Revista | Vol. 10, Dez 2019

Experiência emocional e processo transformacional em psicoterapia analítica

Experiência emocional

A experiência emocional é a base do nosso funcionamento humano, permitindo a sua transformação (Bion, 1991) ensaiar e desenvolver sentidos e significações para as sensações e os sentimentos primordiais que existam dispersamente no sujeito.

Etimologicamente, «experiência deriva do latim experientia, derivado de experiri “tentar”, “ensaiar”, “experimentar”. É uma forma de conhecimento e uma sabedoria. Emoção provém do latim emotionem, “movimento, comoção, ato de mover”». Assim, a experiência emocional remete-nos para o movimento e para a tentativa e o ensaio na busca da comoção, do que nos acende a esperança e o sentido, do encontro transformativo que nos faz verdadeiramente humanos.

A experiência emocional é, no entender de Bion (1966b), um elemento essencial no desenvolvimento humano e através dela pode-se dar um verdadeiro desenvolvimento da personalidade. Se «a falha no comer, no beber e no respirar adequadamente apresenta consequências desastrosas para a vida, o malogro no uso da experiência emocional ocasiona uma catástrofe semelhante no desenvolvimento da personalidade» (Bion, 1966b, p. 59)

No entanto, Bion (1966b, p. 59) considera que a experiência emocional «não se pode conceber (…) isolada de uma relação», pois a experiência emocional constitui-se como um elemento Beta (como coisa em si indecifrável), inapropriado para ser sonhado e desta forma metabolizado como pensamento e depois como memória.

A experiência emocional expressa-se através da protosensorialidade e das proto-emoções (Ferro, 2015a, 2015b, 2017) que esperam/“anseiam” transformação (Bion, 1991) e sentido integrativo para o que se encontra disperso na ação (corporal e/ou verbal).

Marra (2016, p. 4) considera que a «experiência emocional é um invariante nas teorias psicanalíticas, mas em Bion é conceito central e organizador do desenvolvimento humano», ou seja, é partindo da experiência emocional e da sua transformação em conteúdos narrativos, míticos e oníricos (Bion, 1991) diurnos e noturnos que o sujeito se vai humanizando e se tornando único no seu jeito e nas suas formas de expressão e de relação.

Esta humanização do sujeito, ou seja, esta sua construção como ser único envolve processos continuados de significação que têm na base a relação estreita e assimétrica com as figuras cuidadoras, desde o início da existência (pré-natal), envolvendo uma comunicação dual (bioquímica, fantasmática e relacional) que vai entretecendo sentidos e sentimentos primordiais (Damásio, 2010) numa área de encontro e de transformação (Pinto, 2016), dando origem ao emergir de um Eu nuclear, a partir do proto Eu, que levará, quando bem-sucedido, à construção do Eu autobiográfico através da expansão crescente de ligações neurais (com sede original no tronco cerebral) e de interações que se (co) constroem entre si. A construção do Eu faz-se, no entender de Damásio (2010, p. 41-42), por passos:

«(…) o primeiro passo é a criação de sentimentos primordiais, os sentimentos elementares da existência que surgem espontaneamente a partir do proto-eu. Segue-se o eu nuclear. Este tem a ver com a ação, especificamente com as relações entre o organismo e o objeto. O eu nuclear desenvolve-se numa sequência de imagens que descrevem um objeto a interagir como proto-eu e a modificá-lo incluindo os sentimentos primordiais. Por fim temos o eu autobiográfico. O eu é aí definido em termos de conhecimento biográfico ligado ao passado bem como ao futuro antecipado».

Por seu lado, Ferro (2017) considera que o elemento fundamental para a transformação da proto-sensoralidade e das proto-emoções seria a rêverie1, onde o pictograma emergente daria lugar, depois de elaborado em narração, à expansão da mente, (co) construída na relação. «Rêverie é o conceito chave que destaca e ilumina a relação de objeto ao mesmo tempo em que é o nome de um verdadeiro mistério e um desafio à nossa compreensão» (Lisondo, 2010, p. 68).

