Revista | Vol. 10, Dez 2019

O cérebro social: Compreendendo o cérebro como um órgão social

 

A complexidade e a adaptabilidade do cérebro

Este artigo foi elaborado no reconhecimento pelo princípio de incompletude de Godel e princípio da incerteza de Heisenberg, que devem ser aplicados a qualquer tipo de conhecimento científico e não, apenas e respetivamente, à matemática e à mecânica quântica.

Como o cérebro, na sua interrelação com as experiências sociais, pode ser considerado como um sistema complexo com retroação, este trabalho tem igualmente presente o reconhecimento das ligações e das afinidades entre os fenómenos que o pensamento científico, se deve distinguir e individualizar, não pode isolar uns dos outros.

No respeito por estes dois princípios e pelo sistema complexo que é o cérebro, impõe-se convocar a perspetiva de um ‘pensamento complexo’, conceito teorizado por Edgar Morin (2005), imprescindível a toda a teorização compreensiva sobre o cérebro humano, principalmente quando se pretende pensar sobre o ‘cérebro social’. Seguindo o pensamento deste grande humanista da Ciência, é suposto que o pensamento, não só ponha inteligibilidade no real, com a qual o ser humano tem ou quer interagir, mas também revele as leis que governam esse real. É suposto também que o conhecimento científico, com os seus avanços, permita que o pensamento clarifique e ordene, de forma simples, os fenómenos que causam confusão, perplexidade e incómodo. Estes dois supostos, alerta Edgar Morin, exigem que se preste uma particular atenção ao perigo dos conhecimentos científicos que, por poderem ser demasiado simplificadores, podem vir a impedir a compreensão dos fenómenos que compõem a realidade complexa. Considerando que o tema deste artigo é o ‘cérebro social’ de um ser humano que age como agente no mundo, mas que, igualmente, reage ao real desse mundo, como explicita o neurocientista Neil Levy (Cyrulnik, 2016, p.122), esta dualidade de ser agente e reagente, impõe que se compreenda o cérebro como um sistema complexo com retroação, onde dominam complexidades intersubjetivas inerentes ao espírito humano. Compreensão que permite diferenciar o espírito humano do órgão do corpo humano que é o cérebro, como alerta ainda Neil Levy, diferenciação imprescindível para prevenir o risco de anular a transcendência humana ao reduzir o espírito ao órgão “cérebro”. Prevenção que requer equacionar a complexidade dos fenómenos que se pretendem estudar com um pensamento científico que renuncie a querer controlar e dominar o real porque sabe responder ao desafio da complexidade desse real num mundo necessariamente partilhado, como uma casa comum dos Homens onde o ser humano habita com outros seres humanos. Partilha que, no campo científico, exige flexibilidade intelectual e diálogo transdisciplinar, se possível com uma transdisciplinaridade empática, como defende Edgar Morin.

Este desafio da complexidade que o real, partilhado entre os Homens, também impõe ao pensamento científico, exige ainda, como notou, já no século passado, o filósofo, sociólogo e musicólogo da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, que a investigação científica tenha sempre presente que a totalidade é sempre uma não verdade como precaução imprescindível para que o pensamento, por ser complexo, não queira ser completo e finito, mas antes se proponha a pôr clareza, ordem e descriminação no conhecimento do real, fugindo a um pensamento “preguiçoso” que possa reduzir, mutilar e restringir a compreensão humana, em toda a sua extensão emocional e intelectual. Sem certezas totalitárias, a investigação científica serve de alicerce ao pensamento científico, permitindo construir um conhecimento multidimensional que, em vez de separar e ocultar conhecimentos, possa voltar a ligar, a interagir e a influenciar mutuamente os fenómenos do real. Para este pensamento científico, é indispensável que a reflexão sobre o cérebro social se fundamente num pensamento complexo e multidimensional, de forma a que não sejam eliminadas ou ignoradas as contradições internas que o cérebro social transporta no seu funcionamento e que são inerentes à sua dupla qualidade de objetividade, onde domina o pensamento empírico, lógico e racional, e de subjetividade, onde podem existir muitas contradições na subjetivação, nem sejam reduzidas, de forma rígida, a ambiguidade e a incerteza reflexivas que essas contradições internas podem provocar. O pensamento científico é ainda imprescindível para a reflexão sobre a coexistência de verdades que essas contradições internas, com o seu duplo carácter de objetividade e de subjetividade, podem gerar, dado que, podendo ser antagónicas entre si, contudo não deixam de ser igualmente complementares, o que obriga a equacionar a complexidade de todos os conhecimentos e de todas as informações científicas que a ciência do espírito e as neurociências fornecem nos nossos dias. De um modo metafórico, pode-se imaginar a reflexão sobre o “cérebro social” como um nó górdio que liga o empírico, o lógico e o racional dos fenómenos mentais humanos à sua inerente subjetivação e que, ao evocar a complexidade de desatar um nó impossível, apela , não apenas à competência manual mas, também, à astúcia de “pensar fora da caixa”.

Os estudos e as investigações de Louis Cozolini, no campo da neurociência, (2006; 2013) também são um testemunho desta imensa complexidade do cérebro que, com a sua intensa, laboriosa e incessante atividade, leva este cientista a considerar que, apesar de todos os avanços científicos, a verdadeira significação do cérebro social seja impossível de ser totalmente alcançada pela ciência que estuda o cérebro e o espírito, pelo menos, no estado em que a ciência se encontra, nos dias de hoje.

Mas, se dado esta imensa complexidade, ainda não se conhece a totalidade da significação da atividade do cérebro na sua aliança ao espírito, contudo a ciência já mostrou que, cada cérebro é único para cada pessoa, construindo-se ao longo da vida na interface entre a experiência e a genética, no âmago do par natura-cultura, no qual educação e natureza se ligam indissociáveis uma à outra, tornando-se num só facto que se consubstancia neste conceito de ‘cérebro social’ que alia um órgão do corpo (natura) à experiência no mundo (educação e cultura).

