O meu interesse pelo funcionamento obsessivo começou há mais de uma década, quando tive um caso particularmente complicado de um jovem paciente obsessivo que abandonou prematuramente a psicoterapia, por não sentir benefícios suficientes e, principalmente, por esses benefícios não surgirem de forma suficientemente rápida. Depois deste paciente, tive muitos outros com funcionamentos obsessivos, casos difíceis pela forma como teimosamente se agarram aos seus sintomas, ao seu sistema de valores endeusado e resistem à mudança. Neste sentido, o presente trabalho, na linha da psicanálise estrutural-pulsional iniciada por Freud e expandida por Melanie Klein e Wilfred Bion, explora duas propostas teóricas que considero inovadoras e um contributo válido para a compreensão do funcionamento mental em geral e, mais especificamente, do funcionamento obsessivo e a sua relação com a patologia do narcisismo: o modelo diafragma íris e, por outro lado, a relação do sadismo e masoquismo com o narcisismo.
Em acordo com o modelo de investigação de Bion, proponho a abstração de um mecanismo mental, tendo por base os conhecimentos clássicos da psicanálise sobre a analidade. Neste ponto, Bion desenvolveu o modelo continente-conteúdo (♂︎-♀︎), abstraído da relação feminino-masculino e da relação boca-mamilo. No entanto, proponho aqui um modelo – que designo de modelo diafragma íris – desenvolvido a partir do funcionamento dos esfíncteres fisiológicos do corpo humano e, sobretudo, a partir do funcionamento do esfíncter anal. Considero que a abstração conseguida, partindo do funcionamento do esfíncter anal e sua relação com a personalidade, permite elevar a dimensão anal do seu aprisionamento nas fases do desenvolvimento psicossexual e conferir-lhe, assim, um estatuto de ‘mecanismo psíquico autónomo’, como aconteceu com a relação continente-conteúdo.
E, da mesma forma que a dinâmica continente-conteúdo, também a dinâmica diafragma íris aparece em todas as organizações, uma vez que é constitutiva da própria mente, mas terá uma configuração particular no funcionamento obsessivo, como espero vir a demonstrar. Neste sentido, proponho um modelo abstraído do funcionamento anal. Este modelo revela um mecanismo psíquico comum a todas as pessoas, e que gere o fluxo de entradas e saídas da realidade exterior para a interior e vice-versa. Mas este mesmo mecanismo também pode operar internamente, gerindo o fluxo de conteúdos ideativos e movimentos dos objetos internos no espaço psíquico.
Com o psiquismo inspirado na fisiologia do esfíncter anal, proponho, por outro lado, uma nova compreensão do funcionamento obsessivo, a partir da articulação dos conceitos de sadismo e masoquismo interligados com a dimensão narcísica da personalidade, de acordo com os seguintes aspetos:
Esta proposta teórica pode, então, ser enunciada da seguinte forma:
O sujeito obsessivo2 desenvolve uma dinâmica de gestão dos mecanismos de controlo que se podem situar mais na linha sádica ou na linha masoquista. Estas duas dinâmicas de gestão dos mecanismos de controlo, sádica e masoquista, criam respetivamente mecanismos de controlo do tipo (1) tirânico e ditatorial e (2) frouxo e ineficaz.
Mecanismos de controlo da linha sádica: Controlo tirânico e ditatorial
Mecanismos de controlo da linha masoquista: Controlo frouxo e ineficaz
Na predominância da linha sádica, os sujeitos revelam e manifestam elevados níveis de suspeição relativamente aos outros e, ao mesmo tempo, utilizam mecanismos fóbicos auxiliares, a fim de manter a mente suficientemente distante de eventuais confrontos com o real que o possam levar à perceção do erro lógico, o que poderia impedir a manutenção do próprio sistema.
Na predominância da linha masoquista, por sua vez, os mecanismos de controlo são melhor definidos pela quase ausência do exercício do controlo, ou por um exercício do controlo de forma frouxa e ineficaz. Assim, quando o controlo é efetivamente exercido, centra-se na retenção, no evitamento a todo o custo da saída da agressividade que agride permanentemente o sujeito a partir do seu interior. O super-eu desempenha aqui o papel sádico, esmagando o narcisismo do sujeito com a persistente comparação com o ideal de eu e os ‘eus ideais’. Consequentemente, o super-eu e o ideal de eu tornam-se instâncias rígidas e hipervalorizadas que mantêm o sujeito prisioneiro e mártir de si próprio. O sujeito vive uma espécie de medo paranoico de ser agredido, temendo encontrar em qualquer outro um potencial perigo/inimigo, dado que projeta, numa tentativa estéril de se ver livre do seu super-eu cruel, essa crueldade e essa malignidade em todos os que se aproximam. De igual modo, desenvolve, mas por motivos diferentes, mecanismos fóbicos auxiliares, mas que desta vez visam proteger o sujeito do contacto com a crítica e a censura projetada nos outros. Os alvos da projeção encontram-se mais entre objetos/sujeitos potencialmente desconhecidos, porque a proximidade com o objeto desfaz o erro lógico e permite a dissolução, pelo menos parcial, dos receios paranoicos. O obsessivo da linha masoquista organiza, assim, uma produção mental – naturalmente devido ao hiperinvestimento na atividade intelectual como é do conhecido geral – que se caracteriza por uma constante produção de teorias de ‘desculpabilização’ do outro e da ‘retenção’ da culpa (crítica) em si mesmo.
O primeiro tipo, sádico, organiza uma patologia do narcisismo, que se poderia situar como pertencente ao inflacionamento do narcisismo, onde há uma narcisação maciça e desmesurada que cresceu à custa de mecanismos imensamente dispendiosos e que passam pelo ataque à realidade e ao pensamento, negação, anulação retroativa, isolamento do afeto e a hiper-racionalização, por vezes com distorções graves, uma vez que a lógica ou a seleção de premissas é feita pelo o crivo estreito das exigências do super-eu e do ideal do eu. Neste processo, o sujeito tem uma perceção parcial da realidade, porque tende a só percecionar os acontecimentos internos e externos que possam confirmar a sua supremacia narcísica, ou seja a correspondência e satisfação do ideal de eu e do super-eu.