A inexistência duma relação tendente ao conhecimento e a não transformação da proto-sensorialidade e das proto-emoções remete o sujeito para uma paleta de defesas que o protejam das ameaças e salvaguardem na sua integridade pessoal ameaçada (Pinto, 2013; Pinto & Queirós, 2013), impedindo um auto conhecimento mais profícuo, profundo e integrado de si, sediando no corpo o seu modo expressivo (somatizando, agindo e/ou deprimindo).

A motilidade ou o corpo expressivo

O corpo e a ação motora são elementos primordiais do ser humano, pois assumem-se como elementos expressivos acerca de si, do seu sentir, acerca do que o rodeia e que: 1) ainda não integra como narração2, ou 2) como elemento de síntese duma integração mental dos conteúdos dispersos ao nível sensório motor. Os primeiros apresentam-se como sinalizadores das angústias sentidas face às ameaças (internas e/ou externas), sejam elas um desconforto interno, uma altercação entre os pais ou uma não resposta reiterada às suas necessidades. Qualquer delas pode remeter o sujeito para uma resposta corporal onde a dispersão parece apresentar o nível de não integração3.

A não integração parece mobilizar defesas precoces que, ao serem colocadas no campo relacional, podem aparecer mais ou menos bizarras aos olhos dos outros e tremendamente ameaçadoras para a integridade do eu do sujeito. A omnipotência que esconde a brutal vulnerabilidade, a negação que impede a construção do eu a montante, a clivagem que impermeabiliza o acesso ao Eu total ou a hipérbole «em que o afeto é expelido violentamente e perdido “no espaço”» (Ferro, 2017, p. 43) podem revelar-se como escapatórias duma ausência contentora e transformadora das experiências emocionais, num lugar interno onde o indivíduo sozinho ainda não existe (Winnicott, 1983).

Os arranjos deste Eu em risco de constituição, impelem o sujeito para uma deriva que o afasta de si e dos outros, pois as suas tentativas de busca de transformação tornam-se elas mesmas distantes duma acessibilidade comunicacional, obrigando o interlocutor a perscrutar a identificação projetiva muitas vezes massiva do indivíduo, fazendo uso, quer da transferência dos conteúdos distorcidos quer da sua própria contratransferência, ao eco dos conteúdos na sua mente e ao modo como esse conjunto de impressões se pode transformar em narração, capaz de dar sentido ao que foi expelido e até aí nunca transformado na mente do sujeito. Este trabalho de filigrana obriga a uma capacidade de rêverie4 dos conteúdos expelidos, que podem mesmo já não esperar qualquer transformação, deixando o sujeito entregue a uma dispersão dos limites do Eu mais ou menos evidente na desintegração dos conteúdos comunicados e no acting, onde a motilidade se assume como um pesadelo repetitivo do seu sofrimento.

A motilidade e a construção do eu

O conceito de limite e a construção do dentro/fora, do que separa sujeito e objeto é uma construção paulatina, onde o encontro diádico assume um papel determinante na constituição do Eu. O conceito de limite pode ser entendido numa perspetiva individual e noutra familiar. Percebemos, por isso, que o conceito tem contextos diversos e que, segundo eles, ganha significações e sentidos mais ou menos profícuos.

O conceito de limite individual propõe-nos uma deriva pela construção dos limites do eu e das suas funções incontornáveis na construção da moral (Freud, 1923/1989) e da ação que cada sujeito imprime sobre si ou sobre o real circundante.

