Revista | Vol. 7, N. 1, Junho 2016

Inocêncio X e a teoria das transformações: o terror puro

O quadro de Diego Velázquez, Papa Inocêncio X (1650) encontra‑se em Roma na Galeria Doria Pamphigli. É uma pintura ao estilo realista representando um Papa fulgente, radioso, magnífico, seguro, em suma simbolizando a robustez de um dos pilares fundamentais da cultura e civilização ocidentais. Quando o Papa viu pela primeira vez o quadro pintado por Velasquez terá exclamado “Troppo vero!”. Trezentos anos depois Francis Bacon viu‑o em reprodução e reuniu depois uma vasta coleção de reproduções, através das quais veio a estudar e a conhecer profundamente o quadro. Teve o cuidado de nunca o ver ao vivo e mesmo quando esteve em Roma evitou a todo o custo o encontro. Entre 1951 e 1965 pintou 45 estudos, variações, reações ao quadro de Velázquez, sentindo sempre uma fortíssima obsessão por ele.

 

Figura1 – Papa Inocêncio X (Velázquez, 1650)

Antes de passarmos à descrição do primeiro estudo de Bacon do quadro, proponho que ouçamos primeiro o próprio pintor sobre o sentido e a técnica da sua pintura em geral, assim como as circunstâncias históricas e culturais da altura:

• “A arte é um método de abrir áreas de sensibilidade, mais do que a mera ilustração de um objeto” (Bacon citado por Sinclair, 1995, p. 232).

• “Eu pinto forças, não figuras” (entrevista a Sylvester, 2007).

• “A maior parte de um quadro é sempre uma convenção, a aparência e é isso que eu tento eliminar nos meus quadros. Procuro o essencial, que a pintura assuma do modo mais diretamente possível a identidade material daquilo que represento. O meu modo de deformar as imagens aproxima‑me muito mais do ser humano do que se me sentasse e fizesse o seu retrato (…) Procurei encontrar uma técnica capaz de reproduzir a realidade profunda e não a aparência das pessoas” (entrevista a Ramón Chao, 1982).

 

Figura 2 – Francis Bacon (1909‑1992)

Em suma, o que Bacon tenta captar é o estado emocional e sensitivo de um sujeito num determinado momento, o seu objetivo é captar uma identidade.

À semelhança de muitos outros artistas do pós‑II Guerra Mundial tentou reproduzir o clima de terror absoluto e descrença na cultura, expressando o que aconteceu à humanidade finda a Guerra e o Holocausto nazi: a destruição geral, a morte, o flagelo, o holocausto nuclear, a despersonalização do homem que se converte em cadáver atirado para valas comuns, seres asfixiados, queimados e atirados fora como lixo, o desespero mudo dos rostos de bocas abertas, incapazes de produzir qualquer som…

Theodor Adorno, um dos grandes pensadores da Escola de Frankfurt, afirmou que seria impossível escrever poesia depois de Auschwitz. Enganou‑se, mas é um facto que Bacon nunca pinta a figuração do horror, nunca há qualquer narração e ilustração de uma cena de horror. O que ele pinta é o grito como a captação de uma força invisível. O seu objetivo é expressar a realidade torturante do homem contemporâneo traumatizado pela impossibilidade de erradicar o Mal, pior ainda, pela descrença total no progresso civilizacional e cultural, pelo paradoxo enlouquecedor da associação entre progresso e barbárie: uma cultura que pode produzir, em conluio com os progressos técnico‑científicos, a morte planificada do campo de extermínio ou a aniquilação instantânea, à distância, de centenas de milhares de seres humanos. Cito Freud em O Futuro de uma Ilusão: “As criações dos homens são fáceis de destruir, e a ciência e a técnica por eles edificadas também podem ser utilizadas para a sua destruição”. O que Bacon pretende metaforizar é o desamparo aflitivo e raivoso do desastre na cultura, o desencanto do mundo. Recordo as palavras lúcidas de Primo Levi em, e o título é certeiro, Se isto é um Homem: “a ofensa feita ao humano (…) a natureza insanável da ofensa que se propaga como um contágio, o qual é uma fonte inesgotável do mal” (A Trégua, 1963/2010, p. 9). O que Bacon nos dá a ver é uma metáfora do sentimento interno perante a falência total da cultura tal como Freud a concebeu no início do seu ensaio O Futuro de uma Ilusão. Para ele, a cultura é um esforço coletivo para “dominar a Natureza, extrair bens naturais com que satisfazer as necessidades humanas e por outro lado todas as organizações necessárias para regular as relações dos homens entre si” (1927/1981, pp. 2961‑2962). Bacon tenta dar corpo à sua obsessão, a agressividade do ser humano e aquilo que ele entende como a sua inata e inexorável inclinação para a violência ou, ainda nas palavras de Freud em Mal‑Estar na Civilização quando questiona a vocação da humanidade, de “satisfazer no outro a agressão, explorar a sua força de trabalho sem ressarci‑lo, usá‑lo sexualmente sem o seu consentimento, tirar‑lhe a posse do seu património, humilhá‑lo, infligir‑lhe dores, martirizá‑lo e assassiná‑lo” (1929/1981, p. 3046).

