe que se identifica com o bebé, podendo assim dar resposta às necessidades do ego infantil do seu filho. É a continuidade da sua presença que permite ao bebé a perceção da existência contínua da mãe, ainda que esta perceção não seja consciente. “Isto vai-lhe permitir estar só, e ter prazer em estar só por períodos limitados” (Winnicott, 1958, p. 33). Ou seja, no contexto do ego relatedness, relação com ego, vão-se construindo ligações com o id que fortalecem o ego imaturo do bebé.
Mais tarde, em 1963, Winnicott reforça a sua ideia dizendo que não existe um bebé sozinho, mas sim um bebé com um meio ambiente facilitador dos processos de maturação do ego (Winnicott, 1963a). No mesmo ano, em “Os doentes mentais na prática clínica”, completa dizendo que “o ambiente não faz o bebé crescer nem determina o sentido do seu crescimento. Quando ele é su cientemente bom, facilita os processos de maturação” (Winnicott, 1963b, p. 223).
Segundo o autor, para que exista este ambiente facilitador terão de existir certas condições, a primeira o Holding, onde há uma dependência absoluta do bebé em relação à mãe. É o ego da mãe que serve de suporte ao ego do bebé. No início a mãe satisfaz as necessidades todas do bebé, de uma forma contínua e consistente com o seu estado de ligação interna entre ela e o bebé, através da empatia. Assim, nesta primeira fase, o bebé desenvolverá uma experiência de omnipotência de base em que as suas necessidades são sempre satisfeitas (Winnicott, 1962).
O ambiente facilitador permitirá ao bebé atingir três objetivos:
– a integração das várias partes do seu ego através do apoio do ego auxiliar da mãe e da sua capacidade de holding (Winnicott, 1960b);
– a personalização, que permite a distinção entre “Eu” e “Não Eu” (Winnicott, 1960b), através de um outro aspeto concomitante com o holding, o handling, que diz respeito à forma como o bebé é tocado, tendo em conta o prazer que a mãe tem em manusear o seu bebé, e que permite que mente e corpo estejam intimamente ligados, sendo que o sentido de si também está no corpo;
– e, por fim, após a dependência absoluta de que falámos atrás, característica dos dois primeiros meses, a mãe começa a frustrar o seu bebé permitindo-lhe dar mostras do seu ego estar mais forte através de sinais em que mostra a perceção da falta de cuidados maternos que o satisfaçam, não de uma falha do cuidado materno, mas dos seus resultados. Consegue, assim, percecionar a mãe separada dele, dando início às relações de objeto (Winnicott, 1963b).
Se antes, através da experiência de omnipotência permitida pelo ambiente facilitador, a mãe é percebida como inseparável do cuidado materno – é um “objeto subjetivo” – , é através da frustração desta omnipotência que a mãe é “percebida objetivamente” (Winnicott, 1963b).
Pegamos neste precioso legado de Winnicott, o ambiente facilitador, a teoria do holding, a capacidade de estar só do bebé/do paciente na presença da mãe/analista, para continuarmos a pensar sobre a relação analista‐paciente. Preocupa‐nos, pois, quais as características que o analista deve proporcionar ao seu analisando para criar e ser o ambiente facilitador que promove a maturação dos processos de desenvolvimento que ficaram suspensos para a “Retoma do Amadurecimento”.
Pensamos que é imprescindível o analista alcançar a sua própria capacidade de estar só perante o paciente. Esta característica é fundamental estar presente para que o paciente adquira a sua própria capacidade de estar só na análise.
Para nós, a capacidade de estar só do analista depende da relação que ele estabelece com o paciente, em que desejavelmente o paciente irá obedecer e permitir que o analista também obedeça à primeira definição que Winnicott clamou para a atitude terapêutica nos casos dos neuróticos. Aqui, a capacidade de estar só do analista perante o paciente é mais fácil porque o próprio doente tem uma distância em relação ao analista. Ou seja, a distância que o analista tem em relação ao paciente é proporcional
à distância que o analisando tem dele, o que facilita a tarefa do analista entre estar longe e estar próximo.