Os limites do eu constroem-se, a par e passo, na relação diádica com a figura cuidadora que contém e dá sentidos aos seus comportamentos. Se no início a pulsão, entidade de fronteira entre o físico e o mental (Green, 2008), governa o sujeito e o seu comportamento se orienta para a descarga dos acúmulos de energia (Freud, 1911/1989) e para a procura de tudo o que dá prazer e/ ou diminui o desprazer, percebe-se também que as figuras cuidadoras, ao darem significação e sentido aos seus comportamentos, permitem que este vá construindo um significado acerca de si e do mundo e vá substituindo este processo primitivo de descarga por outra modalidade onde a relação e o significado ganham forma, onde o não da interdição permite o sim da exploração regrada e contida no/do contexto.

No conceito de limite familiar, a moral (o bem e o mal) e a regra ganham então contorno e substância, por via duma função executiva parental, que ajuda a criança a construir um sentimento de referência e de pertença (Minuchin, 1979). Os limites familiares mais não são que regras com permissões, interdições e sentidos de ação que balizam a descoberta da criança. Os limites claros protegem e ajudam a transformar a impulsividade grotesca que perturba bebé/criança e que invade a relação com os outros. Pretendo dizer com isto que a impulsividade, salvo aspetos ligados a doença constitucionais (por ex. doenças autossómicas), revela desencontro, descuido, negligência ou impreparação na função executiva parental, isto é, incapacidade para conter e transformar as experiências emocionais em conteúdos capazes de ser sonhados, narrados e/ou transformados em conteúdos míticos passíveis de alfabetização (Ferro, 2009, 2015b, 2017; Dias, 2010; Pinto, 2016) e de expansão mental. Este desencontro parece ter na base a não coincidência entre a culpabilidade e o jogo do desejo/não desejo pelo bebé imaginado e a aceitação do bebé real que nem sempre coincidem ou a “inabilidade parental” para a sua função contentora e transformativa das experiências emocionais do/bebé/da criança. Este desencontro diádico perturba a regra e a função executiva e pode deixar e/ou devolver a criança à impulsividade sem limite ou até mesmo ao jogo fantasmático transgeracional (Eiguer, 2005), onde a delegação de papéis tem como moeda de troca uma maior indulgência da regra, vista muitas vezes na repreensão com um sorriso na boca, num deixa andar abandonante, ou mesmo num punir sem sentido por parte das figuras cuidadoras, por incapacidade de compreender e transformar a angústia colocada em ação na motilidade. Essa comunicação paradoxal deixa a criança entregue a si, quando a sua necessidade solicitava a transformação pela significação dos conteúdos agidos. O meio ambiente necessitava de clareza no estabelecimento das permissões e dos interditos sem comprometer a autonomia e a individualidade de quem está a desenvolver-se e a conquistar competências.

A autonomia e a individualidade

A criança em desenvolvimento conta, desde o período fetal, com uma autonomia (Rosa, 2010; Sá, 2010) que se manifesta nesta fase em ritmos próprios e diferentes da mãe. A autonomia na vida extrauterina adequa-se, passo a passo, à maturação orgânica e à qualidade da relação diádica estabelecida. Uma criança de 12 meses não pode ser um maratonista, mas pode revelar a sua autonomia no desejo de explorar, na procura do novo que vislumbra e até nos desafios e riscos a que se propõe na sua busca de sentidos para si e para o mundo que a rodeia, tendo por base o porto seguro do cuidador. A tarefa essencial da família é, então dúplice: 1) conter e transformar as experiências emocionais, permitindo que estas se organizem como memória (afetiva, cognitiva e relacional) e 2) mediar esta tendência afirmativa da criança que procura a confirmação dos outros com limites claros, com rigor e com bondade.

