Revista | Vol. 10, Dez 2019

Sete tentativas para derrubar o muro esquizofrénico: A propósito do autismo de Bleuler

 

Psicopatologia da esquizofrenia: integração entre aspetos orgânicos e psicodinâmicos

Atualmente, os paradigmas científicos tendem-se a afirmar pelo monopensamento, positivismo, reducionismo biológico e neo-obscurantismo. Contrariamente a essa tendência, o livro que publiquei, Autismo de Bleuler: Repensar as Esquizofrenias pelo Sintoma `Invisível` (Arantes-Gonçalves, 2014), procura construir pontes clínicas e científicas entre vários autores, retirando-os do isolamento e invisibilidade a que foram sujeitos pelos métodos de investigação hoje dominantes. O que está em causa é relacionar aspetos de natureza orgânica e psicodinâmica que continuam a não ter o reconhecimento necessário no campo da psicopatologia da esquizofrenia.

Esta é a perspetiva que apresento neste artigo e, neste sentido, o livro não poderia ser mais Bleuleriano. O psicopatologista suíço Eugen Bleuler (1857- 1939) teve a seu cargo inúmeros internos de psiquiatria de várias orientações teóricas diferentes, o que equivale a dizer que foi capaz de fazer escola no melhor sentido do termo. A diversidade de perspetivas sobre o adoecer mental revelou-se fecunda, em vez de criar afastamentos entre colegas, como é mais comum nos dias de hoje. Bleuler, que era apenas um ano mais novo que Freud e ambos morreram no mesmo ano, é também considerado o primeiro psiquiatra de orientação organo-dinamista, uma vez que foi pioneiro na tentativa de integrar aspetos orgânicos e psicodinâmicos numa mesma doença. Ele ficou para a história da psiquiatria, ao integrar, na abordagem das esquizofrenias, as perspectivas de dois nomes que aparecem, frequentemente, como incompatíveis: Kraepelin e Freud. A questão é que integrar áreas distantes, ou situar-se na interface entre diferentes saberes, constitui-se como um caminho mais difícil do que separar ou ficar-se pela ultra-especialização. É também com Bleuler e Jung que se inicia a investigação qualitativa do ‘grupo das esquizofrenias’, tendo em conta a preocupação em dar significado à vida mental subjetiva destes doentes. Trata-se, portanto, de um modelo de investigação qualitativa muito mais próximo da clínica, o que contrasta com as investigações quantitativas que reduzem e aprisionam os fenómenos estudados às escalas psicométricas.

No mundo de hoje, torna-se indispensável recuperar os instrumentos de compreensão psicopatológica das doenças mentais, enquanto auxiliares complementares dos tratamentos mais sintomáticos e ‘como garantia de devolver aos doentes com esquizofrenia a subjetividade a que sempre tiveram direito’ (Arantes-Gonçalves, 2014, p.75). Sem uma compreensão integrada dos fatores que determinam a génese e a manutenção das esquizofrenias, muito dificilmente será possível devolver o doente à sociedade da qual o próprio se retirou. Para este fim, é necessário compreender a natureza dos vínculos internos e externos que os doentes mantêm com as figuras de vinculação patogénica, bem como os vínculos que não conseguem iniciar ou manter com outras figuras potencialmente mais saudáveis. Aqui, o papel dos psicoterapeutas, em geral, e dos psicanalistas, em particular, é, sem dúvida, insubstituível como ponte e zona de transição entre o passado e o futuro destes pacientes.

As emoções

A afirmação do estudo psicopatológico das emoções nas esquizofrenias implica, em particular, recuperar o conceito de ‘complexos carregados de afectos’ de Jung (1907), como representantes de memórias emocionais traumáticas que continuam a exercer influência no psiquismo dos doentes, colocando a hipótese de serem estas emoções demasiado fortes um dos principais factores predisponentes à fragmentação do Eu e consequente retirada autística da realidade. Ou seja, grande parte da ‘energia emocional’ estaria intensamente fixada nos mesmos ‘complexos carregados de afecto’, ficando largamente deficitária para as emoções da vida de relação. Assim, fica desfeito um aparente paradoxo: O empobrecimento emocional das esquizofrenias parece esconder uma vida emocional interior muito intensa, caótica e turbulenta.

