Revista | Vol. 10, Dez 2019

Fé, verdade e esperança em psicoterapia: O psicoterapeuta enquanto modelo

Introdução

Agradecemos, desde já, o generoso convite para, enquanto terapeutas psicanalíticos, abordarmos a forma como a nossa mundividência – a nossa visão do mundo, o sistema de crenças, sentires, valores e sonhos que nos constituem – interfere nos processos terapêuticos que estabelecemos com os nossos pacientes, nomeadamente em termos da fé, da verdade e da esperança, o tema central da presente conferência. Pensamos que esta é uma questão crucial a ser pensada, nomeadamente por uma abordagem psicoterapêutica que tem por base a dinâmica transferência-contratransferência.

A fé, verdade e esperança em psicoterapia

Bion postula a mente humana como um aparelho de pensar os pensamentos em contínuo crescimento para O, a realidade última, ou coisa em si definida por Immanuel Kant. O seria, para o autor, o incognoscível, sempre por alcançar, num eterno processo do pensamento e da mente em expansão. De acordo com Bion:

“(..) Se existe uma coisa em si, coisa a que Kant chamaria de númeno, tudo o que podemos saber refere-se a fenómenos, quando os númenos, as coisas em si, avançam pela frente até ao ponto em que encontram um objeto a que chamamos mente humana, aí, então, começa a existir o domínio dos fenómenos. Podemos imaginar, portanto, que, em correspondência a esses fenómenos, que são algo que conhecemos, porque são nós, há a coisa em si, o númeno” (Bion, 1974, pp. 50-51).

Para ele, a ontogénese do pensamento iniciar-se-ia na pré-conceção inata, e expandir-se-ia por intermédio da formação de conceções e de conceitos, caminhando rumo ao pensamento dedutivo científico e ao cálculo algébrico (Bion, 1962a/1991, 1962b/1994). Bion (ibidem) considera a pré-conceção como uma expectativa inata de uma experiência emocional, equiparando-a ao conceito Kantiano de pensamentos vazios. A pré-conceção é, pois, a expectativa de uma relação vincular, integrando o instinto gregário e um processo de mentalização. A união entre uma pré-conceção e uma experiência emocional determina a formação de uma conceção, que, com a continuação da experiência emocional vincular, está na base da formação de conceitos testados pela realidade emocional da vida do sujeito.

As pré-conceções, sendo anteriores à experiência emocional, vão condicionar essa experiência. Para Bion (ibidem), a pré-conceção, enquanto mentalização do instinto gregário, forma-se no aparelho psíquico humano em virtude do grupo interno preceder o grupo externo, correspondendo a um desejo inato biopsicológico de vinculação. No âmbito do processo psicoterapêutico a pré-conceção do paciente está relacionada com as suas experiências emocionais anteriores, sendo um importante elemento a mentalizar.

O psicoterapeuta analítico deve, portanto, estar atento às pré-conceções do paciente e procurar perceber quais as necessidades e os desejos vinculares que elas integram, pois parece-nos que somente assim é possível integrar na psicoterapia uma relação transferencial que possa ser reparadora e, consequentemente, transformadora.

A fé do psicoterapeuta é deste modo, em primeira instância, uma fé no processo, uma fé de que vai ser instalada uma relação potencialmente reparadora. Uma fé em si, no paciente e no processo. É uma fé que permite a formação de uma conceção do processo terapêutico onde a esperança numa nova relação (Matos, 2016) pode ser instalada. Uma relação psicoterapeuta-paciente que viabilize novas relações na vida do paciente, com as figuras cuidadoras, conjugais e fraternas da sua vida.

É uma fé científica, tal como Bion (1970/1991) definiu em “Atenção e interpretação”. Ou seja, uma crença em O, em zero, de que existe uma realidade última, a verdade, o númeno de Kant, inconscientemente por detrás do que conhecemos, os fenómenos, que saturam a mente e a impedem de viver o presente.

É uma fé no desconhecido, que, segundo Bion, aproxima o psicoterapeuta da posição mística e da fé mística, e baseia-se na intuição psicoterapêutica. Uma intuição construída no aqui e agora relacional, no qual a sua função continente (Bion, 1962a/1991) acolhe os conteúdos do paciente e os torna seus, na qual o paciente acolhe o aparelho de pensar do psicoterapeuta e o seu mundo emocional e os torna seus, através da identificação introjetiva (Heimann, 1942).