Assim, a família desempenha uma dupla função:

1. Limita a impulsividade da criança na sua demanda exploratória,

2. Atribui significado aos comportamentos da criança.

A clareza da função parental limita e transforma a impulsividade ao transformar e dar sentido aos ímpetos da criança. Esta função introduz limites à criança, contrapondo segurança e significação. Se, por exemplo, a criança brinca e depois arruma os seus brinquedos, esta atividade tem implícita uma função parental, seja esta por intervenção direta seja pela existência de um ambiente organizado. Numa ou noutra leitura existe claramente esta função parental que sonha, orienta e dá sentido e ordem, que introduz significação na experiência emocional - como elemento central de ordenação –, balizando e transformando a área de funcionalidade da criança. Ao estabelecer sentidos, reforça a sua área de liberdade autonómica ou, no outro dizer, ao dar-lhe sentido para as suas experiências emocionais dá-lhe a oportunidade dela poder sentir-se capaz de inovar e ensaiar, num movimento confirmatório crescente de si e das suas competências, tendo como pano de fundo figuras parentais capazes de conter e transformar as angústias e ameaças emergentes que possam comprometer o processo expansivo do Eu (consciente e inconsciente).

A experiência emocional apela por uma rêverie capaz de sonhar, momento a momento, a identificação projetiva do sujeito, acolhendo-a e transformando-a no seu sentido mais primordial e profundo. Os movimentos de transferência/contratransferência tornam-se indissociáveis no processo de transformação e significação como elemento compreensivo da concordância ou dissonância da fala (verbal, corporal, fantasmática).

Ilustrações clínicas

Ilustração 1

Bernardo5 tinha tinha 5 anos e foi enviado pelo médico de família para opinar acerca duma hiperatividade da criança. Marquei hora para o atender e, enquanto terminava a consulta anterior, a criança chega com os pais, antes da hora marcada. O silêncio que reinava deu lugar a um reboliço que lembrava um dia de ventania outonal. Nada parava. A voz dos pais alternava entre a autoridade e o desespero. De repente, o silêncio voltou. Soube mais tarde que fora o pai que o levara para a rua.

Ao entrar na sala, a criança observa tudo avidamente e o pai, qual ave agoirenta, debruçava-se sobre ele dizendo “está quedo, está quedo…” enquanto a criança tentava escapar-se daquela ave de mau agoiro. Sentia-se a tensão e o embaraço no ar. Bernardo fazia um crescendo de exigências e estava cada vez mais “senhor da situação”. A mãe dizia impotente e de braços caídos: “É sempre assim, é sempre assim”. Exige bolachas e, com protestos infrutíferos da mãe, volta a “ganhar”. O ar triunfal salta-lhe do rosto brilhante. De repente descobre a minha mochila e tenta vasculhá-la. Digo-lhe que aquilo é meu e que ele não pode mexer. “Ai mexo, mexo!….”, diz convicto. Volto a dizer-lhe em tom pausado que ele não pode mexer. Num impulso tira uma lapiseira que estava na bolsa lateral. Digo-lhe que volte a pô-lo lá. Desata a correr para uma extremidade da sala e começa a ameaçar-me com o arremesso da lapiseira. Mantenho o olhar orientado para ele. O tempo vai passando e, entretanto, começa a alternar desafio e desistência. De repente poisa a lapiseira no chão e observa-me. Fica hesitante, mas receosamente traz a lapiseira e eu ao recebê-la digo-lhe: “Esta que está aqui também queria passear, pois ficou com ciúmes, tu queres levá-la a passear?!”. Ele sorri e aceita o convite. Começa a falar comigo, deixando o desafio e tornando-se afável na relação. Brinca comigo ao “passeio das canetas”, revelando-se mais curioso com o que estava na sala. Depois procura o cesto dos brinquedos e começa a brincar sozinho com carros e bonecos numa espécie de reprodução da cena anteriormente vivida. No fim da consulta a criança pergunta-me alegremente quando vinha cá brincar outra vez.