Porquê a escolha da figura do Papa? Precisamente porque ele representa um dos fundamentos maiores da nossa civilização ocidental. Ouçamos ainda Freud em O futuro de uma ilusão: “(as doutrinas religiosas) constituem a base da nossa civilização (…) Se lhes ensinarmos (aos homens) que a existência de um Deus omnipotente e justo, de uma ordem moral universal e de uma vida futura são puras ilusões, considerar‑se‑ão desligados de toda a obrigação de acatar os princípios da cultura. Cada um seguirá, sem freio nem temor, os seus instintos, sociais e egoístas e tentará afirmar o seu poder pessoal, e deste modo surgirá de novo o caos, o que poderá pôr um termo a um trabalho civilizacional ininterrupto através de muitos milénios.” (1927/1981, p. 2979).

 

Figura 3 – O Papa a gritar (Bacon, 1953)

O quadro de Francis Bacon, Estudo Baseado no Retrato do Papa Inocêncio X Segundo Velázquez (1953), mais conhecido por O Papa a Gritar apresenta‑nos uma vociferante e desesperada figura papal em queda livre, encerrada numa cadeira e num cubo, com a sua parte superior esfumada entre as cortinas do fundo e uma borla encimando o lugar que deveria estar ocupado pelo cérebro. A silhueta encontra‑se ataviada com encaixes brancos e vestimentas de tom púrpura e ultramar, parecendo uma caricatura do retrato pintado por Velázquez. A figura do Papa situa‑se atrás de lâminas espessas duma cortina de transparência sombria. Para além da sensação de movimento descendente da figura, quando Bacon pinta o Papa que grita, não há nada que provoque horror e a cortina diante dele não é só uma maneira de o isolar, de o subtrair aos olhares, é muito mais para mostrar que ele não vê nada, que grita diante do invisível.

Para além da crítica feroz à “religião organizada” sob a forma de gritos e esgares dum rei da igreja católica e monarca do mundo, Bacon colocou na tela os seus medos e raivas mais profundas, expulsou‑os e alcançaram uma nova intensidade. Não nos podemos esquecer que Bacon traz consigo toda uma infância marcada pela morte (de duas irmãs) de uma juventude perturbada pela extrema incompreensão do seu pai (expulsou‑o de casa pelas suas manifestações homossexuais), o suicídio de dois dos seus amantes, assim como de todo o horror da guerra civil da Irlanda, das duas Guerras Mundiais e o início da Guerra Fria. A figura vertiginosamente em queda e aos gritos, solitária e enjaulada, sem qualquer possibilidade de fuga é uma infindável máscara de sofrimento, raiva, angústia de desamparo e terror da decrepitude e da morte.

Apesar de todo o realismo da sua pintura, Bacon acreditava haver “realidades interiores”, admitindo inclusivamente que as obras de Freud tinham modificado o seu próprio sentido de realismo “devido a que ficámos mais conscientes do modo como o realismo se pode alimentar do subconsciente (…) A gente vive quase o tempo todo encoberto por véus… É uma existência velada. E às vezes penso, quando as pessoas dizem que os meus quadros parecem violentos, que eu consigo de vez em quando levantar algum véu ou afastar algum biombo”. De facto o quadro de Bacon é um levantar do véu das aparências da representação de Velázquez, confrontando‑se a si próprio e o espectador com “a brutalidade dos factos”, com o grito espasmódico e convulsivo de forma a atingir direta e violentamente o sistema nervoso. Primeiro sente‑se e depois pensa‑se. Segundo a célebre fórmula de Paul Klee “em vez de dar o visível, tornar visível”, em arte trata‑se não de reproduzir ou inventar formas, mas de captar forças (Klee cit. por Deleuze, 1984). Bacon declarou a um jornalista que os 

seus estudos sobre Velázquez constituíam “uma intenção de converter um certo tipo de sensação em algo visível”. A sensação era o seu próprio temor visceral da morte e a sua rebeldia contra a autoridade. “A pintura representa as características do sistema nervoso do seu autor projetadas na tela” (Bacon citado por Deleuze, 1984, p. 120).

Wilfred Bion afirma no seu livro Transformations (1965/1982), hoje um clássico: “A teoria das transformações e o seu desenvolvimento não pertencem ao corpus central da teoria psicanalítica, mas à prática da observação psicanalítica. As teorias psicanalíticas, assim como os enunciados do paciente ou do analista, são representações de uma experiência emocional. A compreensão do processo de representação ajudar‑nos‑á a compreender a representação e o que é representado” (pp.43‑44). O pintor, pelo seu talento artístico, conseguiu transformar uma pessoa, uma paisagem (“a realização”) num quadro (“a representação”) e isto graças às invariantes. “Designarei ´invariantes` os elementos que dão conta do aspeto inalterado da transformação” (p. 7). E mais adiante: “A análise, no seu estado pré‑catastrófico, distingue‑se do estado pós‑catastrófico pelas seguintes características: ela não é emocional, teórica e desprovida de qualquer modificação exterior notável (…) No estado pós‑catastrófico, pelo contrário, a violência é patente, mas o seu conteúdo ideativo, até então evidente, parece faltar. A emoção é evidente e atinge o analista” (p. 15) – no nosso caso atinge o espectador. Bion propõe que as transformações psíquicas se processam por três modalidades distintas entre si e que ele denomina como “transformações de movimento rígido”, “transformações projetivas” e “transformações em alucinose”.