Os estudos das evoluções filogenética, ontogenética e epigenética do ser humano, principalmente, a partir do século 20, vieram despertar a comunidade científica para a complexidade do cérebro enquanto órgão para a socialização, mostrando como os seres humanos, ao longo da sua vida e ao longo do tempo da história da humanidade, evoluíram e continuam a evoluir como ser social, estando a biologia de cada humano entrelaçada com a dos outros humanos. Nos últimos anos, os estudos científicos das neurociências têm vindo a verificar como os cérebros dos humanos funcionam e se edificam nos contextos das famílias, das comunidades e dos grupos sociais que começaram no primeiro berço de socialização humana que foi a organização tribal. Se, preferencialmente, a ciência estuda cada cérebro individualmente, contudo, um cérebro não tem existência biológica em isolamento de relações humanas, uma vez que o habitat natural do humano são os seus relacionamentos intersubjetivos. Metaforicamente, é com o alimento afetivo e cultural que os neurónios vão tecendo, com as suas sinapses, o rendilhado dos processos biológicos, psicológicos e sociais que moldam o cérebro e permitem o funcionamento do espírito humano. São as relações de intersubjetividade, que cada humano estabelece com os outros humanos, que vão alimentar os processos de mentalização1 que fazem expandir e reorganizam, incessantemente, as redes neurológicas. Apesar do estudo das neurociências sobre o cérebro social do humano ser recente, tem vindo já a contribuir com bastantes conhecimentos científicos que mostram como as competências sociais e gregárias do ser humano estão relacionadas com o entrelaçamento constante dos cérebros, quando comunicam entre si. Quando uma pessoa se relaciona com outra, quando fala com ela, a ouve, pensa nela, nos seus sentimentos ou nas suas intenções, quando interage com ela, defende-se ou protege-se dela, está sempre a promover mudanças no estado interno do seu cérebro para se adaptar às novas situações que o cérebro perceciona, o que influencia em permanência a construção das suas redes neuronais. O cérebro humano é, desta forma, um órgão altamente especializado para a adaptabilidade e para a resiliência que se molda e se constrói para capacitar a pessoa para fazer frente às vicissitudes mas também para investir nos desafios que vai tendo ao longo da vida. É a partir da interação e da interdependência que a pessoa tem com o seu semelhante, o que é uma constante da realidade da existência humana, que o cérebro vai construir as suas estruturas para se adaptar aos contextos com que se vai deparando para ganhar habilidade de adaptação a esses contextos.

Os avanços científicos da psicologia e da psicopatologia sobre as capacitações e a resiliência humanas, mostram, no mesmo sentido, que os avanços das neurociências, que quando emergem desafios inesperados, o cérebro tem uma enorme capacidade para se adaptar e sobreviver, encontrando soluções eficazes. Mas mostram também que, quando é a sobrevivência pessoal ou relacional que está em causa, o cérebro é capaz de se adaptar a meios pouco ou nada saudáveis, o que significa que os mecanismos humanos de adaptabilidade e de resiliência, se por um lado podem ajudar a sobreviver a uma infância traumática, podem igualmente impedir um crescimento psicológico com todas as capacitações para uma normal saúde mental.

O tecer do cérebro, na sua relação com os outros cérebros, é particularmente importante durante a infância e a adolescência, principalmente, nos primeiros anos de vida, quando o cérebro do bebé, dado a sua grande plasticidade, se molda às relações de apego e de vinculação que, na sua intersubjetividade nascente, o bebé constrói com as suas primeiras figuras cuidadoras, habitualmente a mãe e o pai. Apesar da sua neotenia, ou seja, da sua grande prematuridade biológica, o bebé humano vem ao mundo com as capacitações de programação genética necessárias para receber os cuidados de uma parentalização adequada que se conjugam com a sua enorme plasticidade cerebral, ficando marcado, psicológica e neurologicamente, pelos alicerces fornecidos pelos seus primeiros cuidadores e pelas pessoas que foram afetivamente significativas para a sua sobrevivência e para o seu crescimento e bem-estar físico e psicológico durante a sua infância. Esta grande plasticidade do cérebro da criança, que também se estende ao cérebro do jovem, vai possibilitar uma marcada capacidade de adaptabilidade cerebral, permitindo que, incessantemente, a desorganização e a reorganização, tanto cerebral como mental, que são inerentes à mentalização, sejam sempre possíveis e se expressem, subjetivamente, por uma também permanente alternância entre sentimentos de ressentimento e sentimentos de recompensa, onde a reparação intersubjetiva tem um papel mediador. Este papel reparador das relações intersubjetivas é indispensável para que o processo de plasticidade cerebral tenha, sempre, como objetivo, a reorganização saudável cerebral e possibilite, subjetivamente, a recompensa através da reparação do ressentimento, pelo que é muito importante que a plasticidade cerebral seja alimentada por novas relações intersubjetivas de boa qualidade, já que, estando a adaptabilidade ligada, em primeiro lugar, à sobrevivência, as capacitações para a adaptabilidade estão, assim, tanto ao serviço do bem como do mal. Ao serviço do bem que visa a curiosidade e a aprendizagem, porque desde o início de vida, uma criança que teve uma boa relação afetiva com os seus cuidadores, vai receber as vivências e as circunstâncias da vida com a curiosidade que as transforma em desafios, com um cérebro capaz de se adaptar e de se empenhar nesses desafios. Ao serviço do mal que abre o caminho da destrutividade movido pelo medo, porque o cérebro, com a sua capacitação para a adaptabilidade, quando fica ao serviço da sobrevivência social e, principalmente da sobrevivência pessoal, também é capaz de se adaptar a um meio insano e a cuidadores desajustados, ou mesmo patológicos, encontrando e construindo mecanismos de defesa de adaptação, dominados pelo medo e pelo pânico, para poder sobreviver a uma infância traumática por carência de afetos e de cuidados físicos e/ou por maus tratos físicos e psicológicos. A identificação com o agressor, que utiliza mecanismo adaptativos de resiliência para a sobrevivência e não para o crescimento e para a aprendizagem, é um exemplo destes mecanismos de defesa de adaptação a meios afetivos e relacionais disfuncionais. Como mecanismos de defesa que são, estes modos de adaptabilidade reativos a situações negativas, sobretudo se foram de sobrevivência num período precoce da vida, podem permanecer ativos no psiquismo, ao longo de toda a vida, e virem a impedir que se instalem os mecanismos psicológicos saudáveis que permitem enfrentar as vicissitudes com uma atitude de verdadeiro desafio pessoal e relacional e com a confiança de que, pela reparação intersubjetiva, o ressentimento é substituído pela recompensa. Sem esta confiança na reparação intersubjetiva, é o ressentimento que vai ganhar à recompensa, dominando o egocentrismo e o individualismo nas vivências e nas experiências vividas que vão constituir as informações que o cérebro recebe, tanto do interior do corpo como do exterior e que vão alimentar a transmissão sináptica que é o motor do desenvolvimento cerebral. Sendo a transmissão sináptica alimentada pela interação e pela interdependência que cada cérebro tem com os outros cérebros e sendo estas máximas na infância e muito intensas na adolescência, também a transmissão sináptica será, por consequência, máxima na infância e muito intensa na adolescência, existindo, nesses períodos da vida, momentos privilegiados de crescimento neuronal que se podem considerar como períodos sensíveis e críticos da edificação cerebral e do crescimento psicológico.