A ilustração 1 coloca à partida uma questão acerca da experiência emocional e do seu destino. Como se poderia trabalhar a impulsividade desta criança e a impotência parental expressa no “é sempre assim, é sempre assim” e na ave de mau agoiro do pai “está quedo, está quedo...”. A criança era fruto desta impotência dupla da função parental. A ausência de contenção e de transformação da impulsividade deixou-a entregue a ela mesma, abandonada aos seus medos e às suas angústias reveladas na sessão após o desafio. A hiperatividade após contenção e transformação em jogo (Ferro, 2017) abriram o campo a uma criança cooperante, capaz de aderir ao jogo, ao símbolo. O sonho de ser satisfeito na sua necessidade – ser acolhido – transformou a criança, podendo com os mesmos elementos, iniciar um jogo simbólico onde antes só estava impulsividade, desafio e desalinho. Os pais “pré-ocupavam-se” com o filho mal comportado, mas não discerniam a sua necessidade nem transformavam e davam sentido à sua experiência emocional, à sua motilidade desafiadora. Como refere Ferro (2017), a capacidade negativa pode assumir-se como um percursor da rêverie que permitiu interpor jogo no caos existente, depois de conter e transformar o híper-conteúdo sem qualquer continente, presente na motilidade defensiva da criança, que parecia esconder uma ameaça de desintegração do eu.

Ao introduzirmos a função contentora e a transformação em jogo à impulsividade da criança, construímos um espaço claro onde a criança pôde ensaiar-se e ser, isto é, (co)construímos sentidos onde anteriormente predominava a experiência emocional, dando lugar à notação e, deste modo, a outra modalidade de relação mais criativa e menos desafiadora. O reconhecimento, pela rêverie terapêutica, tornou possível a atividade simbólica onde o jogo desvelou a criatividade da criança e até a sua autonomia – brincar sozinho na presença dos restantes –, tendo esta modalidade de relação dado lugar à descoberta, sem desafio e ameaça da e para a criança.

A para-excitação de Bernardo foi determinante para que ele pudesse ser criativo e deixasse um deambular incerto, perdido e ávido que antes revelara. A capacidade negativa (Ferro, 2017) do terapeuta foi o elemento base capaz de suster o dia de vendaval, de introduzir a capacidade de rêverie facilitadora da instalação duma área simbólica de comunicação, de recolocar em marcha o Eu nuclear (Damásio, 2010) em expansão e a caminho de um Eu autobiográfico (idem).

Ilustração 2

Maria vive numa relação há anos e descreve-a como um lugar seguro e de partilha onde se pressente um movimento simbiótico do casal. Quando a dúvida se instala, aparece o controlo e o temor acerca do paradeiro do companheiro. O temor de poder não ter um lugar, dentro dele, para ela emerge e transtorna-a. O nascimento duma filha desenlaça o temor. Teme poder fazer mal à filha e estar a enlouquecer e recorre à psicoterapia. O não lugar materno começa a desenhar-se, revelando uma pessoa insegura e sem lugar seguro. A relação com a mãe é muito atribulada, atualmente, por esta ser muito pouco controlada nos negócios e isso ter consequências familiares. O aleatório e o temor de desamparo associados revelam-se o padrão de relação “esperado” na relação com a mãe e agora vertidos na relação com o companheiro.

Emerge, então, o desamparo que sempre sentiu e que foi empurrando com uma hiperocupação desportiva durante a infância e a adolescência.

A perturbação no casal, a desconfiança de ser trocada e abandonada, a par do surgimento de um bebé tornaram o não lugar como uma situação sem escapatória que descompensa Maria.

A contenção e a transformação dos seus conteúdos incontidos (Ferro, 2017) em memórias significativas permitem uma expansão e abertura da mente desta paciente. Onde chegou a reinar um sentimento de caos e de catástrofe foram-se instalando sentidos novos para a experiência emocional da maternidade. A sua filiação contida e transformada permitiu uma maternidade mais envolvida e gratificante. A capacidade negativa do terapeuta e a rêverie que facilitou integrar as falas e as suas décalages possibilitou harmonizar inconsciente e ação na vigília numa crescente harmonização. A transformação e a significação (co)construída na psicoterapia vão permitindo repensar e restaurar uma área de confiança profundamente abalada na relação de casal que, por sua vez, era já uma situação compensatória na vida desta mulher.