Na outra linha, masoquista, temos uma patologia do narcisismo que se poderia caracterizar pela exposição permanente da falha narcísica, constituída e mantida aberta pelo super-eu, rígido e cruel, que permanentemente agride o narcisismo, impossibilitando o seu restauro. Como consequência, observa-se um narcisismo falhado e arruinado. A manutenção da desvalorização e ruína do narcisismo é sustentada pelo exercício de uma racionalização colocada ao serviço do super-eu que arquiteta inúmeras e credíveis teorias da ‘desculpabilização’ do outro e da ‘culpabilização’ do próprio.
Também aqui, por outro lado, a manutenção do status quo é feita à custa de mecanismos dispendiosos e lesivos para a personalidade. Contudo, a proximidade a que mantém o sujeito da posição depressiva, torna-a menos grave, se assim se pode dizer, ou seja, mais acessível à análise. O mecanismo que mais radicalmente cria dificuldades à personalidade dentro desta linha é a excessiva inibição. O eu, numa tentativa desesperada de evitar os ataques destrutivos para o narcisismo oriundos do super-eu, parece colocar-se num quase estado de paralisia. Esta paralisia é uma inibição maciça que pode atingir todas, ou quase todas, as funções do eu. A extensão desta paralisia é um indicador de gravidade, ou seja, de maior dificuldade de acesso à análise. Não obstante, uma vez vencida esta dificuldade, o processo de restauro do narcisismo é relativamente rápido e corresponde a uma diminuição significativa do masoquismo3.
Na linha sádica, portanto, há ocupação parcial do eu pelo super-eu, e a projeção do eu para o exterior, como forma de ‘se ver livre’ das partes frágeis e vulneráveis, mas também amorosas e sensíveis. O sujeito pode acabar por tentar ver-se livre da sua capacidade de amar. Em termos Bionianos, o sujeito fica condicionado em maior ou menor grau a somente experimentar vínculos H+ e vínculos H-. As experiências emocionais de tipo L+ e L- são confundidas com fragilidade e sentidas como ameaçadoras e perigosas.
Por outro lado, na linha masoquista, mantém-se intacta a separação entre super-eu e eu, mas tem lugar, como forma defensiva, a projeção do super-eu que, depois de projetado, ataca o sujeito de dentro e de fora. O sujeito pode acabar por tentar livrar-se da capacidade de odiar, o que é tão prejudicial para a personalidade como a perda da capacidade para amar. Em termos Bionianos, o sujeito fica condicionado, em maior ou menor grau, a somente experimentar vínculos L+ e vínculos L- .
Ambos os funcionamentos submetem-se a um objeto ideal que se torna um perseguidor na mente do sujeito, e forçando a personalidade a aderir a ser esse objeto ideal. Não obstante, por outro lado, tudo se complica na clínica, porque não há masoquismo sem sadismo e vice-versa. Logo, um paciente que poderia, nesta perspetiva, ser pensado como ‘funcionamento obsessivo na linha sádica’ tem, necessariamente em segundo plano, em funcionamento secundário, ‘funcionamento obsessivo na linha masoquista’. O contrário é igualmente verdadeiro e a complexidade aumenta, na medida em que as relações entre o funcionamento primário e o funcionamento secundário não são simples, nem lineares. Os princípios que regem estas relações são ainda em grande parte desconhecidos e exigem um trabalho exaustivo de reflexão e investigação.
A este respeito, um artigo de Coimbra de Matos, publicado originalmente, em 1988, no Jornal do Médico e, mais tarde, editado numa coletânea de textos (Matos, 2003, pp. 53-74), continua extraordinariamente fecundo 25 anos depois. Coimbra de Matos considera que a questão principal da neurose obsessiva é a regressão sádico-anal, com desintricação das pulsões e a componente agressiva a deslocar-se do rival para o objeto de amor. É este deslocamento, segundo o autor, que promove a forte ambivalência e o enorme coartar da agressividade, ambos fenómenos tão característicos da neurose obsessiva. Tem lugar, portanto, uma regressão da relação triangular à relação dual: “o grande problema da personalidade obsessiva é que não conseguiu manter e levar até ao fim a rivalidade edipiana – a confrontação com o rival [...]. A agressão do obsessivo bate em seco, à falta de objeto adequado”. Esta agressão sem objeto adequado leva ao controlo possessivo do objeto. Neste ponto, Coimbra de Matos afirma ainda que o obsessivo desvaloriza a genitalidade, em proveito da analidade. Ou seja, observa-se no obsessivo: regressão sádico-anal, fobia do contacto e estabelecimento de relações à distância, pela regressão da relação objetal. E Coimbra de Matos conclui que a qualidade de relação de objeto na infância é o grande determinante da organização psicológica, elaborando uma compreensão da neurose obsessiva como uma defesa psicótica com isolamento do afeto, uma recusa à transferência, por recusa em sair da sua torre de marfim, na medida em que o verdadeiro self do obsessivo está por detrás de uma muralha de gelo. O obsessivo lamenta e vive a carência de uma agradável infância nunca vivida, vive a dor da perda daquilo que nunca foi ganho. E reage a essa carência através do desinvestimento objetal, porque é a primitiva carência do afeto, gerada na relação interpessoal, que leva à inflação narcísica compensatória.
Em desacordo com alguns autores, como é o caso de André Green, penso que a ferida narcísica que se abre e que se mantém aberta nos funcionamentos obsessivos não se deve à separação (traumática) com o objeto primário, mas sim à destrutividade do super-eu que se transformou, no sentido Bioniano, num super-ao-eu. Esta destrutividade severa e implacável constitui-se como parte da dinâmica sádica-masoquista, uma vez que fornece alimento ao masoquismo e, simultaneamente, estrutura/organiza um narcisismo permanentemente castrado e insuficiente que se expressa em desvalorização acentuada do sujeito.