Independentemente destes momentos de crescimento neuronal intenso na infância e na adolescência, e porque o cérebro em qualquer idade está em contínua mudança e transformação devido à grande plasticidade do tecido neuronal que se mantém durante toda a vida, as interações sociais são sempre a primeira fonte de regulação neurobiológica do crescimento psíquico e da saúde mental do humano.

Usando a linguagem metafórica, o cérebro tece-se a si próprio ao longo de toda a sua vida, em conjunto com os outros cérebros com os quais comunica, desde o início da sua formação, quando ainda está no útero da mãe, até ao fim da sua existência. Passando da metáfora ao real funcionamento do cérebro, cada pessoa, com o seu funcionamento mental, tem impacto no estado neurobiológico das outras pessoas, influenciando a longo termo a construção dos cérebros das pessoas com quem se relaciona. Mas cada cérebro também é portador da sua individualidade própria e única que transporta durante toda a vida, tendo cada neurónio o seu próprio genoma ou código genético. Os genes específicos de cada cérebro são, recorrendo mais uma vez à linguagem metafórica, o molde que o organiza, tanto ativando e desencadeando os períodos sensíveis e críticos do crescimento psicológico, como organizando e orquestrando o andamento da transcrição da experiência vivida em material genético. No campo dos genes que regulam o desenvolvimento e o funcionamento do córtex cerebral, é hoje conhecido que, à medida que a pessoa cresce e envelhece, as células cerebrais desenvolvem genomas diferentes que estão na origem de mutações nos genes de cada neurónio, de modo a que estas mutações sejam uma memória durável para a origem e o desenvolvimento das células cerebrais.

Aliando genética e vivências no mundo, ou seja, aliando as células cerebrais e as sinapses à inter-relação entre cérebros ligados pela intersubjetividade, pode-se concluir que o cérebro constrói-se na interface entre a experiência e a genética, onde natureza, cultura e educação se transformam num só elemento de estímulo para a transmissão sináptica.

A intersubjetividade e a intuição empática: os contributos de Peter Fonagy e a da neurobiologia

Esta interface entre cultura e natura tem sempre um carácter que se pode designar como enigmático, dado resultar das relações subtis e invisíveis que cada cérebro estabelece com os outros cérebros e com o mundo, à semelhança da subtileza e da invisibilidade da complexidade cultural que impregna o espaço intersubjetivo. Imergido no seu contexto cultural e afetivo, cada cérebro é único, com a sua individualidade forjada pela sua história evolutiva e não linear, tecida por milhares de experiências e de vivências pessoais que começaram a construir-se, como já foi referido, mas nunca é demais enfatizar, a partir das primeiras experiências de vinculação com as figuras cuidadoras que vão moldar, desde muito cedo, o cérebro do bebé e da criança pequena. Os pais são, assim, o primeiro meio envolvente relacional, ao qual o cérebro do bebé e da criança pequena se tem de adaptar e vincular, sendo o modo como a mente de cada progenitor, com as suas características subjetivas próprias, exerce a função de cuidador parental, a primeira realidade afetiva e cultural, onde está imergido o cérebro do bebé e da criança pequena. A investigação sobre a vinculação precoce do bebé humano trouxe, neste contexto, um contributo decisivo para o estudo do cérebro social, demonstrando que o cérebro, assim como necessita de água e de alimento para viver, também necessita, dada a sua natureza de interdependência com outros cérebros, de um meio humano envolvente e adequado para a interação social que permita relações intersubjetivas para uma adequada subjetivação2. O afeto que o bebé recebe dos pais e dos adultos cuidadores fornece-lhe as trocas e as sintonizações intersubjetivas que vão intersubjetivas para uma adequada subjetivação . O afeto que o bebé recebe dos pais e dos adultos cuidadores fornece-lhe as trocas e as sintonizações intersubjetivas que vão formar os alicerces do seu cérebro, tanto para a sua sobrevivência como para o seu crescimento, bem-estar e edificação do cérebro social. Como os primeiros anos de vida são um período em que ocorre um desenvolvimento cerebral exuberante, as primeiras vivências relacionais do bebé com os seus cuidadores têm um impacto desproporcionado nesse desenvolvimento em relação a outras etapas do crescer mental. Os momentos de sintonização afetiva que a criança pequena vivencia com os pais vão ser registados, primordialmente, nas zonas do cérebro3 que constituem o ponto de partida para que se desenvolva a sua capacidade da intuição. Esta capacidade para intuir nos outros os comportamentos e as expressões faciais que expressam os afetos e as interações sociais, está assim intimamente ligada à capacidade da intencionalidade relacional que, pelas suas vivências de sintonização afetiva, a criança vai adquirindo para a ajudar a prever os comportamentos e as intenções dos outros que com ela se relacionam, afetiva e socialmente. São estas capacidades para ir intuindo e prevendo os movimentos afetivos e empáticos dos adultos seus cuidadores que vão permitir que, desde tenra idade, a criança vá armazenando no seu cérebro, nas suas memórias  episódicas e afetivas, as vivências de reais momentos de sintonização afetiva e social com os adultos com quem estabeleceu laços profundos de afeto. Estas memórias vão funcionar como circuitos de recompensa que se mantêm como memórias gratificantes e enriquecedoras para o desenvolvimento psicológico, porque permitem que a criança se sinta, afetivamente, em harmonia coerente com quem cuida dela, com quem a protege e a ampara, o que lhe vai dar a capacidade para confiar nos seus cuidadores e nas pessoas em geral. Estas memórias, onde a afetividade e a educação se misturam de modo indissociável, servem de molde para o estilo habitual da relação intersubjetiva que a criança, e depois o/a jovem, vão ter nos seus relacionamentos interpessoais. É este molde que, desde as relações de afetividade profunda até aos relacionamentos de camaradagem com os seus pares, permanece no estilo relacional e tem tendência a perdurar durante toda a vida.