Ilustração 3

Gustavo é um jovem adulto que vem para psicoterapia por ter grandes dificuldades de relação com o outro. Tem formação superior e é um homem cuidado. Da sua história ressaltam problemas ao nascer com uma intervenção cirúrgica que levou a um afastamento da relação direta com a mãe durante vários dias. Entre eles existe uma relação tensa onde, com frequência, existem atritos e discussões. Quando chegou à consulta sentia-se perdido e incapaz de se dar a/com alguém, questionando-se mesmo sobre “o que é isso de me dar”. No processo psicoterapêutico foi falando das suas dúvidas e das suas zangas e ressentimentos com tudo e com todos. A sedução inicial no contacto, rapidamente evoluía para alguns episódios de raiva sempre que a proximidade aumentava.

A certa altura foi ficando claro que ele na sua “loucura privada” (Green, 1999, 2008) mantinha uma masturbação compulsiva que chegava a acontecer, no dizer do próprio, quatro a cinco vezes por dia.

Recentemente, liga-me muito choroso porque lhe doía muito o mal que fazia às pessoas de quem gosta e me diz que vomitou após ter comido perca porque não conseguia digeri-la. No dia seguinte, na consulta, entrega-me um texto por si escrito que ele intitula de “Relação masturbação compulsiva/julgamento”, onde relata:

«Sinto que descobri a origem destes dois problemas e sinto que estão interligados. Porque julgo eu as pessoas que amo? A pior época da minha vida foi no liceu. Os meus pais estiveram para se separar e todos os dias lidava com isto: Uma turma horrível, poucos ou nenhuns amigos, a minha mãe longe, o meu irmão longe, e o meu pai todos os dias a desabafar a sua frustração. Por um lado desabafava com um amigo que eu não suporto, por outro lado falava sempre o mesmo “as mulheres são todas umas p…”, “não confies em ninguém”, “vais-te magoar com isso”, “ a sociedade é uma merda”, etc…

Custava-me muito passar por aquilo, mas vendo hoje as coisas, o que me custava mais era estar sozinho em tudo aquilo. Não ter ninguém com quem desabafar, com quem partilhar. Não ter ninguém que me ajudasse, que me apoiasse, mas também e acima de tudo, que me amasse como amigo, e não só. É uma fase crucial na vida na qual criamos relações mais íntimas. E eu não tive, NADA!!!

Por outro lado, as garotas interessavam-se por quem não merecia. Tipos que não queriam saber delas, enquanto eu estava ali, desamparado. Lembro-me que foi na idade adulta que comecei a masturbar-me compulsivamente, precisamente para tapar isso. Esse desamparo, essa dor, essa solidão, essa tristeza, esse abandono.

Agora entendo que, quando sinto isso, me toco compulsivamente. Foi uma forma que criei para combater esse sentimento. A falta de amor alheio, a rejeição das mulheres, o sentir-me indesejado até pela minha mãe, levava a fazê-lo. Era uma forma de aliviar essa solidão e esse abandono.

Por outro lado, o julgamento, a vulgarização e a rejeição das mulheres que amo. Dando o exemplo da minha namorada atual. Ela perdeu a virgindade com 19 anos com um tipo mais velho, que ela sabia que namorava, que não queria saber dela para nada.

No mesmo período, eu sentia a solidão e o desamparo, isto já na Faculdade.

Por outro lado lembro-me da minha primeira namorada que até perdeu a virgindade comigo. Ela namorou aos 16/17 anos com um tipo que era um idiota que, com a mesma idade que ela, ainda andava no 10º ano.