A neurose obsessiva e o funcionamento obsessivo, de uma forma geral, estão sempre intimamente ligados à problemática da analidade4. Num primeiro momento, a analidade mais não é do que a referência a uma fixação, ou a uma vulnerabilidade/sensibilidade particular de alguns sujeitos, relativamente ao ânus e às zonas envolventes. Contudo, um estudo aprofundado permite perceber que, com a denominação ‘analidade’, a maioria dos autores descreve um modo de funcionamento psíquico caracterizado por um conjunto mais ou menos homogéneo de características, com ligeiras variações relativamente a alguns autores, que definem um tipo de funcionamento ou particularidades dos sujeitos.
Num estudo sem data, mas provavelmente escrito em 1967, intitulado “Metateoria”, Bion (2000) agrupa algumas proposições ‘consideradas como certas’, ou seja, que não levantam dúvidas à psicanálise atual e podem ser consideradas peças basilares da psicanálise. Assim, Bion trabalha de uma forma que me parece muito produtiva os conceitos seio e pénis, considerando estas duas noções como proposições basilares em psicanálise. O autor tenta libertar os vocábulos da concretude a que estão normalmente associados, trabalhando-os conceptualmente como hipóteses definitórias, ou seja, fazendo sobressair a ideia de que a estes vocábulos estão associados certos fenómenos mentais e as suas contrapartes na realidade. Estas hipóteses definitórias constituem-se, então, como uma conjunção constante, enquanto fenómenos mentais. Neste sentido, a conjunção constante definida por ‘seio’ e ‘pénis’ é também ela própria uma condensação, enquanto contrapartes verbais de uma imagem visual.
Bion não trabalhou diretamente, neste caso, a questão da analidade, mas julgo que a analidade faz parte de um conceito da mesma natureza que seio ou pénis. Cada um deles define uma hipótese definitória que, por sua vez, é necessariamente uma condensação e uma conjunção constante. Penso também que a analidade é um dos outros conceitos fundamentais da psicanálise e sobre o qual não restam grandes dúvidas. Pretendo, assim, operacionalizar o conceito de analidade a um nível de abstração tal que, de forma semelhante ao seio e ao pénis, no pensamento Bion, perca a sua aparente concretude e se desvincule, em parte, da ideia fortemente enraizada no pensamento analítico de fases genético-evolutivas que arrastam, atrás de si, a concetualização, há muito colocada em causa, de catexia. O último Freud, o Freud de “Inibição, Sintoma e Angústia”, de 1926, em particular, já se tinha vindo a distanciar destes seus conceitos mais mecanicistas e, cada vez mais, era evidente o predomínio de uma visão que caminhava no sentido puramente dinâmico. Penso que desenvolver níveis de abstração que possam enquadrar, de forma adequada, estes conceitos não os empobrece. Pelo contrário, cria uma flexibilidade que permite expandir o significado científico destas noções, na teoria e na clínica psicanalítica.
Não quero dizer que considero de menor valor as teorizações acerca das fases génetico-evolutivas (o desenvolvimento psico-sexual). Penso que estas fases existem e, fundamentalmente, concordo com a descrição de Melanie Klein acerca destas fases e suas sobreposições e superações. De igual modo, é minha convicção que a ideia de fixação a uma fase, como foi defendida por Freud – à semelhança de um exército que ia deixando, ao longo do caminho, as suas tropas e, em caso de necessidade, recorria a uma posição anterior – é, porém, menos adequada, na medida em que exige a conceção de catexia e de regressão. Neste caso, parece bastante mais produtiva a posição de Bion, quando afirma: “Winnicott diz que os pacientes necessitam regredir; Melanie Klein diz que eles não devem regredir; eu digo que eles estão regredidos e que a regressão é observável e interpretável pelo analista” (Bion, 2000, p.174). Na realidade, julgo que o facto de os pacientes apresentarem modos de funcionamento psicológico típicos de uma ou de outra fase do desenvolvimento, ou até modos de funcionamento típicos das diferentes fases do desenvolvimento, revela que eles estão a fazer uso desse tipo de funcionamento, que teria sido adequado numa certa fase do desenvolvimento psíquico do paciente, mas que não são os mais adequados na situação genético-evolutiva em que o paciente se encontra. Neste sentido, não se trata tanto de o paciente ‘voltar atrás’, ou seja, regredir, mas fazer uso de modalidades de funcionamento que já não são adequadas face à sua atual situação de vida.
Vou então, a partir deste ponto, desenvolver uma hipótese definitória que possa ser representada pelo vocábulo analidade e, de igual modo, utilizada como condensação da minha investigação.
No texto “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade” (Freud, 1905/1990), Freud fala extensamente sobre a atividade erótica na zona anal, ou seja, sobre a importância erógena desta parte do corpo que conserva, durante toda a vida, uma parcela considerável de excitabilidade genital. Associada à atividade erótica na zona anal, encontra-se a atividade de defecação e a importância atribuída a esta atividade pelo sujeito. A analidade e os fenómenos associados podem ser pensados como tendo três componentes principais: as fezes, o ânus propriamente dito, ou seja, o esfíncter, e o reto. Relacionada com a analidade, encontra-se a tríade definida por Freud em “Caráter e Erotismo Anal” (Freud, 1908/1990): parcimónia, exatidão e obstinação.
