Revista | Vol. 8, N. 1, Dez 2017

Saúde mental, amor e psicanálise: Uma breve reflexão

Na clínica, na investigação e na formação de psicólogos, o foco é muitas vezes colocado no risco, na vulnerabilidade, na patologia e no sofrimento. Tenho frequentemente dado por mim a pensar sobre aquilo que fica quando se tratam os sintomas e se mitiga o sofrimento. E tenho-me questionado sobre, afinal, o que significa ter saúde mental. É certamente mais do que a ausência de sintomas, mais do que uma baixa vulnerabilidade e mais do que um sofrimento reduzido. Saúde mental estará eventualmente ligada a um certo equilíbrio interno e ao processo de desenvolvimento. Diversos modelos teóricos desenvolvimentistas teorizaram aliás, sobre o fim último do desen- volvimento humano normativo e sobre os diversos estádios pelos quais os indivíduos vão passando ao longo do ciclo vital.

De acordo com um critério psicológico de normalidade, saúde mental estaria associada a essa progressão desenvolvimental harmoniosa e a um certo bem-estar (Carvalho-Teixeira, 2010).

Talvez ninguém discorde se eu disser que, no processo psicoterapêutico, tentamos promover o desenvolvimento, que o processo psicoterapêutico consiste mesmo no retomar do processo de desenvolvimento que ficou suspenso (Coimbra de Matos, 2002), logo, que o objectivo do processo é também promover a saúde mental do cliente. Mas o que quer isto dizer de facto? O que queremos exactamente promover no cliente? Resiliência? Pretendemos tornar a pessoa mais resiliente? Em parte sim. É certamente bom ser resiliente, mas sê-lo-á sempre, em todas as ocasiões? Deve a pessoa humana conseguir tolerar sempre a adversidade? Em que grau se deve ser resiliente? Saúde mental é mais do que resiliência, não é assim?

E será que saúde mental tem alguma coisa a ver com ausência de sofrimento, de acordo com um critério funcional de normalidade, digamos assim? Segundo este critério, um dado fenómeno é considerado patológico, a partir do momento em que provoca sofrimento ao próprio indivíduo e (ou) aos outros que lhe estão próximos. Mas na verdade, bem sabemos, pode ser sadio, estar ou ficar doente em algumas circunstâncias, sentir um importante sofrimento até, sem que isso implique ausência de saúde mental. Talvez não seja a ausência de sofrimento que define saúde mental, então, mas a possibilidade de o relativizar. Saúde mental como liberdade existencial e doença como perda dessa liberdade, diria uma existencialista (Dalgalarrondo, 2000; Scharfetter, 2002). Na verdade, sofrimento existe sempre; é inevitável, apesar de o tentar- mos mitigar, mas o indivíduo saudável seria aquele capaz de relativizar esse sofrimento e as limitações inerentes à condição humana. No entanto, porém, talvez não seja bom sermos capazes de relativizar tudo... Ou seja, será que tudo é relativizável?

Em boa verdade, todos nós temos limitações. Importa aceitá-las. Nem sempre isso acontece nos tempos que correm, no entanto. Por vezes assistimos a uma verdadeira negação maníaca, em que muitos querem acreditar que tudo é possível. Algumas frases que encontramos nas redes sociais, por exemplo, transmitem a ideia de que o indivíduo tudo pode, desde que queira muito e, quando algo que quer não acontece, é porque a pessoa não se esforçou o suficiente – seria possível começar sempre de novo, a cada momento. O homem novo ou a mulher nova, sem passado, sem nada que o limite na vida, mas efectivamente, sem futuro também, porque num presente escorregadio, desligado e sem sentido.

