PENSAMENTOS II
Este número da revista Se… Não (“Pensamentos II”), órgão científico da A. P., constitui-se com uma total riqueza, a qual corre todos os trabalhos aqui publicados.
Abre com um artigo de Ana Almeida “A Dinâmica da Obsessão e seu efeito sobre o narcisismo”, que consubstancia, a meu ver, uma das contribuições mais notáveis para a compreensão do funcionamento obsessivo, seja no nosso universo científico, seja a nível internacional. O pensamento de Freud e de Bion servem à autora para desenvolver um dispositivo psicanalítico, que ela própria designa como diafragma, bem como um retomar de conceitos ligados ao funcionamento obsessivo, tais como o masoquismo, o sadismo, a analidade e, o que reputo de maior importância, o narcisismo. Conhecendo já em parte o trabalho, tive, no entanto, o mesmo sentimento de escarafunchar as muralhas muito altas do pensamento de Ana Almeida.
A seguir vem o artigo de Filipe Arantes Gonçalves que se debruça sobre o conceito de autismo de Bleuler. Também aqui somos assaltados pela exemplar exponenciação da psicopatologia da esquizofrenia, recorrendo sobretudo a instrumental psicanalítico. As contribuições pessoais de Filipe Arantes Gonçalves para a compreensão do autismo servem também como entrada na relação psicoterapêutica com os esquizofrénicos, isto para além da possibilidade de situar a Psicanálise perante aquele tipo de psicopatologia, não só a um nível individual como também familiar, não descurando o ponto de vista social e eco-sistémico. A relação entre psicanálise e fenomenologia encontra-se aqui bem situada, não só a partir das contribuições de Bleuler, como de outros psicopatologistas, nomeadamente Jaspers. Mas o que se torna evidente é a co-existência e a coerência com que Filipe Arantes Gonçalves constrói este artigo.
O artigo seguinte, da autoria de José Manuel de Matos Pinto, versando a relação entre experiência emocional e o processo transformacional na psicoterapia psicanalítica põe em evidência, não só estes conceitos, como a importância que o pensamento de Bion pode ter e deve ter no processo psicoterapêutico. Mais uma vez, estamos perante um artigo notável e de importância decisiva no nosso trabalho quotidiano. Mais uma vez, me surpreendeu a sagacidade do autor.
De seguida Ana Vasconcelos apresenta-nos um artigo que consideramos seminal sobretudo para aqueles que no seu dia a dia não pensam a complexidade desse órgão chamado cérebro. Mas, como a autora nos ensina, é justamente por esta complexidade que mecanismos tais como a adaptabilidade e a retroação se ligam ao trabalho psicoterapêutico de orientação psicanalítica, revelando por aí a sua importância na intuição empática, na vinculação e, porque não dizê-lo, na intersubjetividade, a qual constitui para Ana Vasconcelos uma mais valia sempre presente no trabalho psicoterapêutico. Esta revisitação do “homem neuronal” permitiu-nos, porque não dizê-lo, uma nova aprendizagem sobre uma das frases mais importantes da investigação em psicanálise, aquela que vai buscar a sua inspiração às neurociências.
Logo de seguida, João Paulo Ribeiro apresenta-nos um artigo cujo título é por ele próprio promissor “Fé, verdade e esperança em psicoterapia: o psicoterapeuta enquanto modelo”. Evidentemente que tais conceitos só são possíveis de integrar no nosso campo teórico, desde que enquadrados meticulosamente, o que o autor fez, aliás, sobretudo a partir de pensamento de Bion, embora outros pensadores, alguns deles pós kleinianos, estejam também presentes, tais como Meltzer, para além evidentemente de Moreno, o qual, pela relação de João Paulo Ribeiro com o psicodrama, não podia deixar de estar presente.
Este número da “Se… Não” não podia terminar da melhor maneira, refiro-me à recensão do livro “Attachment across clinical and cultural perspectives, a relational psychoanalytic approach”, feita por Cristina Nunes. Faço parte daqueles leitores para quem as recensões de livros ou artigos se constituem como uma das tarefas mais difíceis de levar a cabo. No caso presente, o que se verifica não é propriamente uma recensão, mas antes um ensaio sobre um livro, cuja constituição é polimorfa, e por aí difícil de se apresentar tal como Cristina Nunes o fez. É caso para dizer que com esta magnífica contribuição, este número da nossa revista, fecha com chave de ouro.
Se alguém tivesse dúvidas sobre a vitalidade do pensamento psicanalítico, perdia-as logo aqui. Se alguém tivesse dúvidas sobre a criatividade da nossa Associação, refiro-me à Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica (AP), perdê-las-ia de imediato.
Enquanto Diretor da Revista, fiquei endividado.
Carlos Amaral Dias
Diretor da “Se… Não...”