Estas características da personalidade observadas por Freud, como ocorrendo muito frequentemente num mesmo indivíduo, encontram-se, na sua opinião, fortemente relacionadas com uma hipercatexização das atividades ligadas com a defecação, encontrando, na história dos pacientes que apresentavam este conjunto de traços de caráter, história de incontinência fecal, diarreias, ou obstipação, por excessiva retenção das fezes, como se retirassem um prazer especial no exercício desta função. Desta forma, Freud relaciona então a existência desta tríade em pessoas que terão investido intensamente a zona anal, na idade de aprender a controlar os esfíncteres, e que, posteriormente, abandonaram este interesse especial, ‘como que substituído’ pelos traços de caráter encontrados na tríade. Neste mesmo texto, Freud ainda faz referência à existência de formações reativas que vão no sentido de sublimar os desejos anais e que são: A vergonha, a repugnância e a moralidade. Relacionar estes traços de caráter com a formação reativa, como tentativa de sublimação do impulso, fez com que Freud concluísse que os indivíduos que preservam um interesse erótico, em idade adulta, na zona anal, mantida como zona erótica por excelência, não exibam estes traços. De facto, Freud afirma que os homossexuais (masculinos pressupõe-se) não apresentam tais traços no seu caráter.
Desta forma, associado ao conceito de analidade, encontramos a atribuição de uma importância desproporcionada à zona anal, composta por ânus, fezes e reto, embora a importância dada a cada uma destas componentes não tem necessariamente que ser a mesma. Essa importância revela-se, diretamente, através da masturbação anal ou seus equivalentes, ou, indiretamente, com hipervalorização ou desvalorização acentuada de alguns dos seus equivalentes simbólicos, ou de todos eles. Por exemplo, dinheiro (equivalente simbólico de fezes), sujidade (equivalente simbólico de ânus após a defecação). Ou ainda, através de traços de caráter que se constituíram como formações reativas aos desejos de contato com a zona anal; precisamente, a tríade anteriormente referida e enunciada por Freud.
Mas a problemática da analidade não se restringe às questões relacionadas com uma hiper-excitabilidade da zona anal. A problemática complica-se com a introdução do conceito de sadismo, associado a esta fase génetico-evolutiva. Inicialmente, Freud, em “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade” (Freud, 1905/1990), apenas faz referência à fase anal, não a relacionando ainda com a atividade sádica. Mas no texto “A Disposição à Neurose Obsessiva: Uma Contribuição ao Problema da Escolha da Neurose”, (Freud, 1913/1990), já integra a ideia de Karl Abraham relativamente à associação entre fase anal e sadismo, contudo ainda não há uma verdadeira explicitação da fase como sendo fase sádico-anal. Em qualquer caso, é utilizada, pela primeira vez, na obra de Freud, o termo pré-genital e é possível verificar que ele não está a falar propriamente de uma fase, mas de instintos: o instinto anal-erótico e o instinto sádico.
A associação é, em primeiro lugar, estabelecida por simultaneidade, isto é, observa-se a ação simultânea de impulsos sádicos e de manifestações anal eróticas, o que levou Freud, naquele texto de 1913, a denominá-la como ‘organização sexual pré-genital sádica e anal-erótica’. Só mais tarde, é que Freud desenvolve uma verdadeira fusão desde dois conceitos, na formação da fase sádico-anal. Ainda neste texto, porém, Freud critica algumas insuficiências dos seus próprios desenvolvimentos teóricos, mas nessa mesma crítica estabelece relações bastante interessantes entre sadismo, conhecimento e pulsão de domínio.
Assim, o sadismo é associado a ‘objetivos ativos’, enquanto o masoquismo – mais claramente definido por Freud no texto “O Problema Económico do Masoquismo” (Freud, 1924/1990) – é associado a ‘objetivos passivos’. Para além desta correspondência, encontramos o levantamento da hipótese teórica de que o sadismo, na neurose obsessiva, possa ser substituído pelo conhecimento e, por sua vez, o conhecimento é para Freud, nesta altura, uma forma sublimada do instinto de domínio. Temos então aqui uma primeira relação entre conhecimento e domínio, isto é, entre conhecimento e controlo, dado que domínio neste contexto é equivalente a controlo, palavra que utilizo na estruturação da relação entre funcionamento obsessivo e narcisismo. Tudo se complica, porém, quando, no texto sobre o masoquismo, percebemos que, quer o masoquismo, quer o sadismo, são produto do instinto de morte (Thanatos) mesclado (fusionado) com o instinto de vida (Eros). A lógica impele a pensar que o conhecimento (enquanto derivado do sadismo) é produto, em si próprio, do instinto de morte e do instinto de vida. Contudo, como sadismo e masoquismo são, em certa medida, uma e a mesma coisa, uma vez que ambos derivam do instinto de morte mesclado com o instinto de vida, e ambos visam dominar, controlar a ‘vida’, podemos pensar que o conhecimento pode surgir tanto da sublimação do sadismo, como da sublimação do masoquismo.
Fundamentalmente importante, assim, é que ambos, sadismo e masoquismo, se encontram presentes, porque ambos derivam da pulsão de morte e estão necessariamente interligados: “O sadismo do super-eu e o masoquismo do eu suplementam-se mutuamente e se unem para produzir os mesmos efeitos” (Freud, 1924/1990). Por outro lado, Freud já tinha feito referência à importância das nádegas nas fantasias masoquistas, num texto anterior, “Uma Criança É Espancada” (Freud, 1919/1990), mas é neste outro texto, cinco anos depois, que enfatiza o significado das nádegas como área anal particularmente sensível e predisposta a fantasias masoquistas de espancamento: “As nádegas são a parte do corpo que recebe preferência erógena na fase anal-sádica, tal como o seio na fase oral e o pénis na genital” (Freud, 1924/1990).
Desta forma, devemos acrescentar as nádegas à tríade anteriormente identificada, passando a ficar um quarteto: nádegas, ânus, fezes e reto. Neste mesmo texto sobre o masoquismo, Freud correlaciona de forma clara a culpabilidade inconsciente e o masoquismo. É como se o masoquista quisesse aliviar um qualquer sentimento de culpa inconsciente, submetendo a personalidade a castigos corporais e morais. Podemos, então, a partir deste ponto de vista, pensar que o sadismo (o super-eu sádico) induz sentimentos de culpa no eu, e estes sentimentos de culpa ficam a um nível inconsciente, mas exercem sobre o sujeito uma pressão, no sentido de serem expiados.
