Revista | Vol. 7, N. 1, Junho 2016

O vazio desiludido e a desvinculação de si próprio.

Freud ao publicar em 1919 a obra O Estranho, deixou‑nos um conceito complexo e rico que permite à psicanálise interrogar e pensar a realidade psíquica num duplo sentido. O adjetivo “unheimich” revela sentimentos paradoxais em que alia o familiar “heimlich” e o não familiar “un‑heimlich, ou seja o Estranho. Pensei este conceito para tentar aprofundar a insanidade do acto terrorista no que se refere à morte de inocentes como se fossem estranhos. Para a psicanálise a questão não é nova, já Freud, em 1915 no texto Reflexões para os tempos de guerra e morte tinha dito que o homem primitivo não terá qualquer hesitação em matar e provavelmente em comer os estranhos (os inimigos), de uma forma totalmente indiferente, e ainda “A espécie Humana não está protegida pela barreira do instinto de matar” (Arendt, 2014). 

A literatura de ficção passou a ser a realidade concreta, qual Drácula, personagem imortal sedento de sangue, que sob a ameaça de ser exterminado, grita “Eu não sinto nada, nem dor, nem prazer, nem sofrimento, eu não estou vivo, sou só um imenso e eterno vazio sem sentido, sem causa, sem razão”. O que leva um jovem, cidadão comum a actos de terror e crueldade que o desvinculam em absoluto do outro como ser humano. Elisabeth Roudinesco (2008) lembra que a psicanálise é incompatível com a conivência com o Mal, embora pela sua aparente “ingenuidade” ou “amedrontada” denegação institucional, por pactos diversos, não o afirme tanto como é necessário.

Na minha pesquisa encontrei‑me com a autobiografia de um islamita radical que se chama Maajid Nawaz e intitulou o seu primeiro testemunho no livro, Radical: A minha viagem ao extremismo islamita para um despertar democrático (Nawaz, 2015) que me prendeu como investigação psicológica pela confirmação de que a identidade não é uma essência inalterável, nem uma ficção ilusória. É sim uma categoria histórica, evolutiva que se vai definindo nas diferentes vivências relacionais e circunstanciais. A extensão da obra impossibilita a sua síntese nesta breve comunicação. Selecionei algumas vivências, circunstâncias, e factos que no decorrer da narrativa relacionei com os conceitos de Bion como facto selecionado, vínculo e ainda o vértice que permitem a compreensão dos males entendidos da comunicação, que levam o sujeito a adaptar um vértice particular de perceção, tomada como verdade absoluta e por isso mesmo impensável e inquestionável.

Vamos então a um trecho da sua história. Maajid Nawaz, nasce em 1978 em Essex, na Grã‑bretanha, onde cresce e reside até 1999. Pertence à terceira geração de Paquistaneses que vêm residir para a Grã‑Bretanha influenciados pela cultura britânica após a guerra da separação Indo Paquistanesa em 1947. A sua família fixa‑se numa pequena cidade Southead em Essex, com poucos emigrantes asiáticos. Eram muçulmanos tradicionais, conservadores, jamais extremistas ou fundamentalistas, antes, o estereótipo do emigrante trabalhador, determinado a dar melhores oportunidades de formação académica e cultural aos seus descendentes, que neste caso acabaram por adquirir formação universitária. Ao longo de toda a sua biografia refere‑se à sua infância como um período feliz,

bem integrado na escola, sociável, com amigos próximos, simpático e reconhecido, com bons resultados escolares. Frequentava os escuteiros e equipes de futebol. A mãe é descrita como carinhosa, que educa os filhos de forma liberal, próxima e com gostos literários. O pai, engenheiro eletricista, trabalha na companhia petrolífera na Líbia para proporcionar à família uma vida desafogada, possibilitando os estudos aos filhos em boas universidades. Maajid, considera o pai um homem de bom carácter, socialmente interventivo e movido pelos ideais dos direitos humanos. Este cria o primeiro sindicato de trabalhadores na empresa na Líbia.