Nos casos da linha psicótica e borderline, ou quando se lida com a parte psicótica da personalidade, a capacidade do analista de estar só ca mais em evidência, dada a forma como estes pacientes tentam ultrapassar as regras e invadir o espaço do analista. Apesar de invadido pelo paciente de forma fusional, é fundamental o analista ter e manter a sua capacidade de estar só perante o paciente, porque é precisamente nesta capacidade de estar só que lhe é permitido estar com o paciente.
Ou seja, o paciente tem de adquirir a capacidade de estar só durante a análise e o analista tem que pôr a sua capacidade de estar só ao serviço da análise. O analista que não desenvolve a sua capacidade de estar só perante o paciente pode ser um aliado patológico da parte psicótica da personalidade do paciente, o que pode levar à confusão entre analista e paciente, deixando‐o muito mais frágil do ponto de vista da análise.
É provável que a reação terapêutica negativa por parte do analista aconteça precisamente quando este perde a capacidade de estar só perante o paciente.
Tal como Winnicott pensava, o ódio na contratransferência não é uma contratransferência negativa. Permite, sim, ser um facilitador para que o analisando expresse o seu ódio.
A forma como pensamos a contratransferência baseia‐se em duas questões: como é que eu estou ouvindo? E onde estou ouvindo? Estou a ouvir com a minha parte que é capaz de estar só com o paciente ou estou a ouvir com a minha parte que não é capaz de estar só, e que está apenas a traduzir sentimentos que não foram completamente mobilizados e trabalhados pelo analista?
Os primeiros pacientes de que Winnicott fala, da linha neurótica, já têm uma certa capacidade de estar só, transmitindo para a análise uma certa crença e um certo “descanso” ao analista. Estes pacientes que parecem conseguir estar sós desde o início de uma análise transferem para esta a crença de um ambiente facilitador ou, pelo menos, a ideia de que tiveram na sua infância um ambiente facilitador. Apesar de poder ser verdade, esta crença traz também uma armadilha. Ao confiarmos excessivamente, enquanto analistas, na capacidade de estar só do paciente, relaxamos a nossa própria atitude profissional.
Consideramos, então, as duas componentes em que a contratransferência se baseia, como parte da atitude profissional:
– a capacidade do analista em fazer a manutenção de um ambiente facilitador;
– a capacidade do analista ser capaz de manter a sua capacidade de estar só na presença do paciente.
As duas unem‐se e o ambiente facilitador só pode existir se o analista for capaz de estar só e de manter esta atitude perante o analisando. A atitude profissional implica, pois, a criação de um ambiente facilitador e a manutenção desse mesmo ambiente. Só assim o analista poderá perceber o que é que tem de trabalhar para que o paciente sinta um ambiente que facilite o seu crescimento pessoal. A manutenção deste ambiente depende da capacidade do analista em se manter só na presença do paciente. É a partir deste lugar em que estou só, que eu consigo criar este ambiente, é a partir da minha própria contratransferência que uma análise pode evoluir e corresponder à procura da verdade.
Para Winnicott, o holding na análise, proporcionado pelo ambiente facilitador, existe graças ao setting que permite dar segurança ao paciente. Como descreve Viderman (cit. em Dias, 1983), do setting fazem parte um conjunto de invariantes: “as horas da sessão, o tempo, as posições fixas e não intermutáveis no espaço físico da análise; as regras do lado do paciente: as associações livres, as regras do lado do analista: a atenção flutuante, a especificidade do reencontro, a palavra de um, a interpretação do outro e a neutralidade e a benevolência do analista” (p. 29). Uma não pode existir sem a outra. Se existisse neutralidade sem benevolência não havia ambiente empático. Pelo contrário, benevolência sem neutralidade, seria apenas uma conversa num ambiente permissivo, longe daquilo que o paciente precisa.
Pensemos na etimologia das palavras neutralidade e benévola. Neutralidade advém do adjetivo latino neutralis, qualidade do que é neutro, significa isenção e imparcialidade. Benévola vem do latim benevolus, um composto de “bene” (bem) e “volo” (quero), quero bem (Aillaud, 1928). Ou seja, a posição do analista é simultaneamente objetiva/subjetiva e humanista.