No estudo presente e de acordo com a teoria de Bion, concebemos o quadro de Velázquez como uma representação da mente em estado pré‑catastrófico (parte neurótica da mente) de Bacon realizando uma transformação de movimento rígido, em que distorce minimamente o facto original – Inocêncio X – e permite ao espectador encontrar o elemento invariante com muita facilidade (“Troppo vero!”). As características aparentes do Papa são visíveis: poder, serenidade, infalibilidade, proteção, confiança na vida do além, crença no amor…

Já o quadro O Papa a Gritar representa a projeção da mente em estado pós‑catastrófico, numa transformação de tipo projetivo, deformando mais intensamente o facto original devido às emoções intensas, desvirtuando as noções de espaço/tempo e postura papal sem, no entanto, impedir completamente que o espectador possa reconhecer os invariantes que possibilitam o reconhecimento.

 

Figura 4 – Figura com carne, Bacon, 1954

Num outro estudo do Papa Inocêncio X, intitulada Figura Com Carne (1954) vemos, em cores de tom lúgubre, um corpo que se esfuma e decompõe, escapando‑se por uma boca que grita, atrás do qual duas carcaças enormes de animal surgem penduradas. Aqui já não distinguimos o homem do animal, o morto do vivo. Este corpo totalmente desfigurado e mutilado, no limite do desaparecimento e confundido com a carne, sugere a perda da identidade básica e a presença da morte. “Tenho sempre a consciência da minha condição de mortal. E odeio essa condição: não queria morrer nunca”. Bacon sente‑se tocado pelo cheiro da morte e pelo facto da violência da vida, em que “cada um vive para comer o outro” (Bacon citado por Sinclair, 1993/1995, p. 47). Bacon expõe na sua obra algo da morte e da real incompletude quando afirma: “Existe sempre um sentimento de morte nas pessoas quando elas vêm os meus quadros (…) Talvez eu carregue esse sentimento de morte o tempo todo (…) Surpreendo‑me sempre quando acordo de manhã” (op. cit., p. 78). Nesta obra a deformação é de tal magnitude que roça a transformação em alucinose, relacionada com uma catástrofe primitiva devida a uma ansiedade de aniquilamento primordial, não encontrando o sujeito qualquer capacidade continente interno, reintrojetada sob a forma de um “terror sem nome”. Esta tela é claramente a representação de uma experiência emocional catastrófica (Tbeta na nomenclatura bioniana). O terror e a dor no seu estado puro.

Referências bibliográficas

Bion, W. R. (1965/1982). Transformations – Passage de l`Apprentissage à la Croissance. Paris: PUF.
Deleuze, G. (1984). Francis Bacon, Logique de la Sensation. Paris: Édit. de la Différence.
Delgado, L. (2012). Psicanálise e Criatividade: estudo psicodinâmico dos processos criativos artísticos. Lisboa: ISPA.
Freud, S. (1927/1981). O Futuro de uma Ilusão. Sigmund Freud, Obras Completas (Tomo III, 2962‑2992). Madrid: Biblioteca Nueva.
Freud, S. (1929/1981). Mal Estar na Civilização. Sigmund Freud, Obras Completas (Tomo III, 3018‑3067).Madrid: Biblioteca Nueva.
Levi, P. (1958/2010). Se Isto É um Homem. Lisboa: Teorema.
Levi, P. (1963/2010). A Trégua. Lisboa: Teorema.
Sinclair, A. (1995). Francis Bacon. Su Vida en una Época de Violência. Barcelona: S.A.

Title

Innocent X and Theory of Transformations.

Abstract

The author focuses on the (in)capacity of thinking horror through two of aroud forty interpretations performeded by the painter Francis Bacon – Screaming Pope (1953) and Figure with Meat (1954) – from the portrait painted by Diego Velázquez (1650), which can be understood in the light of the Theory of Transformations of Wilfred Bion (1965) where each interpretation/transformation push the painter to a intensification of a nameless terror, viscerally sensed, without any capacity of mentalization, naming, dream and to a degration of sense of identity. For this purpose Bacon created a new technique able to reproducting the deep psychic reality and not only the appearence of people. Its aim was not to paint horror that originates the ´scream` but the ´scream` of terror itself in order to make the inaudible audible.

Keywords

Velázquez • Bacon • Painting • Terror • Theory of Transformations.