Peter Fonagy (2012), psicólogo e psicanalista inglês que se dedica, há largos anos, à investigação da integração da teoria e da clínica psicodinâmicas nas áreas da vinculação precoce e do tratamento psicossocial no desenvolvimento emocional do bebé, coloca um enfoque especial nos processos de mentalização e da intersubjetividade do desenvolvimento emocional e relacional do bebé com os seus primeiros cuidadores, nomeadamente com a mãe, estudando o que designa de mecanismo interpessoal interpretativo. Alicerçando este construto na grande neuroplasticidade do cérebro do bebé humano, Fonagy reforça, como outros investigadores, que os primeiros anos de vida são períodos de exuberante desenvolvimento cerebral pelo impacto que as primeiras experiências emocionais têm no desenvolvimento dos sistemas neuronais do cérebro do bebé. Tomando como ponto de partida a emoção empática da mãe para com o seu bebé, Peter Fonagy considera que é o estado emocional do cuidar materno que vai permitir que o bebé aceda ao seu próprio estado emocional e, a partir dessa vivência emocional com a mãe, possa desenvolver uma representação mental do seu estado emocional. Esta representação vai ter, como elemento significador, o rosto empático da mãe e, como elemento de significação, o próprio estado consciente emocional do bebé que confere sentido emocional e afetivo a essa representação mental. É esta intersubjetividade entre a mãe e o bebé, num contexto de alto nível de proximidade humana como é a díade mãe-bebé, que se constitui como o fundamento da conexão íntima entre a vinculação do bebé à sua mãe e da sua autorregulação emocional. Segundo este constructo de Peter Fonagy, a autorregulação do bebé vai-se organizando em respostas contingentes do bebé à sua primeira figura de vinculação, exemplificando a função do cérebro humano como órgão social que permite que o bebé humano tenha a capacidade para responder, de forma contingente mas em sintonia emocional com a mãe, aos cuidados e aos estímulos percetivos maternos. É esta capacidade que lhe vai permitir armazenar segurança e confiança intersubjetiva, através de uma presença protetora e cuidadora e, de igual modo, possibilitar que essa figura de vinculação se torne no seu principal meio de significação das suas vivências. A partir desta fonte de significação que é a mãe, com a sua capacidade que W. Bion, psicanalista inglês, designou por ‘capacidade de rêverie materna’, o bebé, desde o início da sua vida emocional, vai adquirir uma compreensão dos seus próprios estados internos e vai iniciar a grande caminhada para a aquisição da compreensão empática dos outros, enquanto entidades psicológicas distintas dele, munido com a capacitação específica da evolução ontogénica humana que permite que a criança possa alcançar, no espaço intersubjetivo, uma rápida e competente interpretação interpessoal, podendo construir a sua própria subjetivação.

Nesta compreensão do cérebro como um órgão social, o espaço intersubjetivo faz de mediador entre as pessoas, nas relações subjetivas que têm entre si, quer seja na família, quer seja no grupo social, podendo este espaço intersubjetivo ser considerado como o espaço de ‘sinapses sociais’. Estas constituem a base das mensagens recebidas, processadas e comunicadas cerebralmente e vão sendo alimentadas pelas narrativas e pelas exposições verbais que cada pessoa, com a sua subjetividade própria, constrói e comunica, consigo próprio e com os outros, usando a comunicação verbal acompanhada e sintonizada pelo e com o contacto visual, a linguagem corporal e a postura social, mas mantendo sempre, como pano de fundo, os seus modelos de vinculação.

Esta capacidade dos cérebros humanos se moldarem e se edificarem a partir das relações que estabelecem com outros cérebros humanos, é estudada pela neurobiologia interpessoal que, como ramo das neurociências, investiga e tenta compreender quais são as redes neuronais que, integradas nas zonas do cérebro social, permitem a intersubjetividade, investigando, não só a forma como o cérebro é construído e reconstruído pelas relações interpessoais, mas igualmente o processo através do qual se sintoniza e se regula com os outros cérebros, a cada momento da sua interação interpessoal. A neurobiologia 

interpessoal investiga ainda, no cérebro social, os efeitos, na intersubjetividade, do isolamento relacional, do stresse e das experiências traumáticas, bem como, numa perspetiva psicopatológica, os processos através dos quais as relações de intersubjetividade criam, mas também podem curar, a doença mental. Estes estudos neurobiológicos têm mostrado a existência de uma estreita correlação entre as experiências interpessoais e o crescimento biológico cerebral, pondo, assim, em evidência o papel determinante das relações de vinculação com as figuras cuidadoras, num momento do crescimento humano em que as infraestruturas neuronais do cérebro social se estão a formar. Apesar da importância que a neurobiologia interpessoal confere aos primeiros anos de vida para um bom desenvolvimento do cérebro social, as suas investigações também confirmam que o cérebro humano é capaz de mudanças em qualquer altura da sua existência, demonstrando que o cérebro social se desenvolveu, em primeiro lugar, para apetrechar o ser humano para a sobrevivência. Mas, nesta perspetiva da sobrevivência, reforçam a importância fundamental dos anos da infância em que, por um lado, a criança é totalmente dependente do adulto e, por outro, confirmam que é o momento da vida em que se dá o maior crescimento do cérebro e da aquisição das capacidades de adaptabilidade, tendo a aquisição da linguagem um relevo muito especial.