Masud Khan (Dias, 1983), discípulo de Winnicott, dá ênfase ao mérito de Freud no facto de este ter inventado um espaço terapêutico fixando uma distância entre doente e analista. Neste espaço, Khan mostra-nos como o analista é responsável pela criação de um setting que não é apenas a hora da sessão, o tempo ou as regras. Ele diz‐nos que é a criação da área da ilusão própria da situação analítica, propiciada pelo analista que não se vê e que não se toca, onde existem tabus de interdição, que preparam o terreno para a criação/recriação fantasmática. É nesta área de ilusão que o discurso simbólico ganha efeito e a análise se pode desenrolar.
“A frequência regular e fixa das sessões, (...), o espaço interno do seu protocolo, acabam por definir tecnicamente a sessão como zona intrapsíquica, onde a palavra e o corpo se dispõem, em relação a um tipo particular de escuta” (Dias, 1983, p. 32).
É a gestão desta distância que nos interessa, o que nos remete para uma tentativa de definirmos distância/proximidade entre analista e paciente e distância/proximidade entre o doente e o analista.
A capacidade do analista criar esta distância/proximidade, num certo número de casos, é coeva com a própria capacidade do paciente em estar só, mas mesmo aí, como já falámos atrás, é necessário estarmos sempre com a nossa capacidade de estar só presente. Nos outros casos, em que a parte psicótica da personalidade está muito presente, em que o paciente vai tentando ultrapassar todas as barreiras até fazer uma ligação quase fusional e intrusiva, então aí, a capacidade de estar só do analista ainda é mais fundamental. Porque é claro para nós que os pacientes que são capazes de aceitar e suportar a situação analítica são quase sempre aqueles em que o vivido edipiano está mais presente. Os outros não estão capazes de aceitar o divã, têm de passar para o face a face, porque não conseguem aceitar as regras que resultam da própria interdição dos tabus, o lugar onde a lei se instala. Os da linha neurótica têm a noção da lei do pai como algo ligado à capacidade de estar só, que corresponde ao que Winnicott chamava de uma capacidade de estar só como fenómeno “altamente sofisticado” (Winnicott, 1958).
Mesmo antes de receber o paciente, o analista tem de ter uma contratransferência “a priori”, que não corresponde a uma atitude pré-fabricada, mas a um estado inconsciente em que a capacidade de estar só é a matriz.
Nesta capacidade de estar só, matriz da contratransferência “a priori”,
Amaral Dias diz-nos: “O analista sabe até que ponto lhe compete a ele manter o ambiente facilitador na relação, mantendo não só o ambiente externo mas também mantendo condições de subjetividade onde o paciente se pode expressar” (Dias, comunicação pessoal, Maio 17, 2014). Tal como a mãe para o bebé é o ambiente facilitador, também o analista entra em contacto com o seu analisando através do ambiente facilitador que lhe promove. Esse ambiente facilitador organiza-se a partir da condução da atitude do analista de estar próximo e distante, tendo em conta a sua capacidade em estar só. Este vai permitir que o paciente se aproxime integrando, por vezes, uma quase ou absoluta dependência do analista ao mesmo tempo que, respeitando o espaço e o tempo internos da situação analítica, promovidos pelo setting, trabalha a personalização, de que Winnicott fala. Permitindo a separação analista/analisando, poderá vir a reconstruir as relações de objeto, viabilizando a execução dos três objetivos que se alcançam com o ambiente facilitador de que nos fala Winnicott.
Percebemos, então, que a criação do ambiente facilitador na análise tem duas fontes essenciais: a contratransferência “a priori” e a capacidade de estar e manter-se só.
Uma das razões pelas quais o analista deve ser analisado não é só para evitar que ele projete os seus fantasmas no paciente, mas é também para que o analista tenha uma relação íntima com o espaço terapêutico que lhe permita conceber “a priori”, antes do encontro com um paciente, a ideia de como é um espaço terapêutico que ele vai propor e de como são essas características.