Persistentemente, na minha investigação, o sadismo e o masoquismo aparecem enredados na teia da analidade, uma vez que necessariamente sadismo e masoquismo têm que ser incluídos nesta minha hipótese definitória. Temos, então, neste ponto, um quinteto composto pela dupla sadismo/masoquismo, nádegas, ânus, fezes e reto. Sadismo e masoquismo não são, porém, fenómenos da mesma ordem que as nádegas, o ânus, as fezes e o reto. Estes últimos são ‘objetos’ corporais, enquanto sadismo/masoquismo são forças que vinculam e caracterizam a união de duas ou mais coisas.
Neste sentido, cada uma das componentes da analidade pode ser desdobrada, dado que se tratam de condensações, em diferentes registos simbólicos. As nádegas são talvez a referência menos carregada simbolicamente. Estão associadas ao batimento, portanto à estimulação da pele, através de palmadas, e, por isso, associadas ao prazer masoquista, dado que a palma sobre as nádegas produz um aumento da vascularização na área e sensação de dor. E estão ainda associadas, através da sua exibição, à ideia de provocação.
As fezes são, de qualquer forma, uma referência mais complexa, do ponto de vista simbólico, sendo clássica a equação fezes = pénis = bebés. Nesta equação, as fezes estão imbricadas com o ato de defecação e são equiparadas ao pénis, enquanto ‘objetos’ com uma certa consistência que deslizam num órgão oco, o reto; assim como o pénis na cópula, desliza num órgão oco, a vagina. Nesta perspetiva, e tendo em consideração a equivalência fezes = pénis, podemos entender, com alguma facilidade, que o sujeito possa valorizar as suas fezes tanto (ou quase tanto) quanto o seu pénis. Perder as fezes ou separar-se delas pode ser vivido, ao nível do fantasma inconsciente, como perder ou separar-se do pénis, o que, por sua vez, reativa angústias ligadas à castração que ativam sentimentos de perda de poder e capacidades, traduzidos, a nível consciente, em sentimentos de impotência. Consequentemente, as fezes são vistas e sentidas como objetos que, ao mesmo tempo, são e não são partes do corpo, ou que são e não são simultaneamente propriedade do seu produtor. Neste sentido, podem ser percebidas como ‘coisas’ altamente valiosas – por exemplo, os presentes de fezes que as crianças oferecem às mães na altura do treino dos esfíncteres –ou como ‘coisas’ profundamente desprezíveis (talvez por terem um nulo ou quase nulo potencial de transformação).
Assim, a relação do sujeito com as suas fezes é muitas vezes reveladora do tipo de ‘fantasmas’ que lhe estão associadas. A apreciação das fezes, através da análise da cor, odor e textura, encobre, na maioria das vezes, um prazer erótico associado à visão, perceção do cheiro e prazer do contacto com uma substância de densidade variável. Mas também pode servir para apaziguar fantasmas paranoides de envenenamento; Nestes casos, as fezes são vistas como ‘objetos’ tóxicos que têm o poder malévolo de envenenar o sujeito, quando retidas. Por último, as fezes são um conteúdo à procura de um continente.
Neste contexto, o reto é um órgão oco, no qual deslizam as fezes, quando são evacuadas e, simultaneamente, é passível de ser excitado, com características de resposta semelhantes à vagina. Ou seja, a mucosa retal pode ser estimulada através da penetração e responder a esta excitação com um aumento da produção de mucosa, dilatação e distensão dos músculos, por forma a se ajustar e envolver o ‘objeto’ que desliza e/ou penetra. Estas semelhanças, na resposta fisiológica entre o reto e a vagina, criam a equivalência reto = vagina. Desta equivalência, nasce a noção de bissexualidade psíquica, para além do facto de que, em ambos os sexos, a área anal (reto, fezes, nádegas, ânus) é precisamente igual. Os sexos igualam-se pela e na analidade. O reto é, então, um continente disponível para um conteúdo.
A última componente, o ânus propriamente dito, é a mais simbolicamente substantiva e, portanto, aquela que mais consequência tem para a dinâmica da analidade. Em primeiro lugar, o ânus refere uma separação entre interior e
exterior, criando e sedimentando a noção de interioridade do sujeito – o que é seu, o que lhe pertence – e de exterioridade ao sujeito –aquilo que não é seu, que não lhe pertence. Desta forma, organizando a noção de pertença, o ânus estabelece as primeiras relações com a posse e o domínio da interioridade, algo que acontece no exercício do controlo dos esfíncteres. O esfíncter é um músculo anelar que circunda a abertura de um determinado orifício, controlando o grau de amplitude com que fecha ou abre. No corpo humano, existem, pelo menos, 42 esfíncteres, alguns deles microscópicos, mas três têm particular importância: o esfíncter cardíaco, o esfíncter anal e o pilórico. Entre estes, porém, apenas o esfíncter anal controla a passagem do interno para o externo e é, imediatamente, apreendido pelos órgãos dos sentidos.