Este paradoxo é ainda melhor compreendido com a ajuda de Eugene Minkowski (2000). Para este psicopatologista franco-polaco, os doentes com esquizofrenias vão alternando entre os pólos da anestesia e hiperestesia afetivas, de modo que estes doentes nem são demasiado frios, nem demasiado sensíveis, são os dois ao mesmo tempo. Por isso, o mais calmo dos doentes pode ser capaz da maior e mais violenta expressão emocional. De facto, quando os `complexos carregados de afecto` se separam da restante personalidade, adquirindo autonomia, contribuem para a fragmentação cada vez maior. É nestas condições que os doentes com esquizofrenias receiam expressar os afetos que são sentidos como excessivamente intensos. Daí que o pensamento autístico seja guiado por necessidades afetivas que dizem respeito à sobrevivência psíquica do próprio. Quanto mais retirado do real, maiores são as repercussões psicopatológicas, em termos de anomalia afetiva. Da mesma forma, no conflito entre a razão e as emoções, é a afetividade autística que acaba por prevalecer. Num outro vértice de observação, podemos interrogar-nos se o racionalismo mórbido, na sua vertente de hipertrofia das funções intelectuais e escasso desenvolvimento das capacidades emocionais e intuitivas, acaba também por funcionar como blindagem contra as emoções demasiado fortes ou intensas. No entanto, nas alturas em que surgem os conflitos intersubjetivos e interpessoais, são os ‘complexos carregados de afecto’ que ganham predominância. Também podemos colocar como hipótese a ideia Bioniana acerca da presença de um vínculo emocional de ódio estar subjacente ao racionalismo mórbido, por intermédio dos sentimentos de arrogância e omnipotência. Nas palavras de Bion (1988): “É um pequeno passo do ódio às emoções, ao ódio à própria vida” (pp. 55-77).

A personalidade

O estudo da personalidade pré-mórbida das várias doenças mentais sofreu um acentuado declínio nas últimas décadas. Refiro-me ao estudo psicopatológico clínico, o qual tem a vantagem de permitir entrar em contacto interpessoal e intersubjetivo com as vivências emocionais dos doentes. As descrições compreensivas dos psicopatologistas clássicos são, por isso mesmo, absolutamente únicas e insubstituíveis. Assim, foi a partir desse estudo patobiográfico que foi também ganhando forma a presença de personalidades pré-mórbidas, caracterizadas pela introversão (Jung) e auto-erotismo (Freud), onde a libido é direcionada para o próprio. A um outro nível, também o estudo psicopatológico foi permitindo compreender que, uma vez estabelecida a doença esquizofrénica, a nota mais dominante da personalidade é a desagregação da mesma. Deste modo, quanto mais grave é a doença, maior a perda de unidade da personalidade. De um ponto de vista da psicopatologia psicanalítica, Bion (1988) coloca em evidência a fragmentação entre as partes psicótica e não-psicótica da personalidade que, habitualmente, são sentidas pelos doentes como um fosso intransponível.

É também com ponto de partida nos psicopatologistas clássicos que surge a formulação de uma constituição esquizóide (Kretchmer), ou esquizofrenia latente (Bleuler), conceptualizadas como um factor de risco para as esquizofrenias, mas também como uma primeira manifestação das mesmas. Curiosamente, até meados do século vinte, a grande maioria dos alienistas (independentemente da sua orientação teórica e terapêutica) estavam de acordo quanto à estrutura de personalidade constituir os alicerces do adoecer mental. Assim sendo, estamos em presença de um modelo que é a favor da continuidade entre personalidade e doença, o que poderá remeter para a importância de intervenções terapêuticas mais precoces, bem como da pesquisa dos antecedentes biográficos, relacionais e desenvolvimentais nas histórias clínicas, para um melhor e mais completo plano terapêutico. O desenvolvimento da doença a partir da personalidade adquire aqui um plano complementar, e não antagónico, com os modelos de descontinuidade e incompreensibilidade (Jaspers, 1997). Neste sentido,