Como é que se mantém as características nobres deste “a priori” ou as características funcionais na análise? É pela capacidade que o analista tem de se manter na análise só na presença do paciente. É neste lugar que o analista recria a contratransferência “a priori” numa contratransferência idiossincrática. A relação entre os dois é à mesma uma relação entre as públicas‐ações e as ações‐privadas. Esclarecemos a nossa ideia: Bion no seu livro Cogitathions (1992), quando fala dos objetos de conhecimento em análise, quando fala da noção de seio, ou de mãe ou de pai, do ponto de vista teórico, são públicas-ações. Só passam a ter valor quando são colocadas ao nível da pessoa, do privado. Esta relação entre público e privado, entre aquilo que o analista construiu na sua análise pessoal, nas supervisões dos seus casos e no conhecimento que tem da teoria, é que vai criar esta contratransferência “a priori”. A manutenção e desenvolvimento desta contratransferência tem implícita a capacidade de estar só.
Não podemos deixar de pensar na Capacidade de estar Só do analista sem nos remetermos novamente a Bion, à teoria continente-conteúdo, que nos é tão cara na compreensão da função continente do analista, e também de grande ajuda no entendimento dos casos que Winnicott refere como aqueles em que é mais difícil manter a atitude profissional.
O desafio que coloca a capacidade de estar só do analista remete para a problemática epistemológica em que o psicanalista pensa a psicanálise e se pensa no exercício, na prática psicanalítica. Esta será a base que permitirá a instalação de um ambiente facilitador que origina a função continente em que o analista e o analisando atingem, através da criação da área de ilusão de Masud Khan, áreas inexploradas das duas mentes: do analista e do analisando, permitindo o crescimento emocional e o conhecimento.
A ambiguidade desta área de ilusão é proporcionada também pelo próprio setting. Este tem uma função de continente espacial e temporal para o próprio analista e favorece a função continente do ambiente facilitador proporcionado na análise. A situação analítica tem de ser trabalhada pelo analista de forma a não provocar a rutura entre continente‐conteúdo, de forma a que o tempo seja vivido com afeto e o afeto vivido com tempo. Oposto à experiência patológica “do tempo vivido sem afeto e o afeto vivido sem tempo” (Dias, 1983, p. 44). Da mesma forma, a análise engloba também uma função continente espacial onde, na ausência do corpo do analista, no espaço do próprio gabinete, está subjacente o “corpo do holding” da relação analítica. Por trás desta metáfora corporal, por trás desta distância promove‐se então a revivência imagóica, a recriação fantasmática (Dias, 1983).
Quando Bion escreve A Atenção e Interpretação propõe‐nos uma fórmula que possibilita o exercício da função continente do analista, na dinâmica continente‐conteúdo, que é sem memória, sem desejo e sem compreensão (Bion, 1970). Esta proposição tem que ser explorada em todas as suas vertentes. Do nosso ponto de vista, sem memória não significa sem lembrança.
Sem memória reenvia ao estado da mente do analista que não deixa que o analisando de ontem impeça o analista de ouvir o analisando de hoje. Por outras palavras, o que é pedido ao analista é que não se deixe invadir pelo seu paciente e aí deixar de o escutar como ele merece.
Como é óbvio, tal proposta só é possível se a capacidade de estar só do analista de facto existir. O mesmo se pode dizer sobre o não desejo. O desejo, como é evidente, insere‐se no futuro e se nos permitimos “adivinhar” o futuro do nosso paciente, não estamos de certeza sós perante ele, aquilo a que Winnicott chamou de atitude profissional é ferida de morte.
Fica então somente a compreensão. Mas uma relação dominada por teorias que supostamente servem para compreender o paciente deixa é o analista acompanhado de uma forma encapotada. Aqui o analista fica então perante duas incapacidades para car só: uma tendo em conta que ca super acompanhado por teorias sobre o seu analisando; outra que se impõe sobre a forma alienada em que o paciente ca então colocado. Para ouvir quem nunca ouviu e às vezes nem sequer falou, é necessário saber cultivar, primeiro por disciplina e depois pelo gozo de ser analista, a capacidade de estar só como crucial.