É uma fé que pressupõe uma disposição ativa para o encontro, a recetividade pré-concecional, mesmo sem conhecer o que vai encontrar, ou melhor, sabendo que o encontro, caso ocorra, vai ser com a verdade, ou com o que for possível conhecer acerca da verdade, um caminho para O; encontrar é, pois, caminhar para O.

Ana é uma jovem universitária que acompanhámos em psicodrama psicanalítico de grupo. Foi-nos encaminhada por uma colega com quem realizava uma psicoterapia individual, devido ao extremo isolamento social decorrente da sua patologia psicótica.

No grupo, Ana começou por transferir a sua inibição social, procurando ter a menor visibilidade possível, e encontrando-se frequentemente ansiosa e demasiado preocupada com o que se passava à sua volta. O seu discurso refletia estas preocupações, também a incapacidade de falar do pai que não via há muitos anos, e as dificuldades de relacionamento com uma mãe simbiótica que era por si idealizada. Ana estava aprisionada, procurando defender-se de um ambiente externo que potencialmente lhe podia ser danoso.

Numa das primeiras dramatizações em que participou como protagonista foi-lhe dado o papel de uma guia turística que estava a viajar com um conjunto de turistas em Lisboa, enquanto lhes dava a conhecer a cidade. Ana revelou-se bastante entusiasmada com a tarefa, tendo mostrado diversos lugares de Lisboa e explicado o que os caracterizava. Pela primeira vez vimos Ana sorrir no grupo e visivelmente satisfeita. Esta dramatização permitiu Ana sentir que, no grupo, podia partilhar os lugares emocionais onde habitava e as suas características, que essa partilha lhe dava a alegria de ser possível vencer os seus fantasmas, que os colegas de grupo estavam interessados em conhecer o que a caracterizava e disponíveis a partilharem essa viagem consigo, e, por fim, que era possível abandonar a sua prisão e viajar pelo mundo, interno e externo.

Ana iniciou nesse momento a sua viagem psicoterapêutica no grupo, tendo começado a abordar os sentimentos de hostilidade face ao controle infantilizador da mãe e à ausência afetiva do pai, enquanto sentimentos que necessitava urgentemente de elaborar, de forma a deixar de ser por eles perseguida, em consequência da sua projeção indiscriminada e não elaborada.

Numa dramatização posterior é solicitado a Ana que escolha que local de uma casa pretende ser e que descreva-se no papel desse local. Ana escolheu a janela tendo-se descrito como uma janela que se encontrava diante de um campo luminoso, repleto de erva e de árvores. Com efeito, Ana conseguia sentir que existia um mundo luminoso e verdejante para além da casa onde se sentia retida, e isso alimentava a fé de que era possível libertar-se dos seus aprisionamentos.

Assim, Ana foi conseguindo frequentar o estabelecimento de ensino onde estudava e, com a ajuda da psicóloga que a acompanhava, começou a tomar a medicação psiquiátrica que necessitava, recusada pela mãe, por imposição da igreja a que pertencia. Ana passou, por conseguinte, a cuidar de si e a atuar a partir da sua verdade e dos factos da realidade.

A atitude de fé trata-se pois de uma atitude científica, e não de uma atitude religiosa. Colocar-se cientificamente em consonância com a verdade, na busca da verdade, qualquer que seja ela, sem saturações dogmáticas que cerram o caminho para O e se tornam numa fuga ao conhecimento (-k).

Essa é, possivelmente, a maior crença do psicoterapeuta, a crença na verdade, a crença que somente o acesso progressivo à verdade, o caminho da verdade, em k, provoca transformação. A crença de que se pode ir acedendo à verdade por intermédio de uma nova relação transformadora. Nova porque se instala com base em modelos vinculares e relacionais inovadores para o paciente, nova no sentido em que psicoterapeuta e paciente conseguem ir tolerando a verdade e ir caminhando juntos nesse caminho construtivo de busca. Nova no sentido em que se vai edificar enquanto novidade em múltiplas áreas da vida do paciente e gera também mudanças no psicoterapeuta.