As experiências infantis remetem‑nos para uma família sustentora, em que os vínculos interpessoais configuram relações de objeto emocionalmente significativas, permanentes, empáticas e protetoras. As primeiras dificuldades desenvolvimentais ocorrem na pré‑adolescência quando começa a ser alvo de experiências estigmatizantes e racistas, relacionadas com a sua cor de pele.

A desidealização ocorre com choque, perda da inocência infantil e das fantasias de um mundo bom e justo. Refere: “Quando uma criança vê o mundo, não vê o seu próprio rosto, vê apenas tudo o resto que o rodeia e imagina que os outros também não vêem o seu rosto” e ainda “Tudo mudou para mim e para sempre. Tem 13 anos. Na transição do familiar para o social deixa de ser reconhecido e protegido, entra em turbulência emocional num vazio identitário. Nesta época ocorrem os primeiros casos de SIDA, excessivamente aumentada na opinião pública sendo atribuída aos africanos que teriam sido contaminados por macacos. Como não era de raça branca é alvo de chacota e humilhação e apelidado como sidoso. No liceu é impedido de jogar futebol, actividade muito importante nos adolescentes ingleses, que validava o reconhecimento dos mais capazes, onde ele se incluía Quando tenta integrar‑se é várias vezes alvo de violência física e verbal. Ficam‑lhe gravadas frases como: “Este jogo não é para Pakis”, “Vocês fazem sexo com macacos”, “Desaparece, não fales nem nos toques que metes nojo” e “Cabrão Paki volta para a tua terra”.

Os pais desvalorizam estes incidentes e ainda reforçam sempre que ele só tem que ter orgulho em ser Paki. Ele não aceita nem compreende estes conselhos que considera serem confusos e injustos. Deixa de comunicar com a família, passa a ter uma vida paralela, com um Eu secreto, em que vai organizando um objeto interno odioso e retaliatório. Adolescente na afanosa busca pelo sentimento identitário, com a normal reativação dos conflitos inerentes, rapidamente encontra pretextos para aderir a ideias omnipotentes numa lógica fechada do “tudo ou nada”. Junta‑se a outros adolescentes que têm como valor e sentido de vida responder à violência com a violência, viver no imediato acompanhado de música hip‑hop, no agir impulsivo, organizado em gangue, primeiros passos para o início do idílio catastrófico previsível. Nesta época os gangues dos skinhead e do partido da Frente Nacional de extrema‑direita estão em franca ascensão como defesa do poder político vincadamente racista, de exclusão e de repatriamento de emigrantes. Sem proteção policial nem das instituições comunitárias, emerge uma nova geração de jovens sul asiáticos, racistas, unidos por uma identidade comum, o Islão (Baller, 2012).

Concomitantemente na Bósnia as atrocidades contra os muçulmanos tornam‑se terreno fértil para a politização do Islão e vão dar origem ao Islamismo. Do Médio Oriente vêm líderes religiosos e imãs com importante função politizante para a periferia das principais capitais europeias bem como para as universidades para a formação dos jovens. A ideologia islamista racista passa a ter células organizadas, disseminadas pelo Médio Oriente e Ásia do Sul pós colonial, sendo mais apelativa e poderosa do que os ideais do socialismo árabe. É financiada e armada.

Maajid, relata, entre muitos, um episódio em que o seu grupo consegue não ser atacado por skinheads armados, por serem portadores de uma mochila com pertences pessoais, mas com a qual fizeram bluff dizendo ser uma mochila armadilhada com bombas. “Se tentarem fazer‑nos algo, faço explodir a mochila. Se tivermos que morrer para acabar convosco, é o que faremos”. Dar‑se ao respeito através da ameaça de morte pela morte foi o sinal de alarme para a hipotética capacidade omnipotente de coragem para tudo sacrificar e desta forma recuperar o que sentia como inferioridade, vergonha e dignidade perdida.