De modo inequívoco, os estudos neurobiológicos mostram como as relações precoces saudáveis permitem uma organização, uma estruturação e uma moldagem ótimas do córtex pré-frontal, o que vai possibilitar que, desde a infância, a pessoa, utilizando as suas capacidades de comunicação verbal, consiga confiar nos outros, regular as suas emoções e manter positivas as suas expectativas. São estas capacidades que vão permitir que, também desde a infância, a pessoa possa utilizar, em permanência, a inteligência emocional e a inteligência cognitiva para poder manter um bom pensamento prático e uma boa capacidade reflexiva, conseguindo, a todo o momento, encontrar soluções eficientes e socialmente adequadas aos desafios da vida.

Jean-pierre changeaux: uma revisitação do homem neuronal

Jean-Pierre Changeux, neurobiologista francês que desde os anos 60 do século passado promove um diálogo entre as ciências do sistema nervoso e as ciências humanas e da sociedade, revisita, trinta anos depois (Changeux, 2016), o seu livro publicado em 1983, O Homem neuronal, que, nessa altura foi muito polémico, tanto suscitando comentários positivos pela inovação científica que propunha, como críticas severas ao seu propósito de fazer uma síntese de disciplinas consideradas, naquela altura, tão diferentes como eram a anatomia e a fisiologia do cérebro, a psicologia do comportamento e a biologia molecular (Changeux, 1983). Em 1983, essa síntese permitiu aceder a uma visão de conjunto, mas também ‘fisicalista’ (designação do autor) do cérebro humano e das suas funções superiores, integrando os seus múltiplos níveis de organização, incluindo o nível molecular. De um modo inovador, Jean-Pierre Changeux examinou como os vários níveis de organização anatómica e funcional do cérebro se entrelaçam, tanto de ‘baixo para cima’, como de ‘cima para baixo’, dando acesso às funções superiores do cérebro humano. Na revisitação que faz, agora, em 2016, e voltando a reforçar a importância de se ter uma abordagem multidisciplinar quando se estuda o cérebro humano, identifica, na evolução cerebral do ser humano, o que designa por ‘fenómeno humano’, para chamar a atenção, tanto da notável não linearidade que existe entre a simplicidade aparente do conteúdo do ADN humano e da sequência do genoma do homo sapiens, como da enorme complexidade do cérebro humano, comparado, por exemplo, com o caso do rato: De 5-6 milhões de neurónios, no rato, passa-se para cerca de 100 milhares de neurónios no ser humano. Este paradoxo de não linearidade entre a simplicidade aparente do genoma humano e a espantosa complexidade do cérebro, Jean-Pierre Changeux explica-a pela complexidade crescente neuronal do cérebro humano que, não se devendo ao número de neurónios dado que, no desenvolvimento do cérebro humano, não existe, nos primeiros 15 anos a seguir ao nascimento, uma alteração significativa no número total de neurónios, deve ser atribuída ao exponencial aumento das sinapses. Aumento que explica que o cérebro adulto seja cinco vezes mais pesado do que o cérebro do bebé, sabendo-se que mais de metade das sinapses do córtex cerebral são formadas depois do nascimento. Esta ausência de sinapses à nascença vem explicar que, para poder sobreviver, o recém-nascido humano tenha de ser cuidado pelo seu meio envolvente familiar, o que leva Jean-Pierre Changeux a afirmar que “a evolução darwiniana selecionou o genoma de uma espécie que passa uma boa parte da sua vida a construir o seu cérebro num envolvimento social compatível com a sua sobrevivência” (Changeux, 2016, p.130). A solução para este paradoxo neuronal entre a simplicidade aparente do genoma humano e a complexidade do cérebro, está, explica Jean-Pierre Changeux, na especificidade do fenómeno da epigénese humana que se produz no desenvolvimento cerebral, a seguir ao nascimento, que está associada a um nível superior de organização no cérebro que se encontra ausente em todos os outros tecidos do organismo humano. Neste desenvolvimento cerebral, à carta genética vai-se associar uma topologia de conexões entre os neurónios que é função das interações do cérebro com o seu meio envolvente, cumprindo-se a evolução epigenética a um ritmo extremamente rápido: Em média, formam-se cerca de 10 milhões de sinapses por segundo no córtex do bebé, o que leva Jean-Pierre Changeux a evocar Vygotsky que considerou que, desde o nascimento e talvez até antes, o meio envolvente, físico, social e cultural do recém-nascido se internaliza no seu cérebro. Nas palavras de Changeux, “Entre génese e epigénese, o cérebro do pequeno homo sapiens, consciente, racional e social, torna-se o de uma pessoa capaz e responsável” (Changeux, 2016, p.131). Esta especificidade do ‘fenómeno humano’ que, na sua epigénese, confere as capacitações de mentalização ao cérebro humano, pode ser, assim, compreendida, para além do que é devido ao ADN humano, pela epigénese pós-natal, uma vez que é na formação epigenética pós-natal que se encontra uma parte importante das origens dessa especificidade Segundo esta teoria da epigénese e em sintonia com o que é defendido neste artigo sobre o cérebro social, as representações produzidas pelo cérebro de um indivíduo podem não ser apenas armazenadas no seu cérebro, mas também propagarem-se ao nível do grupo social. Para além disso, podem transmitir-se de geração em geração, sem haver nenhuma modificação do ADN, o que explica que uma tradição cultural se possa instalar e diversificar com o isolamento geográfico ou se possa enriquecer com memórias extracerebrais registadas em substratos mais estáveis do que são os neurónios e as sinapses.