“São os efeitos de um trauma relacional que vão fragmentar a psique em duas partes: a parte autística, que fica conectada com os aspectos traumáticos, e a parte mais saudável que escapa e sobrevive ao trauma. Daí que possamos falar de fixação traumática de alguns aspetos da personalidade esquizofrénica. A nosso ver, são essas partes fixadas que, mais tarde, aquando de um surto psicótico, vão sofrer um exagero patológico, dando origem ao que Jaspers chama, propriamente, de desenvolvimento da personalidade. Assim, podemos referir que uma parte da doença corresponde ao binómio fixação-desenvolvimento. A outra parte que acima designamos de mais saudável é aquela que, aquando de um surto psicótico, irá sofrer uma regressão autística, dividindo a vida do doente em duas partes completamente diferentes, o que constitui um processo da personalidade, segundo Jaspers. Esta parte receberia a designação de regressão-processo. Fixação-desenvolvimento e regressão-processo constituem, deste modo, pontes conceptuais entre psicopatologia clássica e psicanálise.” (Arantes-Gonçalves, 2014, p.134) 

O corpo e a sexualidade

Uma das notas dominantes do autismo Bleuleriano diz respeito à vivência da sexualidade e corporalidade por parte destes doentes. Tanto uma como outra apresentam uma característica comum, que é o seu direcionamento para dentro do próprio. Segundo Freud (2006a), existiria uma incompatibilidade entre líbido narcísica e líbido objectal nas esquizofrenias, de modo que o excesso da primeira esvaziaria a segunda: “Com efeito, poder-se-ia considerar que o colapso psíquico teria praticamente existido e que a memória emocional traumática, que ficou guardada com enorme força, não dá ao sujeito outra hipótese, se não fechar-se auto-eroticamente” (Arantes-Gonçalves, 2014, p.59). Esta seria também uma diferença quantitativa, na comparação com a paranóia, onde a retirada libidinal do mundo relacional não seria tão devastadora. E não deixa de ser muito interessante o facto de o autismo, para Bleuler, ser, com pouco diferença, aquilo que Freud designou por auto-erotismo. Aliás, auto-erotismo era o nome eleito para designar o autismo das esquizofrenias. No entanto, Bleuler (2005) optou pelo termo autismo para evitar as conotações com a teoria psicanalítica da sexualidade, muito mal aceites naquela época.

Uma vez que a sexualidade e o investimento libidinal se expressam em grande parte pela corporalidade, não é com surpresa que esta, à semelhança da primeira, assume uma predisposição centrípeta. Ao nível da pele, os doentes com esquizofrenias procuram isolar o mais possível as suas superfícies cutâneas do mundo exterior, receando o contacto pele-a-pele: “Deste modo, compreende-se melhor a defesa autística de contacto com a realidade, porque, privado da sua pele primordial, ao autista só restaria uma segunda pele para funcionar como blindagem entre as emoções internas e a realidade exterior” (Arantes-Gonçalves, 2014, p. 60). Também a nível da psicomotricidade, na inibição catatónica, os doentes acabam por se encolher ao máximo, evitando as influências exteriores. A um outro nível, as posturas passivas e imóveis defendem-nos do contacto vital e libidinal com o real (Sobral Cid, 2011).

O autismo como denominador comum da psicopatologia das esquizofrenias

É de grande interesse clínico e científico tentarmos encontrar para cada doença o seu cerne ou estrutura mais íntima, funcionando como plataforma de lançamento para os restantes sintomas. Mas, ao contrário, na psiquiatria atual, assistimos a uma categorização cada vez maior entre grupos de sintomas que vão ficando também cada vez mais distantes entre si. Neste sentido, é imperativo promover uma compreensão mais dimensional entre os vários sintomas.