Juntou‑se a uma organização islamista terrorista, “Hiz ab‑Tahir”, o “Partido da Liberdade”, onde vem a desempenhar um papel de liderança na formação, recrutamento e disseminação da narrativa de ódio ao Ocidente, nalgumas universidades na Grã‑bretanha, a seguir na Dinamarca, mais tarde vai para o Paquistão onde cria células e deixa um largo rasto de aderentes fundamentalistas. Refere que nunca participou em treinos militares, nem chegou a ser recrutado para atividades bombistas nem de guerra direta.

Como psicanalista apenas posso levantar interrogações. O que levou Maajid a decidir‑se aos 13 anos pela adesão à religião islamista de crença fundamentalista cujo fim último é a imortalidade pela morte e que apenas e tão só convoca o pensamento fanático! Terá sido o choque com a realidade social em que a desilusão da infância não é contida nem elaborada, projetada num vazio associado a uma dissociação excessiva, com apagamento das memórias vinculativas e do património familiar? Em plena confusão identitária, com ausência do pai, emigrado na Líbia fica permeável a novos lideres messiânicos a quem faz uma adesão irrefletida, direcionando a agressividade normal, para um estado de vigor e violência destrutiva, em plena ascensão numa falsa autonomia! Todo o processo se inicia aos 13 anos, período em que podem ocorrer enormes alterações de personalidade mesmo quando a vida foi relativamente calma nos anos precedentes. Estas alterações testam em geral, a capacidade de conter a turbulência emocional desta fase. No caso de Maajid os objetos internos foram severamente desafiados e as influências externas tiveram uma influência forte, no sentido da destrutividade e em que a coerência passou a ser validada pelos pares que professavam o islamismo. Foi fácil a substituição do pensamento pela acção, com mecanismos de projeção excessiva. Descreve‑se mais tarde como um “pseudo maduro” aparentando “uma boa cabeça”. A formação político religiosa passou a ser autoprotetora. Usou a própria inteligência como uma defesa contra o verdadeiro pensamento e como forma de não ser perturbado pela realidade emocional. Amaral Dias (2009) descreve esta adesão ao pensamento de violência e terror como um estado de penumbra inquietante em que o Deus Prometeu, defensor da humanidade se casa com o monstro Frankenstein e assim imagina ordenar o caos.

Bion (in Zimerman, 1995) na sua Teoria do Pensar esclarece‑nos que o pensamento nunca está garantido e muitas vezes se perde. Ele considera o pensamento fanático como a maior patologia contemporânea. Se “Fanos” quer dizer templo, o fanático é o que pertence a esse templo, num enunciado falso sobre uma hipótese definitiva de intransigência às experiências transformativas. Amaral Dias (2009) conceptualiza o pensamento fanático como o pensamento traficante do desmentido e da capacidade do negativo. Mas como a comunicação que vos trago é sobre o estranho e o familiar, vou só referir em breve síntese o que aconteceu a Maajid.

Em 2001 viaja para o Egipto ainda como membro do “Partido da Libertação” para participar ativamente no recrutamento de novos jovens islamitas. O movimento é proibido e passa à clandestinidade. Em 2002 é preso pela polícia de Segurança Estatal. Passa quatro anos preso na prisão de Mazrah Tora onde se encontram igualmente criminosos, assassinos de Sadat, liberais, socialistas árabes e outros presos políticos. Neste longo e difícil período é sujeito a uma nova educação política e social. As conversas e a experiência com os demais, juntamente com as leituras, foram cruciais para ultrapassar a sua lealdade fanática à ideologia islâmica. Reavalia tudo em que acreditava.

Donald Winnicott (in Oliveira, 2003) ensinou‑nos que o reencontro consigo próprio, capaz de operar mudança, ocorre frequentemente em períodos de solidão, como vésperas de novos encontros, num difícil processo catastrófico, em que se esboçam novas formas de ver a realidade. Apercebe‑se de como a sua entrega a uma religião fanática o levou a perder gradativamente o contacto com as ciências esclarecidas, com a História das ideias, com o pensamento, com a reflexão sobre o valor da vida e da humanidade. Refere: “é muito mais fácil fazer coisas cruéis e egoístas, na ilusão de um espírito de justiça, quer religioso, quer político. Esmaguei os sonhos de quem amava, para perseguir um esquivo califado. O islamismo é uma religião ao serviço de uma ideologia odiosa”.