Detenho-me ainda um pouco mais por esta zona. Seria então, essa capacidade de relativização que nos tornaria saudáveis, que nos permitira sermos feli- zes, sentir bem-estar; a saúde mental estaria então ligada ao sentimento de bem-estar? Bem-estar psicológico, bem-estar subjectivo, decorrente de uma apreciação que o indivíduo faz sobre si e a sua própria vida. Mas em que grau? Quanto mais melhor? O bem-estar “máximo” é saúde mental, ou uma vez mais, é mania? O maníaco parece sentir-se bem consigo próprio. Mas será feliz? É a mesma coisa? Será possível ser feliz quando se está cheio de si próprio? Não é de estar cheios de nós próprios que precisamos, mas de nos sentirmos preenchidos. Preenchidos pelo social, pelo relacional. Não será isso que nos torna humanos?

E não será que saúde mental é também capacidade de nos adaptarmos? - uma adaptação à frustração, no fundo, àquilo que no social não ocorre como desejamos. As coisas, efectivamente, não são sempre como queremos. Esse pensamento, de que tudo pode ser a nosso jeito, é, na realidade, de carácter profundamente infantil. Mas excesso de adaptação é tóxico; o excesso de norma é mortífero, porque impede a individualidade e suga a capacidade de criar. Porém, a ausência de normas, por outro lado, é também terrificamente desorganizadora – de norma externa, mas sobretudo de norma interna: a lei 

interna é também aquilo que nos define como humanos e nos afasta do animal, do puramente instintivo. Confuso, porém! Porque o pulsional também nos define. A lei da razão, por um lado, portanto, e a lei da pulsão, por outro. Não há volta a dar; há uma necessidade de funcionarmos de acordo com as ambas as leis, de as conciliarmos.

O que também nos define, certamente, é o momento do desenvolvimento em que nos encontramos. A noção de saudável deve ter também em conta os aspectos dinâmicos do desenvolvimento psicossocial e as mudanças típicas dos vários estádios de desenvolvimento. Há claramente comportamentos, pensamentos, desejos e fantasias que podem ser saudáveis numa criança, por exemplo, mas que não o serão numa pessoa mais velha – a saúde mental é, efectivamente, profunda e inequivocamente relativa.

Então saúde mental é adaptação, voltando um pouco atrás, mas será que é também desadaptação? É encaixar, mas é, também, sentir desencaixe; é poder ousar; poder transformar e transformar-se. Será que é também poder e saber apreciar o que de bom nos vai acontecendo? Saber usufruir do que nos é oferecido? Assim sendo, é, num dado sentido, resignação, aceitação. E é certamente, também, poder estar em contacto connosco próprios? Ver o que lá está, poder ver o que lá está. E nem tudo é bom, certamente...

Destaque-se, ainda, a importância do outro, do contacto com outro. Fala-se, aliás, em Psicopatologia de factores protectores como o suporte social. Trata-se então de receber o que outro nos oferece. Mas para receber o que outro nos oferece, é preciso saber aceitar que pode não ser exactamente aquilo que pretendíamos. E é preciso também conseguir aceitar o que nos é oferecido, sem culpa – aceitar a generosidade do outro. Entre a avidez infantil que tudo quer, e a arrogância narcísica que nada precisa e aceita, está a benevolência empática da relação autêntica com o outro, naquilo que cada um tem, pode e quer oferecer. Mas se devemos saber aceitar, se calhar devemos também saber procurar activamente o que nos faz bem.

É preciso procurar e encontrar – o encontro com o outro. Muitos se queixam nos dias de hoje, de não serem amados, mas será que amam verdadeiramente? Será que há verdadeiro encontro? Alguns desenvolvimentistas tentaram organizar as diferentes formas de funcionamento psíquico do ser humano em duas grandes linhas ou configurações: numa delas, o foco está no próprio; na outra, o foco está nos outros; mas mesmo quando o foco está nos outros, isso não significa necessariamente mais saúde mental e melhores relações. Podemos focar-nos nos outros por aquilo que eles nos podem dar, e não pelo gozo da descoberta, da construção e da intimidade, em busca de criar aquilo que alguns autores designam de um nós. Podemos “amar” apenas para sermos amados – quando o outro é um objecto e não um sujeito. Podemos “amar” porque precisamos de alguma coisa. E ocorre-me o poema de Florbela Espanca (1931) “Eu quero amar, amar perdidamente! Amar só por amar: aqui... além... Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente... Amar! Amar! E não amar ninguém!...”.