Cremos, a este respeito, que um processo psicoterapêutico realizado com profundidade no sentido de O gera mudanças no psicoterapeuta, e que essas mudanças, acedendo a novidades acerca de si, são barómetros de estar a caminhar de facto para O, sob a égide do vínculo do conhecimento (k).

A fé do paciente, fé no aparelho de pensar os pensamentos, fé de tolerar a incerteza e as ansiedades catastróficas, fé no sentido do percurso psicoterapêutico, fé no psicoterapeuta enquanto continente contentor e transformador, fé nas suas capacidades e qualidades psíquicas, é uma fé nas qualidades do processo psicoterapêutico, atestada cientificamente pela realidade, logo uma fé científica. Do mesmo modo, a fé do psicoterapeuta, é o principal propulsor da fé do paciente, pois integra a sua capacidade de tolerar as angústias do paciente, o seu terror sem nome (Bion, 1962a/1991), sendo, por isso mesmo, geradora de esperança.

João é um jovem de 17 anos que seguimos semanalmente há cerca de 2 anos e meio, na sequência de uma ingestão medicamentosa grave que o colocou nas portas da desejada morte. No início da psicoterapia, a sua dor era inominável, dada a insuportabilidade de viver, sendo os silêncios longos e perturbantes para o terapeuta, que tanto desejava fomentar-lhe alguma esperança. Foi necessário, pois, percebermos os motivos para tamanha desesperança, pelo que fomos dando gradualmente voz a esta dor que tinha na morte a única forma de apaziguamento.

Com efeito, João foi fruto de uma relação ocasional da mãe com um estrangeiro, tendo conhecido o pai apenas durante a infância, por sua iniciativa. Na altura, criou a expectativa de que este seria o primeiro de posteriores encontros, o que não viria a acontecer. João foi assim crescendo com um pai clivado, ora idealizado, ora desinteressado e ausente, sendo a sua vinculação interna ao pai intermitente e ambígua. Para além disso, João ficou a cargo de uma mãe descrita por si como fria e distante. Uma mãe que, segundo ele, não consegue estabelecer empatia consigo.

Esta orfandade de pais é considerada por João como um destino ao qual não é possível escapar, alimentando-lhe a desesperança que tem dominado a sua vida.

No decurso da sua vida, ainda assim, João teve uma figura parental a quem se vinculou, o padrasto com quem viveu e que é pai do seu irmão. De facto, com este padrasto conseguiu estabelecer um vínculo de empatia e partilha de gostos, como a música e a fotografia. Todavia, este padrasto também se revelou uma pessoa de extremos, aproximando-se e afastando-se sistematicamente de João, bem como uma pessoa agressiva para com a mãe, que agrediu fisicamente por mais de uma ocasião.

Tivemos, pois, de compreender e aceitar a sua incapacidade em se entregar a uma relação de confiança, acreditando que, com o decorrer das sessões, a nossa estabilidade enquanto figura cuidadora emocionalmente presente permitisse que o João fosse gradualmente confiando em nós.

A psicoterapia com o João iniciou assim com a procura de estabelecermos identificações com o nosso paciente, de forma a que lhe fosse possível identificar-se e sentir-se por nós acolhido. A sua paixão por música facilitou esse processo, tendo o João partilhado algumas das suas bandas e músicas preferidas, enquanto nos explicava o sentido que essas músicas tinham para si e observávamos os vídeos das mesmas.

Por intermédio da música começámos a ter acesso ao mundo emocional do João, e, dada a dificuldade em se expressar por palavras, propusemos que o fizesse através de instrumentos musicais, proposta que aceitou com agrado. Durante algumas sessões psicoterapêuticas, João e o psicoterapeuta foram dialogando com o recurso a instrumentos musicais enquanto mediadores relacionais ou, na terminologia de Rojas-Bermúdez (1997), objetos intermediários.

De certo modo, este processo constitui-se como uma regressão ao período da relação dual, etapa da sua vida em que o mundo emocional envolvente começou a desiludi-lo. João não tinha palavras para tamanha dor, mas podia expressá-la através de precursões abruptas que, num primeiro momento, o aliviavam e permitiam-lhe expressar-nos o seu sofrimento. Deste modo, centrando-nos no lugar em que a realidade lhe começou a falhar, o estabelecimento de uma relação de confiança entre o psicoterapeuta-cuidador e o João-criança, ia-lhe sendo possível gradualmente restaurar o verdadeiro self (Winnicott, 1965/1983) há muito perdido e João podia ser ele mesmo.