Sigmund Freud (2006b) terá sido dos primeiros a colocar a hipótese de os sintomas heterólogos (delírios e alucinações) terem como principal objectivo ocuparem a perda de relação com o real, assumindo-se como ‘tentativas de restituição’. No entanto, Freud vai ainda mais longe ao referir que o conteúdo desses sintomas é constituído, habitualmente, por material psíquico relacionado com memórias emocionais biográficas carregadas de angústia:

“Poderíamos considerar o autismo como o remanescente de uma memória afetiva implícita que permite detectar a ameaça e que garante a sobrevivência do sujeito. Por outras palavras, seria uma verdadeira ‘memória imunológica’, ou seja, memória que atua como sistema de defesa. Seria uma memória com capacidade de recordar as experiências traumáticas, projetando-as no mundo das relações humanas.” (Arantes-Gonçalves, 2014, p.137).

E, ainda num outro prisma,

“Poder-se-ia dizer que o que se perde é a capacidade de constituição de um objecto interno, capaz de representar o objecto externo na sua ausência. Ou seja, o autismo poderia ser aqui entendido como a incapacidade de constituição de objetos internos, os quais serviriam de ponte para a relação com a realidade externa.” (Arantes-Gonçalves, 2014, p.46).

Também Bleuler (2005) tentou categorizar os sintomas da doença esquizofrénica, classificando-os como primários (fragmentação das funções mentais) ou secundários (toda a restante sintomatologia). Para o psicopatologista suíço, estes últimos seriam consequência dos primeiros e constituíam uma tentativa de re-equilibração, face às dificuldades colocadas pelos primeiros. Observando o autismo Bleuleriano como passo intermediário entre a fragmentação ampla das funções mentais e a restante sintomatologia da doença, poderíamos dizer que os ‘complexos carregados de afecto’ que o autismo procura guardar podem ser, por assim dizer, reciclados à superfície do psiquismo, através dos sintomas heterólogos, aquando da presença de factores de stresse relacional. Para Minkowski (2000), o autismo como perda de contacto vital com a realidade é o aspeto mais central das esquizofrenias, atuando como trouble generateur dos restantes sintomas: “Poderíamos dizer que a perda de contacto vital de Minkowski é também uma perda de contacto libidinal, na perspectiva de Jung, que considerava a libido na sua vertente energética de interesse e de investimento” (Arantes-Gonçalves, 2014, p. 88).

Por outro lado, na perspectiva da psicopatologia psicanalítica de Bion (1988), encontramos o conceito clínico de identificação projetiva que faz a ponte entre o autismo de Bleuler e os sintomas heterólogos, a partir de uma dupla perda de contacto com as realidades interna e externa. Em resumo, a partir do conceito de autismo de Bleuler, vários autores procuram colocar em evidência a ligação entre os vários sintomas, contribuindo, dessa forma, para uma maior unidade compreensiva da doença.