Não haverá actualmente uma “fé” excessiva no poder da relação? Naquilo que ela passivamente pode trazer? Não será que é hora de dar mais voz ao indivíduo? Ao seu papel activo na busca do que lhe faz sentido e faz bem? No caso da situação psicoterapêutica, a relação é certamente imprescindível para a transformação do indivíduo, disso ninguém duvida; ela é necessária, mas não é suficiente, no entanto. Nesta relação como nas outras relações é preciso considerar o indivíduo e o seu potencial para se ligar ao outro, para beneficiar da própria relação, para co-criar; para construir. Que não haja ilusões, no entanto: uma tendência para construir e, simultaneamente, para destruir, existe em todos; resta saber qual a parte que prevalece; resta tentar promover a parte que constrói. Mas é preciso trazer à luz o que está na sombra, porque algo está, sempre, na sombra! Construir e co-criar num movimento dialéctico e sinérgico que mimetiza o desenvolvimento – eis o processo terapêutico.

Os mecanismos centrais envolvidos no crescimento psicológico poderão ser os mesmos. Em ambas as situações opera uma oscilação entre um relacionamento próximo e um distanciamento / separação e individuação, entre um envolvimento gratificante e uma experiência de incompatibilidade / frustração – será neste jogo dialéctico que ocorre a mudança (Blatt, 2008).

Saúde mental é saber e poder amar o outro e, saber e poder sentir-se amado. É certamente. Mas para amar e ser amado é preciso amar-se a si próprio. Claro que a relação é biunívoca. É preciso sempre uma robustez da identidade.

É preciso um equilíbrio entre uma preocupação consigo e com os outros. Um desenvolvimento humano harmonioso, aliás, e retomo a ideia anterior, implica e ocorre numa tensão dialéctica entre a construção de um self, autónomo, coeso e diferenciado e a promoção e vivência de relações afectivas de empatia, mutualidade e co-construção. Na patologia esta sinergia, este equilíbrio, é perturbado, e um dos movimentos / processos é privilegiado em detrimento do outro (Blatt, 2008). A patologia mental é sempre, na verdade, uma busca de equilíbrio. Equilíbrio que certamente permitirá a capacidade de usufruir do prazer, o entusiasmo, a auto-realização, a autonomia, o sentimento de competência e a capacidade para no relacionarmos com os outros. Saúde mental é isto tudo. Mas é mais, certamente, ou é menos? Será também autenticidade, esperança, sintonia consigo próprio. É curiosidade, fascínio pelo novo, desejo de experimentar, de conhecer, de questionar e de descobrir. É ainda, creio, capacidade de sentir saudade, de poder entristecer-se, porque quem pode sentir saudade também pode amar, e como dizia João dos Santos, quem pode entristecer-se, também pode apaixonar-se.

Será que saúde mental é ainda e, também, empowerment? Em boa verdade, há listas de características associadas à saúde mental que se podem avaliar através de escalas de avaliação como a de Shedler-Westen (Shedler & Westen, 2007); mas a soma de todas essas características num só indivíduo confere-lhe saúde mental? Numa lógica mais ou menos matemática, somando tudo o que é “positivo” e subtraindo tudo o que é “negativo”, o que resulta?

Continuo sem saber bem o que é saúde mental; volto ao princípio da comunicação... Só me resta portanto, antes de terminar, associar livremente e olhar para mim; talvez encontre algo no meu próprio percurso que me ajude. Vejo agora que a concebo enquanto movimento interno; processo de desenvolvimento, sem estádio último; como uma procura; na verdade, como uma certa utopia; como percurso vital; como caminho a percorrer; que usufruamos dele, connosco e com os outros, em encontro florido de intimidade; é também por causa dela que a vida tem cor, não é?