Ligando a neurociência às ciências humanas, e tomando, em particular, como referência a axiologia platónica com os seus três valores principais, o Verdadeiro, o Belo e o Bem, Jean- Pierre Changeux interessou-se igualmente pelos processos mentais da criação artística e da interação social. Investigando os múltiplos processos do envolvimento do cérebro na interação social, considera que este processo mental se pode alicerçar no conceito que designa por ‘regra epigenética’, referindo-se à capacidade do cérebro humano para elaborar regras, geralmente encadeadas umas nas outras, que limitam o número e a natureza das representações cerebrais acessíveis à mente, ou à ‘mentalização’, se convocarmos, numa perspetiva multidisciplinar, este conceito de Peter Fonagy, que intervém como um ‘enquadramento neuronal adquirido’. No seu entendimento sobre os processos de interação social, e fundamentando-se no enquadramento neuronal adquirido com as vivências ao longo da vida, Jean-Pierre Changeux formula, agora em 2016, a hipótese de que o conjunto de neurónios que são mobilizados no espaço do trabalho neuronal consciente e que estão armazenados na memória de longo prazo, sob a forma de traços epigenéticos, são aqueles que definem as regras de conduta social nos seres humanos. Mais concretamente quando, estando conscientes, a criança ou o adulto procuram as relações entre o contexto e a ação em áreas de mentalização tão diferentes como são, ou talvez dito de forma mais apropriada, parecem ser, a matemática, as artes ou a reflexão ética, será o córtex frontal que intervém na descoberta dessas regras de ação abstrata.

Referindo-se à proposta de Paul Ricoeur, no seu livro, “Soi-même comme un autre” (1990) de que cada projeto-intenção está submetido ao ‘filtro da norma’ e relevando, como advertência, que os seres humanos são autocentrados e autoprojetivos na sua vida social, Changeux considera que este filtro assenta, em simultâneo, num conjunto inato de predisposições cerebrais para o julgamento moral que sinalizam, na sua opinião, a humanitas do cérebro do homo sapiens, e que, no contexto envolvente e em constante renovação, criam a evolução das civilizações humanas. Referindo-se aos contextos históricos e sociais dos humanos, com as suas diferenças culturais e civilizacionais, Jen-Pierre Changeux considera que, apesar destas diferenças, existe um nível civilizacional comum, uma vez que se encontra no homo sapiens um modelo de cérebro comum, devido ao referido ‘paradoxo neuronal’ do ‘fenómeno humano’. Paradoxo neuronal que, tanto explica a tríade platónica civilizatória do Bem, do Belo e da Verdade, como os períodos de Mal e de processos de desumanização que desencadeiam passagens ao ato de barbaridade e que se forjam num cérebro humano do qual, se poderá dizer, se ausentou temporalmente o ‘cérebro social’, porque foi conferido ao Outro o estatuto de não-humano, de inimigo que é preciso eliminar impiedosamente. Perante esta ausência de humanização, Jean-Pirre Changeux, fazendo-nos evocar o modo problemático da humanização no mundo de hoje, salienta, não só a importância, mas também a urgência da comunidade científica se mobilizar para um conhecimento do cérebro que permita avançar na compreensão das estruturas sociais humanas. No seu contributo para a compreensão destas estruturas do cérebro social humano, Jean-Pierre Changeux considera que as bases morais do humano se alicerçam nas ligações sociais onde existem situações de recompensas partilhadas, uma vez que os comportamentos de partilha e de cooperação mostram ter um efeito positivo na qualidade moral e na ética das relações sociais. Sendo o cérebro um órgão espontaneamente ativo, mesmo quando não tem estimulação externa, como acontece durante o sono, Jean-Pierre Changeux chama a atenção de que é pela sua atividade incessante, produto da autoprodutividade cerebral, que a consciência, incluindo a consciência moral, se produz. Estudando o modo como o cérebro alcança a significação e o sentido com que compreende, tanto o mundo envolvente, como a si próprio, elabora o que designa por ‘teoria da estabilização seletiva neuronal’, para referir que somente as conexões sinápticas viáveis, relativamente à experimentação e às aprendizagens, são mantidas no cérebro consciente, enquanto que aquelas que não têm viabilidade são destruídas. ‘Aprender é eliminar’, afirma. Assim, de entre as redes neuronais que se mantêm, algumas especializam-se no armazenamento de elementos de informação que permitem construir o sentido e a significação, possibilitando que a pessoa possa diferenciar o verdadeiro do falso sentido e aceder a uma compreensão da significação fenomenológica. Constituindo uma geografia neuronal do sentido ou da significação, estas redes neuronais formam-se a partir de ‘neurónios de recompensa’ que atuam pelo reforço positivo ou pelo condicionamento, quando transmitem, por exemplo, um comportamento ou uma informação a uma criança.

Neil Levy e a neuroética

As neurociências têm dado, nos últimos anos, um relevo especial ao estudo dos comportamentos morais e éticos, principalmente em sintonia com a psicopatologia que, nos nossos dias, é largamente influenciada pelos distúrbios da personalidade que afetam as condutas sociais e a empatia, originando condutas antissociais e desviantes dos padrões morais e de cidadania culturalmente aceites nos humanos.

Tendo como objetivo investigar os circuitos cerebrais das bases morais do comportamento humano, estas pesquisas integram-se na neuroética, disciplina das neurociências que estuda especificamente a relação entre o cérebro humano e a moralidade dos seres humanos. Nesta perspetiva, o filósofo Neil Levy, aliando as neurociências à filosofia analítica, com especial incidência na intersecção entre a lógica, a análise da linguagem e a fenomenologia, considera que, sendo os seres humanos agentes morais, porque dotados de moralidade e com a capacidade de terem responsabilidade moral, contudo esta capacidade pode não se manifestar em todos os instantes da vida consciente. Explorando esta não permanência da consciência moral, a partir da investigação de situações em que o ser humano se mostra menos responsável do que se estaria à espera, a neuroética procura uma melhor compreensão dos mecanismos neurobiológicos da consciência moral e da responsabilidade moral. A partir do conhecimento do cérebro social, a pesquisa neuroética tenta aprofundar os funcionamentos mentais que se ligam ao conceito filosófico de consciência moral, nomeadamente à sensibilidade moral, ao raciocínio moral e à capacidade de justificação de ações ou de comportamentos. Alicerçando-se na filosofia das ações, da ética e das ciências cognitivas, a pesquisa neuroética tenta compreender os mecanismos mentais envolvidos e responsáveis pelo auto-controlo a partir do estudo dos mecanismos que tanto fazem perder o auto-controlo, como os mecanismos que o reforçam e o fortalecem.