Dominar o esfíncter anal dá ao sujeito o poder de decisão de quando e em que quantidades as ‘coisas’ do interior podem sair para o exterior e, quando e em que quantidades, as coisas do exterior podem entrar para o interior. O esfíncter anal não é o único esfíncter do corpo sexual humano. Para além do esfíncter uretral em ambos os sexos, na mulher existe a vagina. A força de oclusão e o domínio sobre a vagina, enquanto esfíncter, é bastante mais fraco, logo menos eficaz, na vagina do que no ânus. Na mulher, existe saída de fluidos e de mucosas da vagina, e ela não tem qualquer forma de evitar estas saídas/perdas. A menstruação é, assim, o protótipo de uma perda, através de um esfíncter que é impossível de controlar. No homem, esta experiência não acontece, porque os esfíncteres que o homem possui (anal e uretral) têm um nível de controlo muito mais intenso, podendo ser utilizados com o rigor de saber (quase exatamente) o que sai e quando sai. A ejaculação passa também por um mecanismo da mesma natureza. É necessário abrir algo para deixar passar o sémen, de modo que também aqui o controle, mais ou menos rigoroso, sobre o momento da ejaculação é possível, assim como é possível (até certo ponto) determinar a quantidade de sémen que se ejacula. Na mulher, mais uma vez, o processo não é exatamente o mesmo, uma vez que o aumento da produção de mucosas e a emissão de fluidos não é possível de ser controlada. É como se o esfíncter estivesse sempre aberto.
Na minha opinião, estas diferenças anatómicas e fisiológicas colocam os homens e as mulheres em posições ligeiramente diferentes relativamente à analidade, apesar de, no ponto de vista morfológico e fisiológico, o ânus da mulher seja exatamente igual ao ânus do homem. A questão é que a existência, na mulher, de um outro esfíncter bastante menos suscetível de ser controlado confere ao feminino a dimensão de uma ‘impotência’ que com a qual o homem não se defronta.
Neste contexto, o controlo dos esfíncteres anal e uretral dá à criança pequena a sensação de ser toda-poderosa, e a possibilidade de utilizar este domínio para se relacionar consigo própria e com os outros. Dominando o que sai e o que entra e as porções do que sai e do que entra, a criança torna-se soberana da sua interioridade e isto é vivido como uma estrondosa conquista do Eu, com fortes repercussões narcísicas. Controlando o que sai e o que entra, o Eu fica na posse de um instrumento poderosíssimo para negociar os conflitos entre o super-eu, o id e a realidade. Sem esta possibilidade, fica à mercê do id, do super-eu e/ou da realidade. O poder associado a esta técnica de domínio é de tal forma grande que o super-eu pode ‘adotá-lo’ como instrumento privilegiado para reforçar a sua força perante o eu, favorecendo a já referida transformação Bioniana do super-eu em super-ao-eu.
Consequentemente, o modelo diafragma íris que defendo, como referi mais acima, pretende chamar a atenção para os processos de controlo das ‘entradas’ e ‘saídas’ de dentro do corpo, o que é o mesmo que dizer de dentro da mente. A analogia entre o esfíncter e a íris permite reforçar a ideia de algo que não se prende à concretude do ânus, apesar de ser, obviamente, uma dinâmica anal. Sendo os dois movimentos determinantes na dinâmica de controle dos esfíncteres, a dilatação e contração da íris são involuntárias, no sentido em que não são controladas conscientemente pelo sujeito, mas determinados pela quantidade de luz que atinge a pupila e tem como princípio, na sua gestão, o ajuste entre a amplitude de abertura e a quantidade de luz disponível no ambiente, por forma a se obter a visão mais nítida possível. Penso que este modo de funcionamento tipo íris poderá representar o equilíbrio ótimo na gestão dos movimentos de dilatação/contração inerentes a todo o esfíncter, uma vez que o ajuste é extremamente sensível e profundamente dinâmico, levando permanentemente em consideração informação provinda do interior e do exterior, por mecanismos de controlo em que o feedback tem uma importância decisiva.
Estes tipos de funcionamento anal podem ser conjugados e definir modalidades anais de transferência e/ou de relação do sujeito consigo próprio, ou seja, com os seus objetos internos e/ou de relação do sujeito com a realidade propriamente dita, ou ainda via retorno do projetado. Por exemplo, numa modalidade de funcionamento Retentivo + Evacuativo, o sujeito retém ao ponto máximo os conteúdos e, quando estes não são mais possíveis de reter, são evacuados de forma violenta e explosiva, escapando do perigo inerente de destruir o continente que se foi deformando para abarcar um conteúdo excessivamente grande, poderoso ou denso, provocando pressão interna para saírem, dado o seu potencial tóxico e/ou destrutivo.
André Green (1993) propôs a noção de ‘analidade primária’ que estaria, na opinião do autor, intimamente relacionada com os estados-limites e com funcionamentos mais próximos do psicótico, não havendo, contudo, uma psicose propriamente dita, no sentido psiquiátrico do termo. A ideia de analidade primária é, na verdade, formulada a partir da observação de um tipo particular de transferência mantida por alguns pacientes não obsessivos. A particularidade desta transferência era relacionada com o conflito e a confusão entre poder e potência. Segundo Green, os pacientes que transferiam desde modo ficavam envolvidos com uma ideia arraigada de que o analista seria alguém de tipo todo-poderoso. A atribuição ao analista da característica todo-poderosa lança o analisando num movimento inevitável de luta contra a transferência que, segundo André Green, é induzida, devido a uma confusão por parte do paciente, entre poder e potência, na qual o paciente igualiza estes dois termos.
A distinção então entre potência e poder resulta da forma como ambos são vividos como mutáveis – a potência é vista como podendo variar em força e tipo, nomeadamente – e imutáveis, no sentido em que o poder é um atributo imutável e de força máxima. Desta forma, a potência é uma qualidade de tipo humano, enquanto o poder é uma qualidade sobre-humana. Consequentemente, a projeção da qualidade Poder ao analista retira o analista da sua qualidade humana e coloca-o no estatuto de sobre-humano. A assimetria gerada é da ordem do inultrapassável, porque o analista e analisando, aos olhos do analisando, estão em planos completamente distintos e intocáveis. O analista constitui-se assim como um diktat, uma imposição vinda de um plano superior, impossível de ser recusada ou contrariada. A problemática relacionada com questões de poder e potência é classicamente pensada como uma problemática da analidade, pela sua relação clara e anteriormente explicitada com o controlo/domínio dos esfíncteres, ou seja, com o exercício do poder e da auto-determinação do que é e quando é evacuado e retido. Na medida em que se verifica, como fez André Green, que este conflito é fundamental nos casos-limite, podemos levantar duas hipóteses: Ou existe uma analidade anterior e, neste sentido, primária à analidade revelada pelas neuroses obsessivas; ou os casos-limite apresentam características obsessivoídes, isto é, revelam, por vezes e a um certo nível, funcionamento obsessivo. André Green optou por levantar e defender a primeira hipótese. Penso que a segunda é mais correta.