Trauma, dissociação e inconsciente

Para além da plasticidade genética, os traumas relacionais e cumulativos colocam estes doentes num conflito quase insuperável entre ‘os complexos carregados de afecto’ e a própria vida relacional. Na formulação de Jung (1914), a maioria dos doentes escapa ao trauma com uma importante mutilação na estrutura de personalidade. Neste contexto, uma parte diz respeito à vida autística carregada de sonhos e fantasias, enquanto outra se refere à vida de relação, conforme é sentida por estes como muito ameaçadora: “É nestes momentos que o mundo de sonho se torna a sua única realidade e o doente vai ficando, cada vez mais, retirado do real e, cada vez mais, sonhador” (Arantes- Gonçalves, 2014, p. 39). Podemos pensar que são as experiências traumáticas relacionais que rasgam a personalidade destes doentes, dividindo-a num segmento grande (complexos carregados de afecto) e, por outro lado, numa parcela menor que remete para alguns núcleos neuróticos (histéricos, fóbicos ou obsessivos). Vale a pena sublinhar, porém, que é a primeira que predomina também nos mecanismos de defesa utilizados. Ou seja, nos mecanismos de defesa psicóticos ou imaturos, o Eu rejeita não só a representação mental intolerável, mas também o afeto que a ela está ligado, comportando-se como se esta jamais lhe tivesse ocorrido (Freud, 2006c). Na minha leitura, é a força e autonomia dos ‘complexos carregados de afecto’ o principal factor genético e perpetuador da fragmentação ampla das funções mentais. Bion acrescenta o facto de a fragmentação das funções mentais não ocorrer somente entre o paciente e a realidade externa, mas também opera nos vários elos de ligação entre as partes psicótica e não-psicótica da personalidade. Consequentemente, apesar de a descoberta do inconsciente ter sido feita a partir dos sonhos dos pacientes neuróticos, não restam grandes dúvidas que, nas psicoses esquizofrénicas, a força e influência do inconsciente desempenham um papel ainda maior em relação a outras patologias.

Relação terapêutica e psicoterapia

Se o autismo Bleuleriano tem como característica dominante a retirada relacional, coloca-se a questão premente da relação terapêutica com estes doentes. Em primeiro lugar, há a referir que a ausência de contacto sintónico destes pacientes estará relacionada com a ‘violência’ das suas emoções internas, tornando a sua expressão muito dificilmente comunicável ao entrevistador. Nesse sentido, é indispensável resgatar os ensinamentos da psicopatologia compreensiva explorados por vários autores. Começando precisamente por Bleuler, um dos primeiros a interessar-se pela vida mental e emocional destes doentes, dando especial destaque ao estabelecimento de uma relação terapêutica empática, complementada com a valorização do estudo clínico dos antecedentes biográficos e da sua possível relação com o conteúdo dos sintomas. Entre os outros autores que também salientaram a importância vital da relação terapêutica, Jaspers (1997) propôs a redução fenomenológica da compreensibilidade, estando esta dependente do tempo, empatia, disponibilidade e riqueza interna do entrevistador. Na mesma linha de atitude terapêutica, encontramos Schneider (1963), considerando que, nas psicoses endógenas, é possível, e mesmo mandatório, captar a vivência subjetiva interna dos pacientes.

Entre nós portugueses, Sobral Cid (2011) alertou para o facto de a comunicação com estes doentes deparar-se com inúmeros obstáculos, tendo em conta as enormes dificuldades de relação afetiva que caracterizam a personalidade mórbida. Apesar de a tarefa terapêutica ser de enorme magnitude, o psicopatologista só tem, na realidade, o caminho que nos é proposto por Minkowski: Tentar uma reconstrução séria da experiência vivida do outro e criar uma atitude optimista de reciprocidade, a partir de uma atitude desalienante com o doente. Uma das estratégias possíveis, entre muitas outras, é “a capacidade de sentido de humor, a qual está muito deficitária nestes pacientes. De igual modo, é importante ir introduzindo algum uso de metáforas como forma de contra-balançar o uso excessivo que estes pacientes fazem da metonímia” (Arantes-Gonçalves, 2014, p. 138).

É justamente neste ponto que a psicopatologia compreensiva se cruza com a psicoterapia psicanalítica: No equilíbrio e na importância que confere não só às partes doentes, mas também às partes saudáveis dos pacientes, afinal de contas absolutamente essenciais para o tratamento da fragmentação. Como enfatiza Amaral Dias (2014), a compreensão do autismo torna-se fundamental para tentar penetrar no mundo interno esquizofrénico, mas também para iniciar um trabalho psicoterapêutico complementar das terapêuticas biológicas. Não deixa de ser notável que ainda hoje continue a ser contestada, de forma quase maioritária e inflexível, pela maioria dos sectores da psiquiatria, a necessidade de complementar as psicoterapias, em relação à medicação antipsicótica, e que, ao contrário, esta complementaridade tenha sido tão bem percebida por Bleuler e, ainda por cima, numa altura em que não havia tratamentos biológicos. Na verdade, foi em Zurique que se iniciaram os primeiros tratamentos psicoterapêuticos do ‘grupo das esquizofrenias’. Chamo ainda a atenção que o termo ‘grupo das esquizofrenias’, apesar de apresentar algumas fraquezas ao nível do diagnóstico categorial, apresenta, como força diagnóstica dimensional, a inclusão das personalidades esquizóides que, em muitos casos, se apresentam como a primeira manifestação sintomática de uma possível e futura esquizofrenia. Os tratamentos psicoterapêuticos, sobretudo de inspiração psicanalítica, assumem, na esquizoidia, um papel insubstituível.