Estas investigações permitem concluir que o cérebro humano está dotado de duas predisposições morais hereditárias: A aversão a fazer sofrer o outro e o sentido da equidade, ambas sediadas nas zonas cerebrais das emoções designadas como ‘sociais’ que têm localização específica. Estas duas predisposições, fazendo parte do normal instinto da sobrevivência da espécie mas também da característica gregária humana, incitam à cooperação nas relações interpessoais. Contudo, constata-se facilmente que, ao contrário da visão do mundo como uma casa comum de todos os homens, não se vive num mundo de altruísmo moral, porque, ensinam ainda os neurocientistas, o cérebro humano está igualmente, em determinadas situações, talhado para os comportamentos individualistas da sobrevivência, nomeadamente, quando a pessoa sente ameaçada a sua segurança pessoal e a continuidade do seu self. Estes comportamentos, onde domina o medo, podem sobrepor-se às capacidades de cooperação com os outros e às faculdades morais, o que leva os neurocientistas a investigarem possíveis pontes entre o funcionamento do cérebro social e os comportamentos desviantes, incluindo os que ocupam o território da justiça.

Boris Cyrulnik e os infortúnios da vinculação

Neuropsiquiatra, psicanalista, etólogo francês e um dos grandes especialistas sobre os caminhos da vinculação e da resiliência humanas, Boris Cyrulnik, num livro recente, Le cerveau est-il coupable (Cyrulnik, 2016), tem, como Jean-Pierre Changeux, a convicção de que a evolução do conhecimento sobre o cérebro pode conduzir a uma nova compreensão sobre o modo de agir e de decidir dos seres humanos. Com a preocupação de integrar os conhecimentos neurocientíficos nas áreas da justiça e da jurisprudência, Boris Cyrulnik toma como premissa principal a constatação científica de que o envolvimento afetivo que os indivíduos recebem desde o nascimento, molda o modo como constroem o seu padrão de vinculação afetiva em relação ao Outro. Este padrão vinculativo, baseado no nível de confiança que a criança foi criando no mundo e no seu semelhante, vai-se constituir num alicerce fundamental para o desenvolvimento do modo relacional e do tipo de socialização desenvolvido ao longo da sua vida. Isto significa, afirma Boris Cyrulnik, que o comportamento social depende, em parte, do modo como foi construída a vinculação afetiva infantil, o que implica considerar que uma vinculação disfuncional na infância pode vir a provocar, na adolescência e na vida adulta, uma perturbação na socialização. Não obstante, Boris Cyrulnik considera que a maior parte das crianças, mesmo quando o meio afetivo envolvente lhes foi difícil, não tem perturbações graves de vinculação porque, como mostram as investigações e os estudos sobre a vinculação da criança, a fiabilidade dos pais, o afeto com que envolvem os filhos, a organização de um ambiente sensorial estável, seguro e dinâmico, proporcionado pelo meio familiar e o envolvimento com a família alargada, permitem que a maior parte das crianças, duas em três, afirma Boris Cyrulnik, não sofram perturbações de confiança que ponham em risco a sua socialização. Mas alerta, quando nas vivências da criança acontecem falhas precoces afetivas de ordem relacional, social ou por doença física, essas falhas podem conduzir a perturbações ou distúrbios relacionais sérios.

No processo de crescimento dos seres humanos que se pauta por uma sucessão de momentos de transformação, Boris Cyrulnik releva os períodos críticos de grande sensibilidade e aprendizagem, essencialmente de cariz biológico, nos quais o organismo é uma verdadeira esponja para percecionar as informações vindas do exterior, numa aliança entre o determinismo genético e cronobiológico e a ação do meio envolvente. Estes períodos críticos do crescimento iniciam-se nos primeiros anos de vida, fazendo-se a aprendizagem na infância a uma altíssima velocidade, como comprovam os estudos com neuroimagens, mostrando 200.000 conexões sinápticas por minuto, o que permite uma enorme capacidade de incorporação e de interiorização de novas aquisições. No entanto, disfuncionalidades no seio familiar podem interferir com estes períodos críticos de crescimento neurobiológico, mostrando-se a criança muito receosa e dominada muito facilmente pelo medo, mesmo quando utiliza, como defesa psicológica, o ataque constante à relação intersubjetiva com os outros, como são os comportamentos de oposição, de desafio, de agressividade excessiva e, mesmo, de violência verbal ou física, principalmente com os pares. Nestas situações de medo psicológico, é importante ter um cuidado especial com as crianças que, pela sua tenra idade, ainda têm dificuldades na comunicação verbal, não conseguindo expressar-se verbalmente por ainda não terem palavras para dizer o que estão a sentir ou quais são os seus sentimentos, não conseguindo comunicar e expressar as suas emoções negativas, nem tecer ou continuar a rendilhar os seus elos de vinculação. Esta incapacidade de comunicação dos seus sentimentos negativos pode levar a criança a ficar restringida à escolha da inibição ou da explosão, quer emocional, quer no seu agir e no seu pensar, com perturbações sociais da empatia, mas expressando em qualquer caso, reafirma Boris Cyrulnik, a mesma fonte de perturbação: As perturbações precoces na vinculação aos seus adultos cuidadores. Também na adolescência existe um período crítico do crescimento que acompanha o acordar dos desejos sexuais e o desejo da independência social e que, por regra, decorre com muitos momentos de transformação que parecem desenrolar-se num reino de paradoxos e de oximoros porque são sentidos pelos/as jovens, simultaneamente, como dolorosos e fascinantes. Mas à semelhança da infância, se existir uma perturbação da comunicação empática do/a jovem que lhe impossibilita uma eficaz interação social e um crescimento intersubjetivo e da subjetivação adequados, podem surgir perturbações da socialização e/ou passagens ao ato impulsivas e incoercíveis, no contexto dos comportamentos de oposição e de desafio da criança.