Além disso, a analidade primária descrita por Green condensa, numa só forma, duas situações. Por um lado, a regressão edipiana, na medida em que o analisando se posiciona perante o analista como a criança pequena se posiciona perante o progenitor ameaçador no conflito edipiano, revestindo-o de um poder que é todo-poderoso. E condensa, de igual modo, a luta contra o eventual/eminente deslize para a oralidade, isto é, a luta contra a derrapagem para um tipo de funcionamento psíquico mais arcaico. Neste tipo de transferência, o analista aparece, aos olhos do paciente, como aquele que realizou os desejos desta analidade primária – isto é, a conquista de um poder que é todo-poderoso – como forma de assegurar a omnipotência sobre o objeto e tornar-se, desta forma, omnipotente.
O paciente fica, então, emerso num conflito entre a obediência e o orgulho, isto é, sente-se compelido à obediência, uma vez que se defronta com um ‘rival todo-poderoso’, mas, simultaneamente, sente-se ferido no seu orgulho, gerando sentimentos de revolta, raiva, zanga e ódio contra o analista. A centralidade do conflito na obediência-orgulho leva André Green a afirmar que o conflito não visa ou envolve o super-eu, nem o ideal de eu. Contudo, penso que se não o faz num primeiro nível. Acaba por realizar isso num segundo nível. Ou seja, penso que o ideal de eu está necessariamente implicado neste processo, dado que a situação de ser todo-poderoso, omnipotente, se constitui como um ideal do eu e, simultaneamente, é uma exigência do super-eu que visa, através dessa aquisição, transformar-se no referido super-ao-eu.
A minha caracterização do narcisismo-anal difere, assim, substancialmente da visão apresentada por André Green:
“O narcisismo destes sujeitos [que apresentam analidade primária] é partido em bocados. A ferida narcísica remonta, bem entendido, à infância, e quase nunca cicatriza. [...]. Os pacientes falam dos seus envelopes psíquicos, em termos de crostas que, quando caem, deixam uma derme exposta a todas as agressões. O resultado desta particularidade do ‘Eu-pele’ (Auzieu) é, paradoxalmente, aquele de uma ossatura rígida que pode dar uma impressão de firmeza. [...]. De facto, o narcisismo anal confere a estes sujeitos um eixo interno, verdadeira prótese invisível que não se mantem senão pela erotização inconsciente dos conflitos.” (Green, 1993, p.73, ênfase original)
Na verdade, penso que o narcisismo destruído se deve mais à intervenção de dinâmicas internas sádicas (a existência de um super-ao-eu) do que, propriamente, à lesão traumática infligida em idade precoce, e que fica, permanentemente, aberta e exposta a subsequentes reforços do trauma inicial. Desta forma, a minha leitura é que o super-ao-eu, uma vez constituído, utiliza as fragilidades do eu, os seus pontos fracos e angústias, para infligir e manter a sua tirania (movimento sádico). Neste caso, seria como se o super-ao-eu fizesse uso do terror que o eu tem do desamparo, por forma a mantê-lo castrado. E a castração repercute-se necessariamente no narcisismo. Permanentemente castrado, permanentemente ferido e permanentemente subjugado, o ‘eu-pele’ visto como uma ossatura rígida é, na verdade, a visão do super-ao-eu e a consequência do exercício da sua tirania. Por sua vez, o ‘envelope psíquico’ como uma ferida aberta é, segundo a leitura que estou a propor, a visão do Eu e da sua situação de escravatura, diante o super-ao-eu (movimento masoquista). E, desta forma, a ‘erotização inconsciente dos conflitos’ corresponde, de facto, à erotização da dialética senhor-escravo, amplamente desenvolvida por Lacan.
Além disso, André Green diz ainda que, para estes sujeitos a oposição é vital, porque ‘As ocasiões de conflito são também a ocasião de repetir o trauma potencial, inflingido pelo seu julgamento desvalorizante” (Green, 1993, p.78). Na minha perspetiva, pelo contrário, o conflito expõe/revela a luta que se trava, no interior do sujeito, entre uma parte subjugada e uma parte tirânica. A utilização dos ‘julgamentos desvalorizantes realizados pelos pais’ como ‘arma’ de ataque é apenas uma estratégia, de entre muitas possíveis, de seduzir/condenar a parte subjugada e mantê-la nessa situação. As técnicas de subjugação e domínio operadas sobre uma parte do sujeito, relativamente a uma outra parte de si e com base na dimensão narcísica da personalidade, foram minuciosamente estudadas e denominadas por Herbert Rosenfeld (1987) como narcisismo negativo.
O funcionamento obsessivo é um modo de funcionamento mental extremamente complexo e que está ainda, na minha leitura, muito longe de ser compreendido, nos seus níveis intermédios e profundos. Contrariamente à opinião dominante, considero que muitas pessoas com funcionamento obsessivo de base têm sido incorretamente diagnosticadas como perturbações narcísicas, simplesmente porque o efeito sobre o narcisismo deste funcionamento pode ser a face mais visível do mesmo. Neste sentido, podemos reunir da seguinte maneira as propostas analíticas desenvolvidas neste trabalho.
Quando a personalidade é vista no seu conjunto, é possível detetar a dominância de um ou de outro tipo, mas a um nível de micro-análise são sempre observáveis flutuações que revelam a existência do outro tipo como igualmente ativo e que, por vezes, toma as ‘rédeas’ da situação, se bem que de forma mais pontual.