Bion (in Zimerman, 1995) lembra que o ataque ao vínculo do conhecimento (K) está intimamente ligado às questões que dizem respeito às falsidades e mentiras inconscientes e conscientes, tendo em conta que conhecer ou saber as verdades é o caminho para o sujeito vir a ser. O amor sem verdade não é mais do que uma paixão e verdade sem amor não passa de uma crueldade. Esta mudança catastrófica ocorre como um puzzle mental, a um nível emocional em que retorna às memórias da infância negadas, sobretudo, aos sempre sensatos conselhos da mãe, bem como às vivências gratificantes que viveu na família deixada para trás. Interroga‑se de forma continuada, como foi possível comprometer a sua própria existência, em função de uma crença fundada em crimes tão gigantescos. Refere ter vivido quase uma “identidade emprestada”, sem medo, sob uma tensão psíquica constante em que o importante era agir numa tarefa expansionista em união fatal com um ideal que o cegou.

A crueza omnipotente é mais forte do que a vida. Hanna Arendt define este estado mental como algo ao mesmo tempo aterrador e racional, em que o sujeito deixa de ter emoções com o mundo externo e consigo próprio. O Eu fica empobrecido ou ausente, como se passasse a ser uma personalidade inautêntica, sem profundidade, mas que não é despersonalização nem estupidez. É uma máquina capaz de genocídio, desprovida de qualquer reflexão. O terror como ideal é o sentido da vida, a que se junta o facto de tantos acreditarem na fraude com fundamento, e que leva a que não se questionassem nem as circunstâncias, nem as vítimas inocentes que provocavam. Verdadeiros ignorantes sem perplexidade.

As mudanças foram tomando consistência através da reflexão, do pensamento, do conhecimento político e social, até reconstruir toda a sua personalidade, peça por peça, de dentro para fora. Descreve o processo mais doloroso e difícil porque era como o descascar contínuo de uma cebola em que cada camada, deixa a seguinte exposta, à espera de ser descascada.

Em 2006 é libertado como objetor de consciência e passa a ter proteção da Amnistia Internacional. Regressa à Grã‑Bretanha onde se reúne à família e conclui os estudos em Direito. Em Londres, em 2008, com um grupo de amigos organiza a Fundação Quilliam. Foi o primeiro centro de antiextremismo do mundo ativista a defender a liberdade religiosa, a igualdade, os direitos humanos e a democracia. Foi consultor do governo inglês e convidado para conferências internacionais nas universidades no Paquistão e no Senado Norte Americano. Foi convidado pelo programa 60 minutos da CBS, na BBC News night e falou numa conferência TED. É entrevistado regularmente por jornalistas de todo o mundo. O seu trabalho é publicado em vários jornais em diferentes países. London Times, The Daily Beast, The Wall Street Journal, Dawn Pakistan, The Independent, The Telegraph, The Guardian, entre outros. Em Outubro de 2015 editou novo livro com Sam Harris, Intitulado “Islam and the Future of Tolerance”. Maajid Nawaz gerou em mim um bom sentimento de estranheza, de como o ser humano pode a partir do aparelho de pensar deixar de estar prisioneiro e à mercê da evacuação e retaliação dos seus maus objetos internos.

Referências bibliográficas

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Zimerman, D. E. (2010). Os quatro vínculos. Porto Alegre: Artmed.

Title

The disillusioned hollow and the untying of oneself.

Abstract

Violence and terror as an ideal is thought from the psychoanalytic point of view of link theories, of psychic emptiness and pathogenic identifications. We articulate the concepts of empathy, inability to feel and think suffering, attack to the link of knowledge, controlled emptiness and proto identifications. The text focuses the contribution that psychoanalysis can have in the prevention of psychic collapse through the resolution of the impasse and the use of the link of knowledge.

Keywords

 Disillusioned emptiness • dissociation • freezing of failure • intentionality of acting.