Estas sessões foram essenciais para o processo terapêutico, que prosseguiu com a procura de tolerar a sua realidade quotidiana: a frieza e a distância afetiva da mãe e o descontrolo emocional do padrasto, que, em inúmeras situações, atuava como um irmão adolescente mais velho, e não como uma figura parental. Ainda assim, João assumiu à mãe que preferia viver com o padrasto com quem se sentia mais próximo, o que foi aceite pela mãe, mas terminou de uma forma abrupta depois de uma agressão do padrasto à atual namorada.

Por não pretender voltar para casa da mãe, João encontra-se atualmente a viver numa instituição de acolhimento residencial. A distância que presentemente tem das figuras parentais da sua vida está a permitir-lhe, coadjuvado pelo trabalho psicoterapêutico e pedopsiquiátrico1, olhar para a sua vida de outra forma: um olhar não apenas centrado nas falhas relacionais, um olhar mais aceitante, dada a gradual internalização dos cuidadores terapêuticos enquanto figuras de amor e contentoras. Em certos momentos, a descrença de João em viver emerge, acompanhada pelas suas ideias suicidas, mas, como nos disse numa sessão psicoterapêutica, pensa nos cuidadores terapêuticos e contém estas suas ideias. João está a aprender a sobreviver e a viver porque se sentiu amado, e isso permite-lhe amar e transmite-lhe a esperança de ser possível vincular-se à vida.

A fé do psicoterapeuta é uma fé também de carácter científico, que se relaciona assim com a ausência de memória, desejo ou compreensão, tal como Bion (1967) preconiza, de modo a centrar a atenção do psicoterapeuta no presente vivido, no encontro das possíveis verdades do momento, afastando-o da saturação dos elementos do passado e das expectativas, também saturantes, do futuro. O ato de fé relaciona-se, neste sentido, com a tolerância ao desconhecido e a busca desse inconsciente, e viabiliza um pensamento progressivamente apreendido no decurso do processo psicoterapêutico. É o encontro empático psicoterapeuta-paciente o seu grande mobilizador.

A este respeito, partilhamos, ainda, uma situação que nos ocorreu no nosso próprio processo psicoterapêutico, numa fase em que movimentos internos de descrença na mudança tendiam a apoderarem-se de nós. Nessa altura do processo psicoterapêutico, a resistência à psicoterapia manifestava-se frequentemente, inviabilizando a transformação e a crença na mudança. Foi então nesse momento, de um modo totalmente inesperado para nós mesmos, que o nosso psicoterapeuta afirmou, de forma absolutamente convicta, que nos iria tratar. A perplexidade inicial logo deu lugar ao pensamento de que a cultura do nosso grupo de trabalho psicoterapêutico era uma cultura de verdade, que o nosso psicoterapeuta tinha um grande apreço pela verdade, logo não se trataria de um falso enunciado ou de uma mentira, tratar-se-ia da sua verdade. Esta verdade, que no momento não alcançámos, intuímos como um convite de um caminho a perfilhar, “restava-nos” pois buscar as nossas capacidades de mudança, descobrirmos novas formas de conter a dor, ao invés de formas de evasão, descobrirmos uma relação terapêutica de confiança o mais autêntica possível, percebermos as reais vantagens dessa relação, dessas relações, através da criação de experiências emocionais que as promovessem; um longo caminho mas um caminho de esperança, percebemos mais tarde, tinha-nos sido proposto.

A esperança, a nosso ver, é fundada numa relação de verdade. Quer isto dizer que somente uma relação terapêutica de verdade pode gerar esperança no paciente. A esperança de que a relação de verdade estabelecida entre psicoterapeuta e paciente vai permitir transformações relacionais fundamentais na vida do paciente. Esperança e verdade caminham assim juntas, lado a lado, no percurso transformativo dos dois membros do par psicoterapêutico, o paciente e o psicoterapeuta. Esperança que se instale, no decurso do encontro psicoterapeuta-paciente, um encontro entre duas pessoas, decorrente do psicoterapeuta se estabelecer enquanto “pessoa que se centra noutra pessoa”, tal como Carl Rogers preconiza (Rogers, 1961/1984).