Que as estradas da viagem da vida não tenham demasiadas barreiras; que as que existem possam ser torneadas, por vezes por atalhos, outras pela espera, pela reflexão; afinal podem ser só check points. É preciso parar, recuar, esperar, sorrir, e depois olhar em frente, as pedras do caminho e o horizonte longínquo; avançar, levando na bagagem o que já foi, porque só assim se pode esperar serenamente o que está por vir; na claridade do dia e à luz do luar, que enfeita e oferece as sombras à noite; e sempre, sempre tentando saber quem somos e estar e aproveitar o momento presente.

Ouso dizer que nem sempre a estrada é melhor que a estalagem. Às vezes é preciso ficar na estalagem. Quando a chuva forte cai lá fora, quando o vento sopra sem parar; ficar no silêncio, no interior de nós próprios, apenas connosco. Esperando a tempestade passar; aceitando o que fomos, e sonhando com o que ainda podemos vir a ser. A existência humana é, na sua essência, e na verdade, profundamente solitária. Por mais amor que possamos sentir, por melhor que seja a qualidade das relações que estabelecemos no passado e no presente e, por maiores que sejam as expectativas futuras, por mais rica e saborosa que possa ser a esperança num futuro criativo, digno e rejubilante, o percurso humano é sempre solitário. Quando olhamos para dentro de nós, somos nós! É claro que somos também aquilo que com os outros construímos, somos parte daqueles que connosco partilharam um dia a nossa proximidade, mas no limite, somos únicos, somos nós, somos sós!

Entre a nostalgia e o vazio depressivos e a avidez e o desejo maníacos está o sentimento de plenitude, mas de uma plenitude sempre incompleta, ainda que serena, em busca de algo, em busca de um sentido. Saúde mental talvez seja esse sentido; ou talvez seja apenas a procura desse sentido!

Referências

Blatt, S. J. (2008). Polarities of experience: Relatedness and self-definition in personality development, psychopathology, and the therapeutic process. Washington, DC: American Psychological Association Press.

Carvalho Teixeira, J. (2010). Introdução à psicopatologia geral. Lisboa: ISPA Coimbra de Matos, A. (2002). Psicanálise e psicoterapia psicanalítica. Lisboa: Climepsi.

Dalgalarrondo, P (2000). Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: ArtMed Editora.

Scharfetter, C. (2002). Introdução à psicopatologia geral. Lisboa: Climepsi.

Shedler, J., & Westen, D. (2007). The Shedler-Westen Assessment Procedure (SWAP): Making personality diagnosis clinically meaningful. Journal of Personal- ity Assessment, 89, 41-55.

Resumo

Neste artigo esboça-se uma compreensão do que é a saúde mental e discute-se em torno da sua complexidade e do seu carácter relativo. Contextualiza-se as características inerentes à saúde mental no processo de desenvolvimento humano e num equilíbrio entre uma preocupação consigo e com os outros – numa tensão dialéctica entre a construção de um self autónomo, coeso e diferenciado e a promoção e vivência de relações afectivas de empatia, mutualidade e co-construção. Discute-se também em torno do sofrimento e da importância da relação com o outro, da aceitação do que outro pode proporcionar, mas também da neces- sidade do indivíduo procurar activamente o que lhe faz sentido e faz bem.

Title

Mental health, love and psychoanalysis: a brief thought

Abstract

This article outlines an understanding of what mental health is and discusses its complexity and relative character. The inherent characteristics of mental health are contextualized in the process of human development and in a balance between a concern with oneself and with others, in a dialectical tension between the construction of an autonomous, cohesive and differentiated self and the promotion and experience of affective relations of empathy, mutuality and co-construction. We also discuss about suffering and about the importance of relationship with others, of the acceptance of what others can provide, but also of the indi- vidual’s need to actively look for what makes sense and is well for him / her.

Key Words

Mental health • Love• Human development • Suffering • Interpersonal relation-ship • Identity