Durante esse período eu fui infeliz, enquanto que as duas mulheres que amo/amei se envolveram com tipos que não as mereciam. No fundo eu precisava mais delas nessa altura que esses gajos. E porque merda é que só apareceram depois na minha vida? Quando eu já estou bem é que aparecem? Quando eu estava na merda cagaram para mim e meteram-se com gajos vulgares. Eu sei o que valho, o que sou, e nessa altura não me apoiaram, preferiram esses f.d.p. o que vêm fazer agora aqui??! Dizer que me amam quando na altura em que mais precisava nem se lembraram de mim??? Vão-se f_der suas cabras!!! Agora não preciso de vocês para nada!!!

Até com a outra com quem andei enrolado isso aconteceu, mas em menor escala. Primeiro porque não gostei assim tanto dela. Depois senti esse abandono numa outra altura da vida, menos difícil. Foi na altura em que estive quase dois anos (2012-2013) sem me envolver com ninguém.

Por fim o meu envolvimento com a Maria. Ela foi abusada quando criança por um primo. Foi uma menina que criou traumas em relação ao homem. É verdade que é lésbica mas já o era antes. Decidiu usar o seu medo para o bem, ou seja, protegendo as crianças dos violadores. Pode adorar crianças pelas razões menos ortodoxas, mas adora e eu continuo a adorá-la por isso. É uma pessoa que sei que não gosta de mim como eu gostaria pelas razões já mencionadas. Mas sei que gosta de mim e quer que eu seja feliz. E eu, no fundo, desejo o mesmo para ela.

Concluindo, sinto que foi o grande amor da minha vida e nunca vou deixar de gostar dela.

Acho que compreendi os medos dela, o pensamento dela, tolero isso. E na minha opinião: ELA PRECISOU DE MAIS AJUDA QUE EU NA PIOR FASE DA VIDA DELA. Eu ajudei-a embora fora de tempo, e estou feliz por isso» (documento entregue na sessão de 29/04/17).

Na sessão relata uma discussão com a sua namorada ausente no estrangeiro, onde a acusa e chega a insultar, temendo depois tê-la perdido com o que lhe disse. Segue-se então o episódio do vómito “da perca não digerida”. Relata ter sentido uma acalmia depois de ter escrito o documento e desde aí não mais ter tido necessidade de se tocar.

O documento do paciente e a narrativa da sessão desnudam a experiência emocional do paciente, onde os seus conteúdos nunca puderam ser contidos e transformados por uma figura cuidadora, pois como ele relata «Custava-me muito passar por aquilo, mas vendo hoje as coisas, o que me custava mais era estar sozinho em tudo aquilo. Não ter ninguém com quem desabafar, com quem partilhar. Não ter ninguém que me ajudasse, que me apoiasse, mas também e acima de tudo, que me amasse como amigo, e não só. É uma fase crucial na vida na qual criamos relações mais íntimas. E eu não tive, NADA!!!». O desentendimento dos pais parece reinstalar um sentimento de desamor (materno) e de toxicidade (paterna) que o deixam num campo estranho, disperso onde só o retorno ao corpo e ao uso defensivo da omnipotência que o protegia da vulnerabilidade, dispensando o outro, por via do seu autoerotismo, da sua “loucura privada” (Green, 1990, 2008), que lhe permitia, por um lado suportar, desprezando a necessidade do outro, e dar-lhe um sentido de controlo do que sentia fora de qualquer alçada.

A psicoterapia consegue ajudá-lo a abrir-se ao outro, mas o despeito, o desprezo e o ressentimento que sentia com o feminino, com os equivalentes maternos, faziam-no compulsivamente destruir tudo aquilo que amava (Bion, 1991b), exceto quando se identificava na dor.

O processo psicoterapêutico promoveu a abertura e a possibilidade de um processo de notação onde ainda predominam as experiências emocionais. Ao ser interpretada a não “digeribilidade da perca” ou a perspetiva de perda da relação, sossegou o paciente e fê-lo associar que «o passado acaba por massacrar-me o presente e eu castigo as mulheres pelas falhas anteriores de outros».