Num estudo por nós efetuado equacionamos o facto da esperança poder ser encarada uma vitalidade inerente ao sujeito, independente dos factos da realidade que a sustentam (Ribeiro, 2006). Com efeito, tendo em conta os resultados obtidos nesse trabalho, foi-nos possível equacionar que o sentimento de esperança pode não ser fundado na avaliação que o sujeito faz das suas reais capacidades, assentando num desejo messiânico que se projeta para o futuro, tal como Bion (1961/1970) afirmou. Como diz a frase popular “enquanto há vida há esperança”, ou, no dizer de Amaral Dias, “enquanto há esperança há vida” (comunicação pessoal, s. d.).

A este respeito, lembremo-nos do acidente que sofreu o avião fretado por um clube de rugby de Montevideu. Pouco tempo depois do acidente, Marcelo Perez, o capitão da equipa, assumiu a função de líder, organizando o grupo para a construção de uma parede que protegeu os sobreviventes do vento e os salvou. Uma das principais tarefas da sua liderança foi manter viva a esperança do grupo, encontrando sempre explicações para o fato das buscas estarem a demorar, e referindo que a ajuda estaria a chegar e que seriam brevemente resgatados. Isso dava alento ao grupo e mantinha a esperança. Mas quando se confirmou que as buscas tinham sido suspensas e ninguém os iria buscar, Marcelo Perez ficou sem a sua principal ferramenta: A esperança. Sucumbiu e morreu num desprendimento (Oliva, 2006). A esperança parece ser, por conseguinte, uma vitalidade essencial à sobrevivência, que também vitaliza o indivíduo para as suas realizações.

Carla é uma jovem de 17 anos que acompanhamos em psicoterapia individual há cerca de um ano, devido a conflitos frequentes com a mãe, desmotivação para os estudos e sentimentos depressivos recorrentes. No decurso do processo psicoterapêutico, Carla foi-nos revelando os acontecimentos que a tornaram uma pessoa com tendência para se deprimir e desvitalizar.

Carla nasceu seropositiva, tendo sido fruto de pais que, após uma relação conflituosa, se separam durante a sua infância. Ao longo da sua vida, o pai não tratou efetivamente o seu problema de adição, tendo frequentemente recaídas no consumo abusivo de álcool. Nos períodos de maior desorganização emocional, o pai tende também a deixar de tomar os medicamentos que atuam sobre a seropositividade, o que desencadeia em Carla uma zanga que é anulada pela necessidade de o proteger: Carla não se pode zangar com o pai, uma vez que zangando-se poderia ainda fragilizá-lo mais.

Carla foi, assim, crescendo sem figuras parentais cuidadoras. Uma mãe com quem sempre teve uma relação conflituosa e potencialmente agressiva e um pai frágil, que se revelou como um filho com necessidades protetoras e não como um pai de quem pode depender e se autonomizar. Assim sendo, a única forma que Carla teve para se identificar com o pai foi por intermédio das forças hostis de thanathos, associadas ao impulso de morte: A desistência de se proteger, abandonando, também ela, a sua medicação, a desistência de viver, deprimindo-se e desvitalizando-se, desinvestindo da escola e de viver a sua adolescência, anulando a sexualidade e os impulsos libidinais derivados do prazer de viver. Carla foi tendo problemas de saúde que a incapacitaram de frequentar a escola e a fragilizaram, também como forma de ativar nos pais a sua função cuidadora. Recentemente, faleceu o avô paterno, que considera ter sido o seu pai afetivo, luto no qual estão presentes as forças que a vinculam à vida – o reconhecimento da necessidade de afetivamente ser filha dos pais e o esforço que está a fazer nesse sentido – e o instinto de morte – a desesperança e o abandono do lugar de filha, através do reforço da sua função de cuidadora do pai e da conflituosidade com a mãe. Carla tem suficientes motivos para ser dominada pelo impulso de morte, mas, apesar de tudo, denota a vitalidade de quem não quer, ou não pode, desistir e uma esperança que a parece nortear3.