O movimento pendular da mente, entre estar em união ou estar numa solidão mediada pelo afeto subjacente, é um luxo a que nos temos de permitir. Mas será isto que subjaz ao conceito de atenção flutuante? Entende-se então porque é que um de nós pensou a fórmula de Bion não como uma atitude, mas como uma meta-atitude que sustenta uma meta-teoria (Dias, 1994). Ou seja, que ultrapasse as teorias do analisando e do analista, colocando-as no lugar de pré-conceções insaturadas.
Propõe-nos, assim, que o trabalho analítico seja em alfa-dream-work. Ou seja, um pensamento sob a forma de sonho. Esta atividade implica uma relação não saturada com a memória, com o desejo e com a compreensão. Esta é a natureza da contratransferência “a priori”, aquela que permite a capacidade de estar só na análise.
Como é que se está? Como é que se pensa? Como é que se interpreta?
Como deve ser a atitude profissional do analista? Como se trabalham os três vértices que constituem a atividade analítica: o que está, o que pensa e o que interpreta?
No dizer de Amaral Dias (comunicação pessoal, Maio 17, 2014):
A nossa leitura de Bion não é diacrónica, o mesmo é dizer que não separamos um primeiro Bion mais lógico, de um segundo Bion mais místico, ou de um terceiro Bion mais poético. O Bion da parte lógica e epistemológico do “Aprender com a Experiência” não é incompatível com o Bion da “Memória do Futuro”, poético e místico, e não é incompatível com o Bion lógico dos “Elementos em Psicanálise”. É de acordo com isto que construímos um triplo vértice epistemológico e gnosiológico que propomos para o analista. Ter uma atitude mística, em que é capaz de se unir em comunhão com o seu analisando. Ser capaz de formular metaforicamente o resultado dessa união, tendo uma atitude poética e lógica através da interpretação dentro da sessão. E também ser capaz, da mesma forma que na sessão, dentro do silêncio do seu gabinete, ou num congresso, fazer uma aproximação científica às produções e ao material resultante da análise do seu paciente. Isto não implica a capacidade de estar só? De estar só e de se manter sempre ligado ao seu paciente tendo em conta a sua capacidade de estar só.
Para terminar, há ainda um aspeto desta contratransferência “a priori” fundamental para o analista: a identificação conseguida, ou não, com o nosso próprio analista, e que se encontra presente pela forma como assimilámos a relação profissional e a atitude profissional que este teve para connosco. Se o analista que internalizámos não nos permitiu a liberdade de nem sempre nos identificarmos com ele, não nos permitiu a introjeção de um analista, mas sim de um dogma. É então também neste espaço de proximidade e afastamento do nosso analista que nos é aberto o espaço para o amadurecimento da nossa atitude profissional enquanto psicanalistas. Se isto não estiver presente, é sinal que não apreendemos o espaço criativo que numa análise se pode assemelhar ao brincar, que nos faz crescer e amadurecer.
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1 – Versão modificada da comunicação com o mesmo título, pronunciada no II Congresso Winnicott Luso-Brasileiro: A retomada do amadurecimento, Lisboa, 20 e 21 de Junho de 2014.
2 – Psicanalista Titular da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica (AP)
Av. Duque de Loulé, 71‐1o, 1050‐087 Lisboa, Email: psicad@sapo.pt , Telef: 213304888
3 – Membro Associado da AP ramo de psicanálise, Av. Duque de Loulé, 47‐7o Esq.o, 1050‐086 Lisboa, Email: catarinagmarques@clinicababel.com ,Telef: 962962904
The influence of Winnicott in the understanding of countertransference matrix.
The setting and organization of transference/countertransference are important elements in the work of Winnicott. Studies such as “hate in the countertransference” or “the facilitating environment” fully illustrate the legacy left by Winnicott to improve the clinical practice of psychoanalysis. is article explores the legacy of Winnicott from a different point of view. e study discusses the “capacity to be alone” of the analyst while listening to his own patient. Listening to the patient is a unique form of attachment. However a balance between being “near” and “away” at the same time is necessary so that the analyst can organize the part of the psychoanalysis process that concerns him. The authors of this publicaction discuss the topic through the studies of Winnicott and Bion.