O Funcionamento Obsessivo de Tipo Sádico estrutura um Narcisismo de tipo grandioso, omnipotente e omnisciente que se revela pelo desenvolvimento de sistemas de gestão dos processos de controlo, extremamente rígidos, fanáticos e ditatoriais.
O Funcionamento Obsessivo de Tipo Masoquista estrutura um Narcisismo frágil e arruinado que se revela pelo desenvolvimento de sistemas de gestão dos processos de controlo, extremamente flácidos e flexíveis, fazendo com que o sujeito ‘vá ao sabor da corrente’.
No Funcionamento Obsessivo de Tipo Sádico, o sujeito evita o contacto com a dor mental, atacando e destruindo, de forma sádica, tudo o que pode levá-lo a percecionar a dependência e, consequentemente, a fazê-lo entrar em contacto com a possibilidade do desamparo e da morte.
No Funcionamento Obsessivo de Tipo Masoquista, o sujeito é esmagado e paralisado pelo contacto com a dor mental, suportando, de forma masoquista, tudo o que pode levá-lo a percecionar a dependência e, consequentemente, a fazê-lo entrar em contacto com a possibilidade do desamparo e da morte. Neste sentido, sente-se permanentemente dependente e permanentemente desamparado, o que se traduz em intensos sentimentos de impotência.
Considero ainda que se pode abstrair do funcionamento anal um mecanismo psíquico comum a todas as pessoas, e que gere o fluxo de entradas e saídas da realidade exterior para a interior e vice-versa. Dei o nome de diafragma íris a este mecanismo. Este mesmo mecanismo também pode operar internamente, gerindo o fluxo de conteúdos ideativos e movimentos dos objetos internos, no espaço psíquico.
Estas perspetivas indicam, de qualquer forma, um ponto fundamental no desenvolvimento de competências na clínica psicanalítica da problemática obsessiva, a investigação dos fatores que regem as relações recíprocas entre o funcionamento primário sádico e o funcionamento secundário masoquista.
1 - Versão abreviada do trabalho apresentado para membro titular da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica (APPPP), setembro de 2013 e publicada em 2017, no número 32 da revista Interações: Sociedade e as novas modernidades.
2 O funcionamento do sujeito obsessivo está intrinsecamente associado à dinâmica anal, como será substantivamente referido o longo deste texto. A fase anal-sádica posterior definida por Abraham é aquela classicamente associada à neurose obsessiva, e é descrita, por Donald Meltzer, nos seguintes termos: ‘o ânus continua sendo a zona erógena predominante [assim como era na fase anal-sádica inicial], mas o reto ou os conteúdos abdominais do eu e dos objetos são, agora, o objeto principal de interesse da criança. As relações são ainda muito ambivalentes, mas há menos preocupações com as fezes em si mesmas, e mais com o que sente que contêm – algo que foi criado pelo eu, ou obtido de objetos. Já que os objetos externos são, agora, sentidos não tanto como ingeridos canibalisticamente, mas sim, principalmente, como fornecedores de substâncias, a preocupação com as possessões, e a sua retenção, predomina sobre o desejo de competir com os objetos em comportamento ou capacidades’ (Meltzer, 1979, p.57).
3 A dimensão masoquista coloca o sujeito mais em contacto com a dor mental e é, precisamente por isso, que se torna mais fácil aceder à posição depressiva e favorecer o crescimento emocional. A dimensão sádica, ao contrário, afasta o sujeito da perceção da dor mental (a ilusão de não sofrimento) e, desta forma, torna-se mais difícil aceder à posição depressiva e, consequentemente, favorecer o crescimento emocional.
4 ‘Abraham, com extrema precisão, elaborou estas fases [segundo as fases definidas por Freud: oral, anal e genital] através da preparação de um esquema de subfases. Cada um dos estágios de Freud foi dividido em dois, resultando num total de seis: (i) estágio oral inicial (sugar), pré-ambivalente; (ii) estágios oral posterior, sádico (canibalístico); (iii) estágio anal-sádico inicial, retentivo (excesso de sadismo); (iv) estágio anal-sadico posterior, expulsivo; (v) estágio genital inicial, fálico e sádico; (vi) estágio genital posterior, pós-ambivalente, com amor objetal verdadeiro (objetos totais)’ (Hinshelwood, 1992, p. 364).
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Freud, Sigmund (1905/1990). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume 7. Rio de Janeiro: Imago Editora.
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Green, André (1993). L’analité primaire dans la relation anale. In La Névrose Obsessionnelle. Monographies de la Revue Française de Psychanalyse. Paris: PUF.
Hinshelwood, R. D. (1992). Dicionário do pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas.
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Meltzer, Donald (1979). Estados sexuais da mente. Rio de Janeiro: Imago Editora.
Rosenfeld, Herbert (1987). Impasse e Interpretação. Rio de Janeiro: Imago Editora.
Olhando numa nova perspetiva para a tradição teórica, acerca dos conceitos de sadismo, masoquismo, narcisismo e analidade, no pensamento psicanalítico de Freud e Bion, a autora desenvolve um dispositivo analítico que designa de diafragma íris, fornecendo um modelo para a compreensão das dinâmicas entre o externo e o interno que são cruciais na realidade narcísica do funcionamento obsessivo.
Funcionamento obsessivo; Sadismo-masoquismo; Narcisismo; Analidade; Diafragma íris.
Dynamics of obsession and its effect on narcissism
Looking in a new perspective at the theoretical tradition about the concepts of sadism, masochism, narcissism and anality in the psychoanalytical thought of Freud and Bion, the author develops an analytical device which calls iris diaphragm, providing a model for the understanding of the dynamics between the external and the internal which is crucial in the narcissistic reality of obsessive functioning.
Obsessive functioning; Sadism-masochism; Narcissism; Anality; Iris diaphragm.