Para além destes períodos de crescimento próprios do crescer da criança, que são sempre de transformação psicológica e, frequentemente, de turbulência emocional, a precariedade social e o desajuste relacional podem ser uma forma de agressão crónica para a criança que, apesar de poder alterar, desde o nascimento, a estrutura e o funcionamento do seu cérebro, pode, contudo, apenas se revelar muito mais tarde, durante a adolescência ou na idade adulta, quando a pessoa tiver necessidade de controlar as suas emoções em meio social, mas não o conseguir fazer, ficando submetido a um agir impulsivo, dominado pela passagem ao ato, sem auto-crítica e com falhas momentâneas da sua consciência moral.

Quando a criança está inserida num contexto social e afetivo disfuncional e traumatizante, como é possível acontecer quando existe uma escassez de recursos sociais e relacionais, o seu cérebro poderá, desde uma idade muito precoce, não ter sido envolvido por uma vinculação segura aos adultos seus cuidadores que capacite a criança de uma adequada competência para controlar as suas emoções e para atingir o domínio da palavra ou dos rituais sociais que lhe permitam aprender a socializar-se com um adequado pensamento reflexiva. Nestes casos, a criança pode ficar apenas com a escolha psicológica da inibição ou do bloqueio emocional e/ou cognitivo, traduzida, na sua postura, por uma aparente indiferença ou por uma explosão no agir, com passagens ao ato não controláveis. Mas, volta Cyrulnik a precisar, se as perturbações da vinculação precoce podem deixar traços duráveis para a vida, esses traços cerebrais negativos não são uma fatalidade para sempre, podendo ser ultrapassados pelo diálogo com um interlocutor fiável ou pela compreensão das emoções e dos estados de descontrolo psicológico que restaura os mecanismos da capacidade de resiliência. Como especialista da capacidade de resiliência humana, Cyrulnik enfatiza, para a superação dos estados de alma dolorosos e mortíferos, a importância da confiança relacional, da compaixão e da esperança no futuro. Os meios familiar e social saudáveis, oferecendo lugares de palavra e de partilha relacional, são os melhores instrumentos para neutralizar os efeitos de vulnerabilidades neuro-emocionais gerados, durante os primeiros anos de vida, por uma sucessão de isolamentos afetivos.

Conclusão

Como conclusão final e por tudo o que foi exposto neste artigo, pode-se afirmar que a vida do cérebro é o cérebro da vida social, tendo como principal alimento o afeto que é a expressão principal das relações sociais. É o afeto que os pais transmitem aos filhos que constitui a fonte da maturidade que a criança vai desenvolver num duplo sentido, através da capacidade para viver a sua vida com os outros e através da compreensão de que viver é um desafio que não se pode enfrentar sozinho.

 

Referências

Changeux, J-P. (1983). L’homme neuronal. Col. Pluriel. Paris: Hachette.

Changeux, J-P. (2016). L’homme neuronal, trente ans après. Paris: Éditions Rue d´Uim/ Presse de l´Ècole normal supérieur.

Cozolino, L. (2006). The neuroscience of human relationships: Attachment and the developing social brain. Nova Iorque: WW Norton & Company.

Cozolino, L. (2013). The social neuroscience of education: Optimizing attachement & learning in the classroom. Nova Iorque: WW Norton & Company.

Cyrulnik, B. (2016). Le cerveau est-il coupable. Paris: Edition Philippe Duval.

Fonagy, P., & Bateman, M.A. (2012). Handbook of Mentalizing. In Mental Health Practice. Arlington, VA: American Psychiatric Association Publishing, Inc.

Morin, E. (2005). Introduction à la pensée complexe. Paris: Éditions du Seuil.

Ricoeur, P. (1990). Soi-même comme un autre. Paris. Editions du Seuil.

Notas de rodapé

1 Mentalização é o processo mental utilizado pela pessoa para, de modos explícito e implícito, interpretar o sentido, a significação das suas ações e das dos outros, alicerçada em estados mentais de intencionalidade, tais como os desejos, as necessidades as crenças e as razões de cada um.

2 O processo de subjetivação é a etapa do desenvolvimento humano, na qual, através da interiorização das representações intersubjetivas, o ser humano adquire a competência que lhe vai permitir tornar-se uma pessoa, com a capacitação para pensar e para se nomear como um Eu.

3 Zonas e sistemas do cérebro que são ativados quando a pessoa está num qualquer tipo de atividade e socialização, quer agida, quer apenas mentalizada e onde se inclui o sistema formado pelos neurónios espelho, uma das estruturas cerebrais responsáveis pela sintonização empática.

Resumo

Considerando o cérebro como um sistema complexo com retroacção e com mecanismos de adaptabilidade, relevando a intersubjectividade e a intuição empática mas, igualmente, os infortúnios da vinculação, revisitando o “homem neuronal” e introduzindo a neuro-ética, este artigo pretende contribuir para a compreensão de que a complexidade da vida do cérebro é o cérebro da vida social.

Palavras-chave

Complexidade-adaptabilidade; Intersubjectividade; Intuição empática; O fenómeno humano; Neuro-ética; Vinculação.

Title

The Social Brain: Understanding the Brain as a Social Organ

Abstract

Regarding the brain as a complex system with retroaction and mechanisms of adaptability, emphasizing intersubjectivity and empathic intuition but also the misfortunes of attachment, revisiting the “neuronal man” and introducing neuro-ethics, this article intends to contribute to the understanding that the complexity of brain life is the brain of social life.

Key Words

Complexity-adaptability; Intersubjectivity; Empathic intuition; The human phenomenon; Neuroethics; Linkage.