Donald Meltzer e Martha Harris (1990) consideram que a função de promover a esperança está associada ao otimismo como atitude caracterológica, e que a conservação da esperança depende da vitalidade e do sentido de proporção denotados pelos indivíduos que desempenham funções cuidadoras. A esperança do psicoterapeuta parece, assim, ser essencial para se criar uma atmosfera de otimismo que promova no paciente a busca das suas competências relacionais. É uma esperança da sua fé científica, uma esperança no desconhecido, na verdade. Segundo Amaral Dias, uma esperança que se baseia na soma do desejo com o tempo, uma vez que a esperança, sendo um desejo que se prolonga no tempo, alimenta-se da viabilidade dos acontecimentos que se esperam poderem vir a ocorrer (comunicação pessoal, s. d.). Se não houvesse tempo para a realização dos desejos, a esperança acabaria por sucumbir, pelo que é essencial, num processo psicoterapêutico esperançoso, existir tempo para a concretização dos desejos e das mudanças a eles associadas; trata-se, portanto, de um processo moroso.

No decurso deste processo, o psicoterapeuta tem de se afirmar como um místico que revoluciona o establishment do mundo interno do paciente, sendo esta, em consonância com Bion, uma das principais funções do pensar psicanalítico. Enquanto defensor acérrimo da verdade como via, o psicoterapeuta busca a verdade tolerável para o paciente, na medida em que apenas a verdade tolerável pode ser assimilada pelo paciente e tornar-se a sua própria verdade. A verdade tolerável é, assim, edificada numa relação de respeito íntegro pelo paciente, ou seja, de amor, sendo este berço afetivo o pilar do crescimento. Tal como nos diz Bion, citado por Muniz Resende, “verdade sem amor é crueldade, amor sem verdade é ilusão” (Resende, s. d., p. 17).

Idoneidade interna e função psicoterapêutica: o psicoterapeuta enquanto modelo

O par paciente-psicoterapeuta estabelece-se por intermédio de um encontro sincrónico, uma vez que a sua ocorrência viabiliza-se através de um encontro vasto de significados que se relacionam entre si sendo, por conseguinte, uma coincidência significativa, como Jung (1951/2005) definiu. De entre os significados que viabilizam a constituição do par paciente-psicoterapeuta enquanto grupo de trabalho psicoterapêutico, encontram-se os significados que o paciente atribui ao psicoterapeuta, tais como: Modelo de pais desejados e idealizados, função mental de significação dos conteúdos mentais dolorosos (a função alfa de Bion), valores do psicoterapeuta, intuídos ou fantasiados pelo paciente. O psicoterapeuta é, portanto, bastante mais do que uma pessoa, constitui-se para o paciente como uma função mental, um objeto externo mentalizado, internalizado e representado no mundo interno do paciente, tal como salienta Amaral Dias (comunicação pessoal, s. d.).

Enquanto representante de uma função mental, o psicoterapeuta edifica-se como um objeto interno parental, combinando representações maternas e paternas, um objeto interno combinado (Meltzer, 1973/1979) com atributos femininos e masculinos. A representação do psicoterapeuta como objeto maternal e paternal é uma necessidade emocional de um paciente envolvido num processo psicoterapêutico, mas é também uma responsabilidade que o psicoterapeuta deve ter consciente e não descartar, ativando qualquer uma dessas funções sempre que se mostrem relevantes para o processo psicoterapêutico. Somente deste modo o paciente estabelece uma relação reparadora e, portanto, transformadora com este mãe-pai psicoterapêutico.

A mundividência do psicoterapeuta, ou a forma como esta mundividência é apreendida pelo paciente, tem uma significância imensa, porque estes valores e a forma como o paciente sente que o seu psicoterapeuta encara e vê o mundo vão ser internalizados pelo paciente, constituindo barómetros para si mesmo. É, pois, fundamental, o psicoterapeuta agir, também por este motivo, como um verdadeiro self (Winnicott, 1965/1983), com a sua idoneidade interna, com a sua verdade acerca de si mesmo. A verdade passível de ser transmitida, mas sempre uma verdade acerca de si. Esta verdade tem um fundo emocional, permitindo o paciente apreender o afeto que o psicoterapeuta lhe nutre e, ao mesmo tempo, estrutura-se em torno de funções emocionais fulcrais em qualquer cuidador, as funções emocionais introjetivas de gerar amor, pensar, conter a dor depressiva e promover a esperança que Donald Meltzer e Martha Harris (1990) descreveram.