Conclusão

Independentemente da profundidade em que podemos avançar no ‘derrubar do muro esquizofrénico’, quero sublinhar que as sete divisões deste artigo correspondem a ‘sete tentativas’ para compreender a magnitude psicopatológica do autismo como estrutura paradigmática do ‘grupo das esquizofrenias’, tendo em vista “que o estudo clínico compreensivo, fenomenológico, gestáltico e psicanalítico, entre outros, será aquele que poderá trazer mais conhecimentos de um grupo de doentes, com os quais temos muito a aprender na relação com eles” (Arantes-Gonçalves, 2014, p. 141). Neste contexto, a intervenção dos psicanalistas pode situar-se a um nível individual e familiar, mas também a um nível social e eco-sistémico. O que está em causa é compreender a transformação da identificação projetiva do doente na sua relação com o mundo, bem como do mundo relacional para com o doente. O resultado será a positiva turbulência que decorre da ativação dos núcleos psicóticos da sociedade, até porque, como seria possível, sem turbulência, a transformação das sociedades antropofágicas em sociedades antropoémicas?

Referências

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Bleuler, E. (2005). Dementia Praecox ou Grupo das Esquizofrenias. Climepsi Editores.

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Schneider, K. (1963). Patopsicologia Clinica. Editorial Paz Montalvo.

Sobral Cid, J. M. (2011). A vida psíquica dos esquizofrénicos. Clássicos da Psiquiatria. Ulmeiro.

Resumo

A obra do psicopatologista suíço Eugen Bleuler, que foi um contemporâneo de Freud, integra aspetos orgânicos e psicodinâmicos no campo da psicopatologia da esquizofrenia. Isto constitui um modelo de investigação qualitativa muito mais próximo da clínica do que as abordagens quantitativas dominantes, que atualmente reduzem e confinam a análise destes pacientes às escalas psicométricas. Sem uma compreensão abrangente e integrada dos fatores que determinam a génese e a persistência do ‘grupo das esquizofrenias’ (sendo esquizofrenia um termo cunhado por Bleuler, juntamente com o próprio termo autismo), será muito difícil devolver o doente à sociedade da qual ele próprio ou ela própria se retiraram, restaurando a interface entre diferentes formas de conhecimento, para além do reducionismo e da sobre-especialização.

Palavras-chave

Bleuler, esquizofrenia, autismo, investigação qualitativa.

Title

Seven attempts to bring down the wall of schizophrenia: On Bleuler autism

Abstract

The work of Swiss psychopathologist Eugen Bleuler, who was a contemporary of Freud, integrates organic and psychodynamic aspects, in the field of the psychopathology of schizophrenia. This constitutes a model of qualitative research much more akin to the clinic than the current dominant quantitative approaches which reduce and confine the analysis of these patients to psychometric scales. Without a comprehensive and integrated understanding of the factors determining the genesis and the persistence of ‘the group of schizophrenias’ – schizophrenia being a term coined by Bleuler, along with the very term autism – it will be very hard to bring the patient back to the society from which he himself or she herself withdrew, recovering the interface between different forms of knowledge, beyond reductionism and overspecialization.

Key Words

Bleuler; Schizophrenia; Autism; Qualitative research.