A introdução desta temporalidade parece ter rompido a impermeabilidade enquistada da zanga, do ressentimento e do acerto de contas pelo abandono sentido. Restaurar a (intra e inter) história pode ter um alcance expansivo na mente do paciente e fazer aproximar as falas do corpo que nega a perca, da relação que nega a dor e do inconsciente que nega o abandono materno forçado ao nascer. No aqui e agora, o paciente poderá ir entretecendo a zanga e o ressentimento derivado do abandono na relação terapêutica, onde a capacidade negativa e a rêverie poderão ir dando sentido a uma história amalgamada no corpo e nos atos.

Conclusões

Podemos concluir que as falas do corpo e a sua desarmonia, devida às falhas na função continente, parecem ter como consequência paletas diversas de expressões como a hiperatividade, a depressão puerperal ou mesmo a masturbação ou os actings destrutivos na relação com o outro. As falhas nas funções cuidadoras parecem amalgamar a dimensão histórica do sujeito, confundindo-se passado e presente e hipotecando-se o futuro numa compulsividade sem transformação a menos que, por via do trabalho psicoterapêutico, se possa transformar as experiências emocionais em jogo, como na primeira ilustração, em conteúdo narrativo e onírico (diurno e noturno) como aconteceu nas ilustrações restantes.

A expansão da mente apela a uma função continente onde a transferência/ contratransferência se apresentam inseparáveis, possibilitando novos sentidos e significações para as experiências emocionais (coisas em si) necessitadas de encontro e de transformação.

 

Referências

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Nota de rodapé

1 A simbolização e o trabalho do sonho permitem a memória. Graças ao sonho, é possível criar os pictogramas que permitem dar figurabilidade e metabolizar as experiências emocionais (Lisondo, 2010, p. 68).

2 Antonino Ferro considera que, em contexto psicoterapêutico, a «narração nasce como a soma ou produto de vários sonhos (rêveries) que emergem das sessões» (Ferro, 2015b, p.7) e que possibilita no après-coups «o reabitar o mundo interno e até mesmo a história, transformando-a a posteriori». (Ferro, A. 2009, p. 91).

3 Winnicott (1983, p. 80) considera que «a maturidade completa do indivíduo não é possível no ambiente social imaturo ou doente».

4 Antonino Ferro considera «a atividade de rêverie na sessão (ou seja, o aflorar de imagens na mente do analista ligadas ao que acontece na relação analítica), como facto central e essencial do desenvolvimento da análise» (Ferro, 2009, p.90).

5 Todos os nomes apresentados no texto são fictícios.

Resumo

A experiência emocional é a base do nosso funcionamento humano, permitindo a sua transformação ensaiar e desenvolver sentidos e significações para as sensações e os sentimentos primordiais que existam em dispersão no indivíduo. Pretendemos analisar os conceitos de experiência emocional e algumas modalidades de transformação, apresentando vinhetas clínicas que ajudam a ilustrar como os conceitos se articulam e o destino dos mesmos nos processos psicoterapêuticos. A transformação introduz um processo de expansão da mente que ajuda a alcançar um maior autoconhecimento do paciente.

Palavras-chave

Experiência emocional; Transformações; Psicoterapia analítica.

Title

Emotional experience and transformational process in psychotherapy

Abstract

Emotional experience is the basis of our human functioning, allowing its transformation to rehearse and develop senses and meanings for the feelings and primordial feelings that exist in dispersion in the individual. We intend to analyze the concepts of emotional experience and some modalities of transformation, presenting clinical vignettes that help to illustrate how the concepts are articulated and their fate in the psychotherapeutic processes. Transformation introduces a process of mind expansion that helps to achieve greater self-knowledge of the patient.

Key Words

Emotional experience; Transformations; Analytical psychotherapy