Assim, enquanto elo de ligação entre o mundo interno do paciente, a reatualização da sua história de vida e a realidade social, o psicoterapeuta assume um papel (Moreno, 1946/2002) que inclui múltiplas representações e funções, com o intuito de se liberar a espontaneidade e a criatividade da pessoa que tem sob o seu cuidado, e libertá-la das suas pré-conceções aprisionadoras (ibidem).

De acordo com Moreno (ibidem), no centro do processo psicoterapêutico, individual e grupal, encontra-se, também, o conceito de encontro, que considera uma comunicação de tele que se estabelece entre os indivíduos. O encontro vive no “aqui e agora”, e vai para além da empatia e da transferência, na medida em que é responsável pela formação de um “nós” (Osório e col., 1989; Osório, 2000). É este ato poético, este encontro poético entre o paciente e o psicoterapeuta, que integra um sentido emocional para cada momento do processo psicoterapêutico, e permite a transcendência transformativa da psicoterapia.

Terminamos com um poema, a nosso ver revelador do potencial encontro poético entre o paciente e o psicoterapeuta:

Um poema
Cresce inseguramente
Na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
Talvez como sangue
Ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
Ou os bagos de uva de onde nascem
As raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
Do nosso amor,
Rios, a grande paz exterior das coisas,
Folhas dormindo o silêncio
A hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
Invade as casas deitadas nas noites
E as luzes e as trevas em volta da mesa
E a força sustida das coisas
E a redonda e livre harmonia do mundo.
Em baixo o instrumento perplexo ignora
A espinha do mistério
- E o poema faz-se contra a carne e o tempo.

                              (Herberto Helder)

Referências

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Title

Faith, Truth and Hope in Psychotherapy: The Psychotherapist as a Model

Abstract

In the present work we approach how faith, truth and hope can be built up in the course of the psychotherapist-patient relationship, and thus become central elements of the psychotherapeutic process. For this, we reflect on how different authors conceptualize faith, truth and hope, as propellers of transformation. We also approach our own psychotherapeutic experience, as a psychotherapist and as a patient, to reflect on the impact of these concepts on the therapeutic process. In addition, we reflect on the mental functions of the role of psychotherapist, as a model for the patient.

Key Words: Faith; Truth; Hope; Psychotherapy.

Notas de rodapé

1 Conferência que integrou o 1º Ciclo de Conferências da Poiesis Analitika - Associação Portuguesa de Psicoterapia Psicanalítica de Casal e Família, proferida a 22 de Março de 2019

2 João é acompanhado regularmente em consulta de pedopsiquiatria pela Dra. Maria Moura, pedopsiquiatra e coordenadora da Equipa de Pedopsiquiatria da Unidade Autónoma de Psiquiatria do Hospital de Vila Franca de Xira

3 Agradecemos à Dra. Manuela Porto, psicóloga, psicoterapeuta psicanalítica de casal e família e presidente da Poiesis Analitika, a supervisão que realizou aos casos clínicos que denominámos de João e Ana.
Agradecemos ainda ao Dr. João Beirão, pedopsiquiatra, psicanalista da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e Chefe de Equipa da Consulta de Pedopsiquiatria do Centro Hospitalar de Lisboa Central - Hospital Dona Estefânia, a supervisão efetuada ao caso clínico que nomeámos de João.


Resumo

No presente trabalho aborda-se a forma como a fé, a verdade e a esperança se podem edificar no decurso da relação psicoterapeuta-paciente, e assim tornarem-se elementos fulcrais do processo psicoterapêutico. Com esse fim, reflete-se acerca do modo como diferentes autores conceptualizam a fé, a verdade e a esperança enquanto propulsores de transformação. Aborda-se, ainda, a nossa própria experiência psicoterapêutica, de psicoterapeuta e de paciente, para se refletir sobre o impacto destes conceitos no processo terapêutico. Para além disso, procura-se refletir a respeito das funções mentais do papel de psicoterapeuta enquanto modelo para o seu paciente.

Palavras-chave

Fé; Verdade; Esperança; Psicoterapia.